São Paulo, domingo, 07 de outubro de 2007

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Lado B

Exposição em Madri reúne fotos de nádegas feitas por clássicos como Robert Doisneau, Mapplethorpe, Cartier-Bresson e Man Ray

PILAR PARCERISAS

São retratos, mas ocultam os rostos. São vistas, mas não tocadas. Pela primeira vez uma exposição reúne as fantasias de alguns dos melhores fotógrafos do mundo seduzidos por essa parte da anatomia onde, dizem, as costas perdem seu casto nome. São bundas de artistas.
Corpos sem rosto, dorsos e torsos erguem-se como contracampo do retrato, origem da arte fotográfica. E, apesar da aparente indiferença sexual, nesta época de estresse e superexcitação à base de estranhos estimulantes alheios ao sexo, a exposição "Ocultos" [até 6 de janeiro na Fundação Canal, em Madri], que selecionou 67 fotógrafos, nos devolve o apetite do olhar, o desejo de lançar um gracejo, um assobio ou simplesmente um suspiro, à passagem de um movimento provocante de quadris.
Desde o "Torso do Belvedere" de Michelangelo [1475-1564] até a "Vênus do Espelho" de Velázquez [1599-1660], os traseiros desnudos continuaram sendo uma exceção no mundo da arte até o século 19, quando as vênus se tornam de carne e osso e os modelos recusam justificativas simbólicas.
Na "Grande Odalisca" de 1814 ou em suas banhistas de costas, Ingres consegue fundir o nu corporal (o pelado) com o nu artístico (o despido), provocando uma espécie de voyeurismo intelectual.

O sublime
Se o nu como forma de arte continua sendo a principal ligação com as disciplinas clássicas, a fotografia não é exceção. Em seus primórdios e ainda hoje, a fotografia de nus não se propõe a reproduzir o corpo humano nu, mas sim a imitar a concepção sublime do corpo nu desenvolvida por alguns artistas.
O inglês Oscar Gustav Rejlander foi o pioneiro das pin-ups na era vitoriana, traseiros nus que imitavam as pinturas de seu contemporâneo Gustave Courbet e que foram reproduzidos à saciedade nas revistas.
Quando a arte quis se mostrar irreverente, mostrou "a bunda da arte". Em 1919 Marcel Duchamp, em um ato de dadaísmo iconoclasta, pintou barba e bigode em uma reprodução da "Gioconda", acrescentando embaixo desse "ready-made" ratificado as letras LHOOQ, cuja pronúncia em francês, "Elle a chaud au cul", quer dizer: "Ela está com a bunda quente".
O nu como forma de arte no mais puro sentido defendido pelo historiador da arte Kenneth Clark [1903-83] é o que encontramos em versão sublime em muitas das fotografias selecionadas por José María Díaz Maroto para a exposição "Ocultos".
Lá estão mestres do nu como Man Ray, com o sensual torso de Nusch Éluard, Bill Brandt e André Kertész com seus nus disformes, Robert Mapplethorpe e seus eróticos modelos masculinos, Lucien Clergue transformando com luzes e sombras uma bunda em autêntica jóia, Edouard Boubat com seu misterioso nu em um bosque, Willy Ronis com seus asseios femininos ou Ralph Gibson com seu erotismo provocante na passagem de uma pluma por um traseiro empinado de mulher.
Nessa categoria de nus artísticos em que se regozijam as formas corporais de Antoine d'Agata ou Claude Fauville e Jeanloup Sieff nos concede o prazer de observar um traseiro feminino na janela do vizinho, não podemos deixar de citar os dois traseiros masculinos como ondas de Herb Ritts, a carne compacta do modelo feminino carnudo de Díaz Burgos ou as costas mais carnais e eróticas imortalizadas pela câmera de Carlos Pérez Siquier.
O prato forte da foto humanista é constituído pelas prostitutas fotografadas por Henri Cartier-Bresson ou as outras prostitutas de Joan Colom, fotografadas nas ruas do bairro chinês em Barcelona no final dos anos 50, as "partes pudendas" da cidade, como disse o escritor francês André Pieyre de Mandiargues.
"Ocultos" nos oferece tantos traseiros quantos olhares foram lançados através do visor, mas é indubitável que, como disse Duchamp, é o espectador quem contempla o ato criativo.
E aí estão para a ocasião Marilyn Monroe sentada de costas diante da câmera de Eve Arnold ou o ostensivo traseiro de um lutador de sumô retratado por William Klein.
A ironia aparece no pequeno e compacto traseiro masculino, em um maiô listrado bizarro que traça uma construção geométrica sobre a horizontalidade do mar na foto de Julio Alvarez Yagüe ou no casal nudista visto por trás com véu e chapéu de aba larga, de Elliott Erwitt.
Outras fotografias se aproximam da pintura, como os corpos tatuados do coreano Kim Joon ou as marcas de nádegas e mão na fotografia de Wolfgang Pietrzok. A fotografia etnográfica de ontem e de hoje também se encontra em "Ocultos", com a imagem de uma tribo primitiva de George Rodger ou com o rito vodu nas reportagens de Cristina García Rodero.

Espelhos
Novas sensibilidades aparecem sob a pauta do feminismo, como nas fotografias de grupos masculinos, soldados ou marinheiros, em Georgia Fiorio, na sensibilidade lésbica dos nus da argentina Alicia d'Amico ou nas fotos de Susan Meiselas e Ellen von Unwerth.
Um panorama que se completa com a relação entre nu e espaço em Jo Brunenberg ou Harry Callahan, com as poéticas nostálgicas e evanescentes de Vari Caramés, Fernando Manso e Encarna Marín, com pintores-fotógrafos como René Magritte e cenas de cabaré como as oferecidas por Aaron Siskind e Burt Glinn. Brincar com o traseiro em grupo é o tema de Wolfgang Tillmans, enquanto corpo e tragédia se encontram em Ricky Dávila e Jesús Micó.
A fotografia se constitui aqui em um espelho capaz de captar no traseiro a alma secreta que lhe dá identidade, e, como a fotografia esconde mais do que mostra, a exposição "Ocultos" oferece muito jogo ao espectador, o autêntico protagonista.


A íntegra deste texto saiu no "El País". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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