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HISTÓRIA
Liberdade, igualdade, frivolidade
Divulgação
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O francês Daniel Roche, autor de "A Cultura das Aparências", cuja obra não foi traduzida no Brasil |
MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE
PETER BURKE
especial para a Folha
Daniel Roche, nascido em 1935,
professor recém-eleito do prestigioso Collège de France, é um dos
mais eminentes historiadores
franceses de hoje. Incompreensivelmente, entretanto, nenhuma
de suas obras foi até agora traduzida para o português. Especialista do século 18, Roche pertence à
terceira geração do grupo dos Annales, à geração que, nas palavras
de Emmanuel Le Roy Ladurie,
transferiu seus interesses "do porão para o sótão", ou seja, da história econômica para a história
cultural.
Aluno do historiador marxista
Ernest Labrousse, mais conhecido por seu pioneiro estudo sobre
as origens econômicas da Revolução Francesa, Daniel Roche escolheu para seu doutorado um tema
de história cultural que o distanciava de seu mestre: o papel das
acadêmicas provinciais francesas
na difusão e na produção do discurso iluminista.
Desde então, seu trabalho se desenvolveu em três frentes: história
do livro e da leitura, história da cidade e história da cultura material, os três temas em conjunto
constituindo, como diz, "uma
maneira mais ampla de propor
uma leitura social da cultura".
Seu livro "Le Peuple de Paris"
(O Povo de Paris, 1981), que se
propunha a "reler a história dos
comportamentos populares dos
parisienses", foi notável em vários
aspectos, dentre outros por ter
mostrado que a Revolução não
era filha da miséria, como queriam uns, ou da prosperidade, como queriam outros. Defendendo
uma explicação mista, Roche argumentou que o aumento de dificuldades que o povo enfrentou foi
inseparável do surgimento de novas exigências, novos valores e de
novas ambições de vida.
Foi durante sua pesquisa sobre
a cultura popular parisiense que
Roche fez o que considera sua
realização mais importante: a descoberta da autobiografia de Jacques-Louis Ménétra, um vidraceiro parisiense que viveu durante o
Antigo Regime e a Revolução.
Com esse achado -que Roche
publicou em 1982, com um ensaio
interpretativo sobre o homem e
seu meio-, pôde suplementar
sua análise quantitativa da cultura
popular com uma visão de dentro, mostrando como um determinado artesão percebia seu trabalho, seu lazer e também a Revolução Francesa, já que Ménétra
nela participou como militante.
O livro mais notável de Roche é
talvez o "La Culture des Apparences" (A Cultura das Aparências,
1989), uma história das roupas no
século 18 francês, que já anuncia
outro estudo brilhante, com o sugestivo título de "Histoire des
Choses Banales" (História das
Coisas Banais, 1997). O que torna
esse livro sobre a cultura das aparências especialmente original é o
modo como Roche usa as roupas
como evidência das atitudes e valores de seus usuários. Assim,
uma história que parece, à primeira vista, preocupada unicamente com a superfície, se revela
como um meio de investigar estruturas profundas.
Daniel Roche recebeu a Folha
para a entrevista a seguir, na famosa École Normale, na rue
d'Ulm, em Paris, onde dirige o
Instituto de História Moderna há
vários anos.
Folha - O que o fez se tornar
historiador?
Daniel Roche - Venho de uma
família da média burguesia. Meu
pai foi primeiramente um oficial e
depois se dedicou à administração; enfim, seguiu um itinerário
em nada intelectual. Eu era aquela
pessoa que tinha sempre que explicar para meus pais e irmãos
qual é o trabalho de um historiador ou de um professor. No entanto, minha família era bastante
culta. Havia muitos livros à disposição, lia-se muito, mas não livros
de história.
