São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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LIVROS

Um mundo ao revés



Em "Guy Debord", Anselm Jappe analisa o pensamento do autor de "A Sociedade do Espetáculo"
OLGÁRIA CHAIM FERES MATTOS
especial para a Folha

 "O fetichismo é o segredo basilar da sociedade moderna (...), o inconsciente social, o id do espetáculo (...); é o triunfo do parecer e do ver, lá onde a imagem substitui a realidade através de uma contínua simulação."
Anselm Jappe

O sujeito epistemológico, o indivíduo político e a pessoa moral pertencem ao campo semântico da tradição ocidental do "logos" grego ou "ratio" latina. Ser dotado de razão, o homem é "homo faber" -aquele que fabrica seu próprio destino. Outra maneira de dizer que somos capazes de auto-determinação, autonomia e liberdade. As premissas desse universo tranquilizador podem ser encontradas na formulação leibniziana do "princípio de razão suficiente", ponto de referência estável do conhecimento e da verdade. Esta se oferece, a um só tempo, como espetáculo e especulação: a verdade é evidência, visível por todos os seus lados no exercício lógico da razão. O conhecimento é operação do olhar e da linguagem, pois vêem o invisível. "Olho" e "espírito", o "olho do espírito", guiam-se pelo princípio de não-contradição e da razão suficiente. Estes constituem os indícios para que o discurso sobre o mundo não seja arbitrário, indiscernível, absurdo e escape à compreensão racional.
Sua antítese moderna é o mundo "sem-razão", a sociedade do espetáculo. Anselm Jappe reconhece nos textos de Debord a tematização de uma verdadeira mutação antropológica do olhar e da palavra... A sociedade de espectadores é domínio do "sem razão", do "sem-palavra": "Debord volta com frequência ao caráter "totalmente ilógico" do espetáculo" (pág. 178). Na sociedade do espetáculo, "toda a lógica desapareceu com o diálogo que é sua base social" (idem). Regido pela anarquia das leis econômicas, o mercado mundial é a figura moderna da fatalidade do destino. E, assim como a mercadoria se autonomiza com respeito ao valor de uso, a imagem abandona as coisas que supostamente representa. É imagem sem objeto, imagem-mercadoria.
Enigma da contemporaneidade, o mercado cria um mundo ao revés. Transfere, invertendo, o poder do criador à criatura, do trabalhador a seus produtos, das coisas a suas imagens. A sociedade do espetáculo produz em permanência e simultaneidade o espectador passivo e "imensos palácios do efêmero" -imagens da mídia e da propaganda publicitária-, para glorificar a mercadoria, a novidade, a máquina, o progresso, o Capital.
Anselm Jappe explicita, também, a maneira pela qual Debord, na senda weberiana, reconhece a irracionalidade da racionalização na extensão do controle racional-técnico dos processos materiais e sociais e na desumanização do mundo, a começar pela "queda tendencial do valor de uso": "A subordinação crescente de todo o uso", escreve Jappe, "mesmo o mais corriqueiro, às exigências do desenvolvimento da economia, (...) à simples quantidade", resulta na adesão dos homens a um trabalho desprovido de sentido, como também perdem o controle do uso de suas vidas (pág. 26).
Essa análise se prolonga no manifesto do Grupo Krisis contra o trabalho, ao qual pertence o autor: "O quê, para quê e com que consequências se produz, no fundo, não interessa, nem ao vendedor da mercadoria força-de-trabalho nem ao comprador. Os trabalhadores das usinas nucleares e das indústrias químicas protestam veementemente quando se pretende desativar as suas bombas-relógio. E os "ocupados" da Volkswagen, Ford e Toyota são os defensores mais fanáticos do programa suicida automobilístico" (pág. 32).
Para Jappe, leitor de Debord e, entre outros, de Adorno, a crise do mundo do trabalho é crise do capitalismo, da civilização antiiluminista e irracional, cujas práticas e valores tomam o trabalho como destinação ontológica do homem: "O conteúdo da produção é indiferente tanto quanto o uso dos produtos e suas consequências sociais e naturais. Se se constroem casas ou se se produzem campos minados, se se imprimem livros, se se criam tomates transgênicos, se as pessoas adoecem, se o ar está poluído ou se apenas prejudica-se o "bom gosto", isso não interessa" (pág. 29).
Ao lutar pelo direito ao trabalho, o trabalhador se coloca na lógica da acumulação capitalista, a mesma que desemprega para superacumular-se e hiperconcentrar-se; ao levantar a reivindicação "nós somos o Capital", o homem pós-tecnológico luta por sua servidão como se fosse sua liberdade. Participando da mesma perversão, ao atual estágio da necessidade do capital correspondem as modernas democracias nas quais o político se converte em impolítico (e vice-versa): dá-se a despolitização do voto e a "politização" da imagem.
