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Confissões da dor
"Vivendo sob o Fogo"
reúne cartas, diários e escritos esparsos da poeta russa
Marina Tsvetáieva
MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Vivendo sob o Fogo"
é uma seleção de
cartas, notas de diário e escritos esparsos da grande poeta
russa Marina Tsvetáieva (1892-1941) organizada por Tzvetan
Todorov. Não se trata, porém,
de uma simples coletânea.
Ao selecionar e ordenar cronologicamente em capítulos o
vasto material deixado por
Tsvetáieva, Todorov faz um
duplo trabalho: confere unidade aos dispersos por meio de
uma longa apresentação seguida de comentários e notas e
restitui ao público aquilo que
seria a "autobiografia" ou as
"confissões" da escritora, que
ela não chegou a publicar.
Ao longo das mais de 700 páginas do livro, que correspondem a cerca de 10% da obra dispersa de Tsvetáieva, o leitor se
depara com uma das vidas mais
tumultuadas e infelizes dentre
aqueles que viveram o que
Hannah Arendt chamou de
"tempos sombrios" ["Homens
em Tempos Sombrios", Companhia das Letras].
Deslocamentos forçados
-da Rússia pós-revolucionária
para a Tchecoslováquia, a Alemanha, a França e finalmente o
retorno à antiga União Soviética-, a morte de uma filha por
inanição, a miséria cotidiana, a
censura, o desejo eternamente
insatisfeito, o suicídio.
O auto-exílio político foi
também um estranhamento do
mundo experimentado de forma radical.
Numa carta de 1923 ao amigo
Aleksandr Bakhrakh ela diz:
"Tudo me aborrece. Notoriamente e por antecipação.
Quando estou entre as pessoas,
fico infeliz: vazia, isto é, cheia
delas. Sinto-me esvaziada". E,
ao mesmo, no mesmo ano: "De
fato, não sou feita para a vida.
Em mim -tudo é incêndio!".
O que vai se delineando nas
reflexões de Tsvetáieva e acaba
por ocupar o centro de sua experiência é uma exigência intransigente em relação à vida
que não pode ser expressa senão como perda e ausência.
O resultado é uma espécie de
"livro do desassossego", mas
com um sentido de absoluto
-derivado do idealismo alemão e de um vago misticismo
eslavo- e um deslocamento
geográfico e espacial que faltam inteiramente a Fernando
Pessoa-Bernardo Soares.
Paixões
Outro elemento fundamental em Tsvetáieva é a paixão.
Não só as sucessivas paixões
que ela teve, platonicamente ou
não, à margem de seu casamento com Serguei Efron, com homens e mulheres, geralmente
poetas e escritores, mas também a adesão total à poesia como único reduto de uma vida
redimida das desgraças cotidianas. O que não significa absolutamente o entendimento da literatura como espaço de evasão diante de um mundo dividido, degradado e varrido por
guerras e totalitarismos.
Ao contrário, em Marina
Tsvetáieva a escrita se arremessa contra esse mundo como desafio e resposta: a opacidade, a estupidez e a mediocridade são afrontadas como escândalo inadmissível. "Escrevo
com raiva, é minha vida", diz
numa carta a Maksimílian Volóchin. E a Iliá Ehrenburg: "Minha única alegria é a poesia. Escrevo como se bebe -não vinho, mas água. E nessa hora
sou feliz, segura de mim".
Especialmente interessantes
são seus comentários sobre Rilke e as cartas trocadas com Boris Pasternak, outra de suas
paixões.
Mas a força do livro consiste
sobretudo no estilo de Tsvetáieva, com suas rupturas marcadas por travessões que cortam as frases, as metáforas surpreendentes, a rapidez e vivacidade de sua inteligência crítica.
Nada escapa a seu crivo, e todos os que lhe estiveram próximos ficaram imantados por seu
poder de atração.
A cada passagem, Todorov
vai costurando os textos com
comentários precisos e notas
esclarecedoras -muito importantes, também, as notas da
tradutora Aurora Bernardini,
que já havia traduzido com o
mesmo brilho os poemas de
Tsvetáieva ["Indícios Flutuantes", ed. Martins Fontes].
Talvez o único reparo que se
poderia fazer a esta edição, de
resto impecável, diz respeito à
própria introdução de Tzvetan
Todorov.
Ao buscar restituir, a partir
de um recorte pessoal, a trajetória poética e existencial de
Tsvetáieva em sua inteireza,
Todorov termina cedendo à
tentação -aliás bastante compreensível- de transformar
sua personagem em mártir do
regime soviético ou em santa
profana.
A certa altura, por exemplo,
seu texto se aproxima da hagiografia:
"Alguns seres excepcionais
-os eleitos que receberam o
dom da palavra- encontraram
o absoluto na criação poética.
[...] Ela [Tsvetáieva] não consegue assumir o paradoxo da separação entre Deus e a existência humana, que precisa do absoluto quando o mundo só lhe
oferece satisfações relativas".
E, duas páginas adiante: "Em
compensação, o absoluto vive
em sua obra escrita e é hoje responsável pela imortalidade de
sua autora".
Como tantos, Todorov não
escapou à intensa luminosidade de Tsvetáieva e girou como
um inseto enlouquecido em
sua órbita.
MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura italiana na USP.
VIVENDO SOB O FOGO
Autora: Marina Tsvetáieva
Tradução: Aurora Fornoni Bernardini
Editora: Martins
(tel. 0/xx/ 3116-0000)
Quanto: R$ 79 (768 págs.)
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