Diria, pois, que meu interesse
específico pela história surgiu por
influência de meus professores do
ensino secundário. Eu poderia ter
optado por permanecer um professor de história do liceu, o que
nos anos 60 ainda era uma opção
interessante e honrosa. E, diferentemente da violência de agora, os
alunos eram calmos e menos numerosos. Assim, a idéia de me tornar historiador se deveu novamente a meu encontro com professores; só que agora aos que conheci na Universidade de Paris e
na École Normale.
Folha - Como parisiense e observador-participante dos famosos eventos de Maio de 1968,
poderia dizer que impacto eles
tiveram sobre o sr. naquela ocasião? E quão importantes esses
eventos lhe parecem em retrospecto? Diria que eles afetaram
sua visão de história e, particularmente, da história da Revolução Francesa?
Roche - Devo confessar que tudo aquilo nos pegou de surpresa.
Nessa época eu já era um "maître
de conferences" ou "professor associado" da École Normale e, à
parte alguns alunos militantes,
trotskistas e maoístas, eles eram
relativamente distantes do engajamento político que muitos de
nós, professores, tínhamos.
No meu caso, por exemplo, pertencia ao que se chama de "sindicato nacional do ensino superior", participava de suas manifestações, sem me dar conta de
quais poderiam ser, a longo prazo, as consequências de nossos
brados. Desempenhei um papel
um pouco mais preciso quando o
sindicato me pediu que cuidasse
da Sorbonne quando ela foi tomada. Foi assim que, durante os meses de maio e junho de 68, fui o
principal responsável sindical pela ocupação da Sorbonne! Esse
foi, sem dúvida, um papel bem
desagradável, do qual não tenho
boas memórias, pois logo fui chamado de "o Beria da Sorbonne".
Para mim, que não era tentado a
exercer qualquer atividade política, foi uma experiência histórica
interessante sobre a maneira como um acontecimento como esse
pode usar as pessoas e contribuir
para transformá-las -nem sempre num bom sentido.
Diria, pois, que minha concepção da história propriamente dita
não foi profundamente marcada
por essa experiência. O que ela fez
foi me ensinar a relativizar um
certo número de coisas, como,
por exemplo, os grandes eventos
da Revolução Francesa. Quando
não se pode dormir durante dois
meses, como foi o caso do Comitê
de Saúde Pública, acaba-se ficando muito nervoso.
Folha - Após o estudo da cultura de elite o sr. se voltou para
a cultura popular, com "Le Peuple de Paris". O que o fez mudar
de direção? Estava seguindo as
novas tendências da história urbana e da história da cultura popular?
Roche - Bem, isso nos leva a
1980, quando eu já me tornara
professor da universidade, o que
muda muito as condições de trabalho. Eram seis horas de curso
por semana, mais o Centre Nationale de Recherches Sociales
(CNRS), a École des Hautes Études, enfim, era preciso preparar
muita coisa e ainda fazer com que
os alunos trabalhassem.
Ora, uma questão de política
imediata era como interessar os
alunos de uma universidade, na
qual os recrutados eram, em
grande parte, de esquerda. Para
interessar esses grupos de estudantes que só acreditavam na realização de uma revolução imediata, ocorreu-me fazê-los compreender a idéia de povo, de cultura popular, de massas operárias
e coisas do gênero.
Folha - Sua mudança de tópico
parece ter sido acompanhada
por uma mudança de método,
tendo ganhado grande peso em
suas obras o trabalho de equipe. Poderia falar sobre isso?
Roche - Há mais do que um modo de se conceber o trabalho coletivo na historiografia dos anos 60
a 80. Um deles é o que predominava nas instituições como a École des Hautes Études ou o CNRS,
onde se reúnem professores e
pesquisadores trabalhando sobre
temas afins, o que pode, eventualmente, resultar em publicações
importantes como foi o "Livre e
Société", sob a direção de François Furet.
