São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2008

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Prisão das memórias

Novo romance de Silviano Santiago, "Heranças" fica refém da dicção machadiana

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Silviano Santiago, como é sabido, tem uma bem-sucedida carreira como crítico literário, com trabalhos significativos sobre autores tão diversos como Drummond, Machado, Oswald, Cabral, Eça, Borges, Gide, Robbe-Grillet, Barthes, Derrida etc.
Mais do que a um vasto repertório literário, contudo, o seu nome está associado ao viés dos "estudos culturais", dos quais foi o principal introdutor e militante no Brasil.
Santiago também soube manter uma constante e consistente produção literária, iniciada ainda nos anos 1960, que conta com títulos como "Em Liberdade", "Stella Manhattan", "Uma História de Família", "Keith Jarrett no Blue Note", "O Falso Mentiroso" [todos disponíveis pela ed. Rocco], entre outros. Aqui, traço um esboço de leitura do recém-lançado romance "Heranças".
A narrativa em primeira pessoa fixa o presente em 2007, quando um velho e rico empresário, gravemente adoecido, troca a sua cidade natal, Belo Horizonte, pelo Rio de Janeiro.
Instalado num apartamento na avenida Vieira Souto, põe-se a redigir um novo tipo de livro de contas, isto é, um "liber vitae", no qual presta contas ao leitor virtual de suas piores ações, confessando-se inescrupuloso e presumível fratricida.

Núcleo familiar
As duas principais balizas a orientar o andamento dessas memórias tortuosas, mas não contritas, são o núcleo familiar composto de pai e irmã e o núcleo erótico das mulheres que possuiu.
Quanto ao pai, dono de armarinho, refere a convivência "desenxabida" com ele na Belo Horizonte de sua infância, associada à rotina da loja provinciana, onde os galanteios dissimulados às costureiras eram homólogos do folhear dos figurinos de estrelas de Hollywood.
Quanto à irmã, o velho lembra que era operosa e determinada e também que, em momento trágico para a honrada família mineira, envolveu-se com um vendedor ambulante de pipoca, que, não bastasse ser pobretão, era ainda mulato, corcunda e exposto.
Com dubiedade machadiana, ficamos sabendo então que o protagonista tramou a morte da irmã e herdou sozinho o espólio da família. Foi o que lhe serviu de "seed capital" para as posteriores negociatas imobiliárias e financeiras.
Desse ponto de vista, o livro encena o confronto entre o fluxo seco do capital globalizado e a geografia sentimental embutida no relato memoriográfico.
No tocante às mulheres que namorou, com as quais nunca quis casar nem ter filhos, a confissão mais malvada é a de que, para se livrar de gravidezes imprevistas, não apenas argumentou para que se livrassem voluntariamente do indesejado como produziu vários abortos involuntários, graças a substâncias eficientes que despejava, às ocultas, em suas bebidas.

Grupo revolucionário
Nesse tipo de lembrança perversa, a nota mais irônica vai para Nancy, professora de literatura portuguesa que se entrega a ele por uma viagem a Lisboa e uma coleção das obras completas de Fernando Pessoa.
Abordá-la não fora acaso. O protagonista, mau estudante no passado, tinha por método compensatório extrair das conquistas amorosas a mais-valia da cultura, útil na freqüentação da burguesia local.
O crime implícito na herança, associado aos da interrupção da descendência, produz uma interessante sobreposição entre a questão shakespeariana do "mérito" do herdeiro e a do desengano da geração em "Memórias Póstumas de Brás Cubas" ("Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria"), de Machado de Assis.
A nota memoriográfica mais forte, porém, está reservada a Marta, amante que o abandonara em Paris, após tê-lo feito pagar a passagem internacional. Pior para o herdeiro foi descobrir que Marta era militante da luta contra a ditadura militar. Abatido pela traição e por ameaças do grupo revolucionário da moça, passa a sofrer de pânico.
A experiência deceptiva muda o tom do memorial, o que se acentua com a lembrança quase enternecida de uma amante mexicana que se dá a ele com simplicidade e devoção, sem nenhuma exigência, como num amor de sonho.

Contradição subjetiva
O registro de reflexão irônica e amoralismo cruel é então toldado por um existencialismo melancólico e autodestrutivo, mais para Cyro dos Anjos do que para Machado.
O narrador chega a tematizar a mudança e supõe que possa ser assimilada em termos de uma contradição subjetiva, que aprofunda o processo confessional. Seja como for, objetivamente o relato já não ostenta o mesmo gosto na descrição minuciosa das falcatruas legais e morais.
Se a variação de registro perde na continuidade, ganha, contudo, na desenvoltura da elocução, que fica menos presa à ostensiva estilização machadiana. A disposição inicial de aproveitamento ostensivo de provérbios, expressões feitas e comparações metafóricas, a certa altura, começa a pesar contra a narrativa, com frases que soam forçadas e excessivas, mesmo que Santiago mostre domínio de seu feitio.


ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária da Universidade Estadual de Campinas (SP) e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp).

HERANÇAS
Autor: Silviano Santiago
Editora: Rocco (tel. 0/ xx/21/3525-2000)
Quanto: R$ 46 (400 págs.)


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