São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2008

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Confissões da dor

"Vivendo sob o Fogo" reúne cartas, diários e escritos esparsos da poeta russa Marina Tsvetáieva

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Vivendo sob o Fogo" é uma seleção de cartas, notas de diário e escritos esparsos da grande poeta russa Marina Tsvetáieva (1892-1941) organizada por Tzvetan Todorov. Não se trata, porém, de uma simples coletânea.
Ao selecionar e ordenar cronologicamente em capítulos o vasto material deixado por Tsvetáieva, Todorov faz um duplo trabalho: confere unidade aos dispersos por meio de uma longa apresentação seguida de comentários e notas e restitui ao público aquilo que seria a "autobiografia" ou as "confissões" da escritora, que ela não chegou a publicar.
Ao longo das mais de 700 páginas do livro, que correspondem a cerca de 10% da obra dispersa de Tsvetáieva, o leitor se depara com uma das vidas mais tumultuadas e infelizes dentre aqueles que viveram o que Hannah Arendt chamou de "tempos sombrios" ["Homens em Tempos Sombrios", Companhia das Letras].
Deslocamentos forçados -da Rússia pós-revolucionária para a Tchecoslováquia, a Alemanha, a França e finalmente o retorno à antiga União Soviética-, a morte de uma filha por inanição, a miséria cotidiana, a censura, o desejo eternamente insatisfeito, o suicídio.
O auto-exílio político foi também um estranhamento do mundo experimentado de forma radical.
Numa carta de 1923 ao amigo Aleksandr Bakhrakh ela diz: "Tudo me aborrece. Notoriamente e por antecipação.
Quando estou entre as pessoas, fico infeliz: vazia, isto é, cheia delas. Sinto-me esvaziada". E, ao mesmo, no mesmo ano: "De fato, não sou feita para a vida.
Em mim -tudo é incêndio!".
O que vai se delineando nas reflexões de Tsvetáieva e acaba por ocupar o centro de sua experiência é uma exigência intransigente em relação à vida que não pode ser expressa senão como perda e ausência.
O resultado é uma espécie de "livro do desassossego", mas com um sentido de absoluto -derivado do idealismo alemão e de um vago misticismo eslavo- e um deslocamento geográfico e espacial que faltam inteiramente a Fernando Pessoa-Bernardo Soares.

Paixões
Outro elemento fundamental em Tsvetáieva é a paixão.
Não só as sucessivas paixões que ela teve, platonicamente ou não, à margem de seu casamento com Serguei Efron, com homens e mulheres, geralmente poetas e escritores, mas também a adesão total à poesia como único reduto de uma vida redimida das desgraças cotidianas. O que não significa absolutamente o entendimento da literatura como espaço de evasão diante de um mundo dividido, degradado e varrido por guerras e totalitarismos.
Ao contrário, em Marina Tsvetáieva a escrita se arremessa contra esse mundo como desafio e resposta: a opacidade, a estupidez e a mediocridade são afrontadas como escândalo inadmissível. "Escrevo com raiva, é minha vida", diz numa carta a Maksimílian Volóchin. E a Iliá Ehrenburg: "Minha única alegria é a poesia. Escrevo como se bebe -não vinho, mas água. E nessa hora sou feliz, segura de mim".
Especialmente interessantes são seus comentários sobre Rilke e as cartas trocadas com Boris Pasternak, outra de suas paixões.
Mas a força do livro consiste sobretudo no estilo de Tsvetáieva, com suas rupturas marcadas por travessões que cortam as frases, as metáforas surpreendentes, a rapidez e vivacidade de sua inteligência crítica.
Nada escapa a seu crivo, e todos os que lhe estiveram próximos ficaram imantados por seu poder de atração.
A cada passagem, Todorov vai costurando os textos com comentários precisos e notas esclarecedoras -muito importantes, também, as notas da tradutora Aurora Bernardini, que já havia traduzido com o mesmo brilho os poemas de Tsvetáieva ["Indícios Flutuantes", ed. Martins Fontes].
Talvez o único reparo que se poderia fazer a esta edição, de resto impecável, diz respeito à própria introdução de Tzvetan Todorov.
Ao buscar restituir, a partir de um recorte pessoal, a trajetória poética e existencial de Tsvetáieva em sua inteireza, Todorov termina cedendo à tentação -aliás bastante compreensível- de transformar sua personagem em mártir do regime soviético ou em santa profana.
A certa altura, por exemplo, seu texto se aproxima da hagiografia: "Alguns seres excepcionais -os eleitos que receberam o dom da palavra- encontraram o absoluto na criação poética.
[...] Ela [Tsvetáieva] não consegue assumir o paradoxo da separação entre Deus e a existência humana, que precisa do absoluto quando o mundo só lhe oferece satisfações relativas".
E, duas páginas adiante: "Em compensação, o absoluto vive em sua obra escrita e é hoje responsável pela imortalidade de sua autora".
Como tantos, Todorov não escapou à intensa luminosidade de Tsvetáieva e girou como um inseto enlouquecido em sua órbita.


MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na USP.

VIVENDO SOB O FOGO
Autora: Marina Tsvetáieva
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini
Editora: Martins (tel. 0/xx/ 3116-0000)
Quanto: R$ 79 (768 págs.)



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