Foi essa publicação que acabou
determinando a decolagem de
história do livro e uma reorientação da história da leitura, da história da alfabetização etc. Outro
tipo de trabalho coletivo -e nisso
fui pioneiro- é aquele em que o
professor mobiliza alunos para
trabalhar sobre temas comuns e,
em conjunto com eles, decide visitas aos arquivos, define os protocolos de análise de documentos,
determina o que vão fazer e, finalmente, reúne tudo.
O professor, nesse caso, funciona como um organizador ou, se
quiser, um mestre de obras, que
organiza e publica os resultados.
No meu entender, nesse tipo de
trabalho todos ganham, tanto os
alunos como o professor. Na
maioria dos livros que publiquei
há uma longa lista de estudantes,
mostrando que eu não poderia ter
escrito o "Le Peuple de Paris" ou
"La Culture des Apparences",
sem sua cooperação.
Folha - Em "La Culture des Apparences", o sr. defendeu uma
idéia bastante ousada, quando
colocou lado a lado frivolidade,
igualdade e liberdade. Poderia
dar uma breve idéia de como a
moda no século 18, e especialmente a moda feminina, teve
um efeito liberador e igualador?
Roche - Ao estudar a cultura das
aparências, tentando recuperar a
história das roupas e relacioná-la
com mudanças socioculturais,
queria, na verdade, compreender
um funcionamento social geral
do consumo e não somente do
consumo feminino.
Se quisesse obter sucesso nos
Estados Unidos, eu teria me ligado claramente à história do gênero, à história das mulheres, o que
não fiz. Em vez disso, deixei tudo
meio à francesa, de um modo republicano-universalista, totalmente criticável como sendo uma
linguagem politicamente incorreta. Mas estou pronto a admitir
que as mulheres foram as pioneiras desse tipo de consumo no início do século 18 e continuaram a
ser pioneiras no fim do século,
impulsionando todo um movimento econômico e toda uma
transformação pela aquisição de
novos hábitos, transformação essa que se abriu para novos tipos
de liberdade.
Nos 30 anos que precederam a
Revolução Francesa há feministas
e toda uma imprensa feminista a
estimular novas reivindicações e a
instar as mulheres a ler e a se ligar
à classe culta. Ao lhes propor novas modas e novos objetos, propunham-lhes, ao mesmo tempo,
novas leituras e um conjunto de
novas idéias. Daí, então, essa junção que vejo entre igualdade, fraternidade e frivolidade.
Folha - O sr. editou, com Robert Darnton, um livro intitulado "Revolution in Print", no
qual se argumenta que sem a
imprensa os revolucionários poderiam ter tomado a Bastilha,
mas não derrubado o Antigo Regime. O que foi mais importante
para o solapamento da velha ordem: a "revolução da imprensa"
ou a "revolução das roupas"?
Roche - Para certas coisas foi seguramente a imprensa, mas a
transformação no consumo de
roupas também afetou profundamente outras coisas. Acredito firmemente que, quando levamos
em conta essa transformação,
nossas perspectivas se ampliam
sensivelmente. O trabalho que fiz
com Darnton tinha o objetivo de
refletir sobre o que tornou possível o grande acesso aos impressos
na sociedade francesa.
Darnton tem a respeito disso
uma teoria bem precisa. Para ele,
foi um tipo específico de literatura
-a que ele chama de pornografia
política- que está na origem da
dessacralização da imagem do
poder real. A questão principal,
no meu entender, é saber se essa
literatura foi eficaz porque encontrou um terreno já pronto para se
transformar. A tese de Darnton
pode ainda conservar sua força,
mas dentro de um quadro mais
amplo, em que se discute o que
tornou possível a apropriação de
novas idéias pelas diferentes categorias sociais. É aí que as transformações da cultura material, que a
"revolução nas roupas", adquirem sua importância.
Folha - O sr. se refere a uma
variedade de teóricos como
Freud, Elias, Barthes etc. Como
os seleciona e os combina?