A "nova realidade" não é nem contemplativa nem objetiva; ela é "falsificação do real": "A espetacularização da política", escreve o autor, "a substituição do argumento pelo spot publicitário e do programa de governo pela tentativa de aparecer com a maior frequência possível na televisão são apenas aspectos mais visíveis dessa mudança que marca nossa época. A política não goza mais de nenhuma autonomia ou liberdade de decisão, mas está reduzida à política econômica". Falsificação é, também, dissimulação: "Nos "Commentaires" de Debord", continua o autor, "o espetáculo tem os meios de falsificar tanto a produção quanto a percepção (...). A idéia de que a realidade possa ser falsificada envolve problemas conceituais (...). Aqui a teoria de Debord parece (...) revelar uma raiz que se poderia chamar de "platônica'" (pág. 179).
A referência a Platão é aqui imperativa. O mundo moderno é caverna ao ar livre onde tudo se mostra e se expõe. Cultua as aparências, cultiva ilusões pela imitação-falsificação múltipla e variada de objetos e situações, criando simulacros -dimensão própria a experiências fantasmáticas, como fantasmagórico é também o mundo fetichista das mercadorias.
Platão e Marx, por diferentes razões, revelam um modo de autonomização das imagens com respeito à realidade que pretendem substituir - e isso, em um sentido limite, é experiência alucinatória: "O espetáculo é inimigo da verdade a ponto de ser o reino da loucura" (pág. 178). O espetáculo moderno é o das imagens abstratas e da abstração do "mundo real". Capturado na rede do sistema que produz mercadorias e desrealização (Entwirklichung), o espetáculo reduz a experiência -qualitativa, única e não-intercambiável- à vivência pontual e sem memória, transforma a história em natureza, em presente perpétuo; determina também perturbação anímica em um mundo sem sentido humano, inconsciente de seus fins.
Eis por que Jappe observa: "O espetáculo cria um presente eterno em que a repetição contínua das mesmas pseudonovidades faz desaparecer toda memória histórica (...) a fim de que nenhum acontecimento possa mais ser compreendido em suas causas e em suas consequências (...) Disso resulta a dissolução de toda lógica, não só da lógica dialética, mas simplesmente da lógica formal (...). O próprio passado pode ser remodelado impunemente, assim como a imagem pública de uma pessoa (...). Como "ainda seria possível haver cidadãos'?".
Crítica radical do presente, o pensamento de Debord foi uma das mais marcantes presenças intelectuais do Maio de 68 parisiense: "Foi a primeira revolta moderna", anota Jappe, "que não se fez em nome de reivindicações econômicas ou estreitamente políticas. Nasceu, antes, da exigência de uma vida diversa, autônoma e liberada da tirania do mercado e do Estado". Pode-se dizer que o Maio de 68 recusou cabalmente pertencer ao século 20. Criticou a sociedade do espetáculo, a ética do consumo, o urbanismo da alienação, a lógica do mercado, da indústria, da ciência e da técnica em suas consequências anti-humanas. Recusou a moral tecnocrática e a economia subtraída ao controle humano. Recusou a transcendência do poder e a eficácia de suas leis.
Nesse horizonte, revolucionar o cotidiano implica desfetichizar o tempo. O homem da sociedade do espetáculo, quanto mais tecnologia produz, menos tempo tem; na verdade, teme o tempo: "O tempo lhe dá medo", escreve Debord, "porque é feito de saltos qualitativos, de escolhas irreversíveis, de oportunidades que nunca voltarão". Jappe reconhece, nos escritos de Debord, máximas morais, constituindo fonte de orientação na vida e no pensamento: "Os textos de Debord", anota Jappe, "sobretudo os últimos, impressionam também pela beleza das inúmeras citações; as que tratam da vaidade dos homens e da passagem do tempo têm aí um lugar privilegiado. Omar Khayyan e Shakespeare, Homero e o Eclesiastes (...). Essas considerações, assim como seu extremo desprezo pela pequena vida dos homens que aceitaram submeter-se ao espetáculo, fizeram de Debord uma figura comparável aos grandes moralistas franceses da época clássica" (pág. 150).
Anselm Jappe indica, por fim, a tarefa do presente: contrapor à sociedade do espetáculo uma nova "teoria crítica da sociedade" que seja, também, crítica dos costumes, para romper com o caráter sadomasoquista da civilização contemporânea.


Olgária Chaim Feres Mattos é professora do departamento de filosofia da USP, autora, entre outros, de "Arcanos do Inteiramente Outro" (Brasiliense).


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