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O macaco e o aventureiro
Busca de uma medida de alcance universal resulta
em uma zona de indefinição que pode
pôr em xeque esse padrão
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Num mundo globalizado seria de esperar que as culturas e os modos de
vida se globalizassem. Mas a forma como isso
aconteceu foi uma surpresa:
em vez de todos os povos se
fundirem sob as forças do progresso imperial, cada um vai se
isolar e se afirmar no espaço
global por suas diferenças.
Cria-se a ilusão de que o shopping center pode ser usado das
formas mais diferentes.
Ainda o que está na moda é o
multiculturalismo e a biodiversidade. Muitos continuam
acreditando que cada povo
possua um modo próprio de vida cuja forma nunca poderia
ser traduzida para outras. Mas
não está na hora de perguntar
se, entre os povos e as culturas,
não se firma uma semelhança
de família que, sem traçar um
elo comum entre eles, os reúne
mesmo assim numa identidade
especialíssima?
Nos séculos 19 e 20, a história alinhavava num mesmo
processo as diferentes formas
de ser homem. Essa idéia nascia da confluência de duas tradições; de um lado, aquela judaico-cristã, segundo a qual, depois do pecado original e da
expulsão do Paraíso, os seres
humanos, auxiliados pela graça
divina, trilhando os caminhos
da virtude, se irmanariam na
caridade e na cidade de deus.
De outro lado, a influência do
evolucionismo darwiniano, ensinando que cada espécie resulta de uma seleção natural
depurando os mais fortes.
Hoje em dia, perdemos a
crença tanto na linearidade
dessa evolução quanto na sua
continuidade temporal, como
se o novo já estivesse desenhado no velho. Em resumo, coloca-se em xeque a idéia de um
progresso geral da humanidade, cuja história então se daria
com avanços e recuos.
Não é por isso que cada identidade -do sujeito, da cultura,
do povo- deixou de ter história. Mas esta é pensada em termos diferentes que de um simples progredir.
Mesmo quando não se duvida de que o homem a faz conforme os meios que encontra à
sua disposição, não há porque
acreditar que o programa da
sociedade futura já esteja inscrito no passado.
Sempre há um salto para o
novo, que só pode ser compreendido depois de dado. Toda a dificuldade reside em como interpretar esse salto. Lembremos que nem mesmo para o
marxismo, para o qual o modo
de produção posterior criava,
graças às suas crises, o modelo
do modo de produção posterior, esse salto seria necessário,
pois, como diz uma expressão
conhecida, se não construirmos o socialismo, cairemos na
barbárie.
Nesse ponto a dificuldade
consiste em aceitar que, mesmo se traços de modos de produção anteriores podem sobreviver nos poros do posterior, haveria um modo de produção
absolutamente superior, cujas
contradições globalizassem as
histórias anteriores numa pré-história, a dar nascimento à
verdadeira história, a história
da liberdade humana.
Note-se que os ideólogos que
andaram proclamando o fim da
história, já que todo o mundo
estaria se democratizando,
pensam a mesma coisa com sinal invertido.
Atualmente vários conceitos
de história competem entre si.
O mais conhecido entre nós foi
desenhado, sobretudo, pelo filósofo Michel Foucault, pelo
historiador Paul Veyne e pelo
filósofo polígrafo Gilles Deleuze. Em termos brevíssimos e
canhestros esses autores se declaram nominalistas, tratando
de apreender o acontecimento
histórico na sua individualidade, vale dizer, naquilo em que
se torna diferente dos outros,
sem ter no horizonte uma
identidade subjacente.
Paul Veyne, por exemplo,
acaba de publicar "Quand Notre Monde Est Devenu Chrétien (312-394)" [Quando Nosso
Mundo Se Tornou Cristão, ed.
Albin Michel; leia entrevista
com o autor no Mais! de 13/5],
onde mostra que a instalação
do cristianismo como religião
oficial do Império Romano dependeu, sobretudo, da mania
de grandeza de Constantino,
que, considerando-se grande
imperador, necessitava de uma
nova grande religião.
O historiador não é tolo de
negar o fato de que o cristianismo se espraiava pelas veias do
império, mas sua oficialização,
sua elevação a nível de religião
de Estado, dependeu antes de
tudo do ato de um personagem
extremamente criativo.
Ora, o que vem a ser essa
criatividade em história e nos
outros planos da criação humana? Não imaginemos que possa
ser alinhavada num gênero,
mas cabe perguntar se apenas
arruma dados já existentes ou
inventa novas formas de vida
que, se já foram pressentidas
no passado, ostentam estruturas inteiramente novas.
No fundo, nessas questões,
valendo nos mais diversos níveis do real, reside uma dificuldade lógica: como a identidade
já posta se abre para a diferença? Lembremos que a palavra
"identidade" é imprecisa e deveria ser reformulada em cada
nível de discurso em que opera.
No entanto, se os indivíduos
tecem entre si os relacionamentos mais diversos, todos
eles se cristalizam em regras
que vão ser ou não seguidas.
Ou porque se faz o correto ao
invés do incorreto -o que ainda é uma forma de seguir uma
regra- ou porque simplesmente é posta de lado, seja tendo sido substituída por outra,
seja simplesmente negada como um todo.
Vale a pena atentar para esse
processo de seguir uma regra.
Fique bem claro que há regras
e regras, com diferentes padrões de normatividade, cada
um ligado a seu próprio jogo de
linguagem. No entanto, mesmo
nos jogos mais fechados, como
no xadrez, a partida se desenrola lidando com certas zonas
de indefinição, com peças de
madeira ou de marfim ou ainda
meros signos que as substituam. E nunca se sabe quem
ganhará a partida.
Uma regra discrimina casos.
Ora, esse discriminar, mesmo
quando é dominado por um
ver, imputa ao caso uma identidade, uma medida. "Medida" é
uma palavra dita das mais variadas maneiras, mas que em
geral está ligada a um processo
específico de mensuração que
deixa ao redor uma zona de indefinição.
Sempre repito o exemplo do
metro, pois não conheço exemplo mais simples para mostrar
como funciona essa indefinição. Depois de uma longa história, convencionou-se que
uma barra de platina em tais e
tais condições passasse a ser
tomada como padrão de medida do comprimento.
Mas essa "definição" nada
vale sem os atos de mensuração, cujos resultados variam no
interior de um intervalo aceito
conforme o uso que se empresta ao processo. O alfaiate aceita
variações que seriam intoleráveis para um relojoeiro.
Quando, porém, se pretende
medir a distância entre os astros, dada as enormes distâncias e a especificidade dos processos de mensuração, o metro
perde serventia. O resultado
medido em anos-luz, porém, se
reduz facilmente a metros com
a ajuda de um computador.
Embora a medida em metro se
mostre inadequada, os percalços do medir com o metro preparam a aceitação da nova medida, o ano-luz.
Em resumo, o exercício de
um padrão de medida abre
uma zona de indefinição que
pode modificar a definição do
próprio padrão inicial. Até que
ponto cabe perguntar se essa
indefinição criadora não é uma
espécie muito particular de negatividade? A identidade do padrão, em vez de residir na sua
definição, não reside nos juízos
que são feitos por ele?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve regularmente na seção "Autores".
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