Roche - Não sou freudiano, apesar de saber que não se pode trabalhar sobre roupas sem se fazer
um pouco de leitura psicanalítica,
o que, no entanto, não é nada fácil. Dá vontade de chorar quando
se vê os absurdos que aparecem
nesse domínio, falando de barbaridades como o "fetichismo das
roupas" e coisas desse tipo. Já
Elias me parece fundamental, e
desde 1974 recomendo a meus
alunos que o leiam.
Quanto à utilização de teorias,
eu não sou daqueles que a todo
momento estão a dizer coisas como "meu instrumental eu o encontrei em Elias" ou "é no conceito de distinção que vou explicar o
funcionamento da fabricação dos
sapatos no bairro do Marais" etc.
Todo esse tipo de coisa é meio irritante, a meu ver. Não é porque
se cita Bourdieu, De Certeau ou
Ricoeur que se vai resolver todos
os problemas históricos. Além do
mais, por que só citar esses e não
outros, como, por exemplo, Simmel, que é tão importante quanto
Weber? Simplesmente porque,
apesar de sua importância, ninguém o conhecia antes de ser traduzido para o francês.
Folha - O que diria do impacto
de Foucault sobre os historiadores? Ele tem alguma especial relevância para o seu trabalho?
Roche - Cheguei a trabalhar
com Foucault durante 15 dias nos
arquivos do Arsenal, quando eu
fazia uma pesquisa para Furet sobre tudo o que concernia à censura. E Foucault estava no mesmo
projeto. Lembro-me que íamos
fumar nossos cigarros juntos, nos
intervalos, e ele me falava um
pouco sobre sua mãe, seus pais, e
um dia ele simplesmente desapareceu. E eu nunca mais o revi.
Naquela época, 1960, ele ainda
não era o grande Foucault, o teórico. Na corporação de historiadores franceses sempre houve
uma certa desconfiança para com
o filósofo que se torna historiador, atitude que acho errada. Teria sido melhor entrar no jogo e
dialogar com Foucault, em vez de
simplesmente dizer que ele não tinha estudado os documentos.
E, depois, houve aquele fenômeno da vedetização promovido,
em parte, pela mídia, o que fez
com que Foucault se tornasse
meio inacessível para quem não o
conhecera antes muito bem. O
sistema francês tem esse não sei
quê de irritante que faz com que
se exporte para os Estados Unidos
nossas vedetes. As vedetes do cinema americano vêm para a
França, enquanto nossas vedetes
intelectuais vão para os Estados
Unidos, onde são idolatradas. Esse é um fenômeno digno de ser estudado: por que pessoas como
Barthes, Foucault, Michel Serres e
René Girard se transformam em
gurus nos Estados Unidos?
Folha - O sr. acabou de ser
eleito para o Collège de France.
Poderia falar um pouco sobre a
importância dessa instituição?
Roche - Há uma espécie de mitologia do Collège de France, porque seguramente aí estiveram figuras notáveis com as quais poucas pessoas podem se identificar.
Na Alemanha há pouco tempo,
alguém me disse: "Então, você é o
sucessor de Michelet!". Esse comentário me fez ficar vermelho
de vergonha. O Collège realmente
reuniu figuras intelectuais importantes do século 19 e 20, como Michelet, Renan e uma quantidade
de grandes cientistas. Há, sem dúvida, figuras de grande força inspiradora, que contribuíram significativamente para a reflexão filosófica, como Foucault, por exemplo, ou outros, como Duby e Le
Roy Ladurie, que tiveram um papel significativo na paisagem intelectual. Mas nem todos os recrutados têm a mesma força. Eu, pelo
menos, não tenho a pretensão de
me identificar com estes monumentos.
Maria Lúcia Pallares-Burke é professora de
história da educação na Faculdade de Educação da USP e autora de "The Spectator - O
Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18" (Hucitec).
Peter Burke é historiador inglês, autor de "A
Arte da Conversação" (Unesp) e "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria), entre outros.
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