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Prisão das memórias
Novo romance de Silviano Santiago, "Heranças"
fica refém da dicção machadiana
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Silviano Santiago, como é sabido, tem uma
bem-sucedida carreira como crítico literário, com trabalhos significativos sobre autores tão
diversos como Drummond,
Machado, Oswald, Cabral, Eça,
Borges, Gide, Robbe-Grillet,
Barthes, Derrida etc.
Mais do que a um vasto repertório literário, contudo, o
seu nome está associado ao
viés dos "estudos culturais",
dos quais foi o principal introdutor e militante no Brasil.
Santiago também soube
manter uma constante e consistente produção literária, iniciada ainda nos anos 1960, que
conta com títulos como "Em
Liberdade", "Stella Manhattan", "Uma História de Família", "Keith Jarrett no Blue Note", "O Falso Mentiroso" [todos
disponíveis pela ed. Rocco], entre outros. Aqui, traço um esboço de leitura do recém-lançado romance "Heranças".
A narrativa em primeira pessoa fixa o presente em 2007,
quando um velho e rico empresário, gravemente adoecido,
troca a sua cidade natal, Belo
Horizonte, pelo Rio de Janeiro.
Instalado num apartamento
na avenida Vieira Souto, põe-se
a redigir um novo tipo de livro
de contas, isto é, um "liber vitae", no qual presta contas ao
leitor virtual de suas piores
ações, confessando-se inescrupuloso e presumível fratricida.
Núcleo familiar
As duas principais balizas a
orientar o andamento dessas
memórias tortuosas, mas não
contritas, são o núcleo familiar
composto de pai e irmã e o núcleo erótico das mulheres que
possuiu.
Quanto ao pai, dono de armarinho, refere a convivência "desenxabida" com ele na Belo Horizonte de sua infância, associada à rotina da loja provinciana,
onde os galanteios dissimulados às costureiras eram homólogos do folhear dos figurinos
de estrelas de Hollywood.
Quanto à irmã, o velho lembra que era operosa e determinada e também que, em momento trágico para a honrada
família mineira, envolveu-se
com um vendedor ambulante
de pipoca, que, não bastasse ser
pobretão, era ainda mulato,
corcunda e exposto.
Com dubiedade machadiana,
ficamos sabendo então que o
protagonista tramou a morte
da irmã e herdou sozinho o espólio da família. Foi o que lhe
serviu de "seed capital" para as
posteriores negociatas imobiliárias e financeiras.
Desse ponto de vista, o livro
encena o confronto entre o fluxo seco do capital globalizado e
a geografia sentimental embutida no relato memoriográfico.
No tocante às mulheres que
namorou, com as quais nunca
quis casar nem ter filhos, a confissão mais malvada é a de que,
para se livrar de gravidezes imprevistas, não apenas argumentou para que se livrassem
voluntariamente do indesejado
como produziu vários abortos
involuntários, graças a substâncias eficientes que despejava, às ocultas, em suas bebidas.
Grupo revolucionário
Nesse tipo de lembrança perversa, a nota mais irônica vai
para Nancy, professora de literatura portuguesa que se entrega a ele por uma viagem a Lisboa e uma coleção das obras
completas de Fernando Pessoa.
Abordá-la não fora acaso. O
protagonista, mau estudante
no passado, tinha por método
compensatório extrair das conquistas amorosas a mais-valia
da cultura, útil na freqüentação
da burguesia local.
O crime implícito na herança, associado aos da interrupção da descendência, produz
uma interessante sobreposição
entre a questão shakespeariana
do "mérito" do herdeiro e a do
desengano da geração em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ("Não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o
legado de nossa miséria"), de
Machado de Assis.
A nota memoriográfica mais
forte, porém, está reservada a
Marta, amante que o abandonara em Paris, após tê-lo feito
pagar a passagem internacional. Pior para o herdeiro foi
descobrir que Marta era militante da luta contra a ditadura
militar. Abatido pela traição e
por ameaças do grupo revolucionário da moça, passa a sofrer
de pânico.
A experiência deceptiva muda o tom do memorial, o que se
acentua com a lembrança quase enternecida de uma amante
mexicana que se dá a ele com
simplicidade e devoção, sem
nenhuma exigência, como num
amor de sonho.
Contradição subjetiva
O registro de reflexão irônica
e amoralismo cruel é então toldado por um existencialismo
melancólico e autodestrutivo,
mais para Cyro dos Anjos do
que para Machado.
O narrador chega a tematizar
a mudança e supõe que possa
ser assimilada em termos de
uma contradição subjetiva, que
aprofunda o processo confessional. Seja como for, objetivamente o relato já não ostenta o
mesmo gosto na descrição minuciosa das falcatruas legais e
morais.
Se a variação de registro perde na continuidade, ganha,
contudo, na desenvoltura da
elocução, que fica menos presa
à ostensiva estilização machadiana. A disposição inicial de
aproveitamento ostensivo de
provérbios, expressões feitas e
comparações metafóricas, a
certa altura, começa a pesar
contra a narrativa, com frases
que soam forçadas e excessivas,
mesmo que Santiago mostre
domínio de seu feitio.
ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da
Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor
de "Máquina de Gêneros" (Edusp).
HERANÇAS
Autor: Silviano Santiago
Editora: Rocco (tel. 0/ xx/21/3525-2000)
Quanto: R$ 46 (400 págs.)
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