São Paulo, Domingo, 07 de Novembro de 1999
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HISTÓRIA

Liberdade, igualdade, frivolidade


Divulgação
O francês Daniel Roche, autor de "A Cultura das Aparências", cuja obra não foi traduzida no Brasil



MARIA LÚCIA PALLARES-BURKE


PETER BURKE
especial para a Folha

Daniel Roche, nascido em 1935, professor recém-eleito do prestigioso Collège de France, é um dos mais eminentes historiadores franceses de hoje. Incompreensivelmente, entretanto, nenhuma de suas obras foi até agora traduzida para o português. Especialista do século 18, Roche pertence à terceira geração do grupo dos Annales, à geração que, nas palavras de Emmanuel Le Roy Ladurie, transferiu seus interesses "do porão para o sótão", ou seja, da história econômica para a história cultural.
Aluno do historiador marxista Ernest Labrousse, mais conhecido por seu pioneiro estudo sobre as origens econômicas da Revolução Francesa, Daniel Roche escolheu para seu doutorado um tema de história cultural que o distanciava de seu mestre: o papel das acadêmicas provinciais francesas na difusão e na produção do discurso iluminista.
Desde então, seu trabalho se desenvolveu em três frentes: história do livro e da leitura, história da cidade e história da cultura material, os três temas em conjunto constituindo, como diz, "uma maneira mais ampla de propor uma leitura social da cultura".
Seu livro "Le Peuple de Paris" (O Povo de Paris, 1981), que se propunha a "reler a história dos comportamentos populares dos parisienses", foi notável em vários aspectos, dentre outros por ter mostrado que a Revolução não era filha da miséria, como queriam uns, ou da prosperidade, como queriam outros. Defendendo uma explicação mista, Roche argumentou que o aumento de dificuldades que o povo enfrentou foi inseparável do surgimento de novas exigências, novos valores e de novas ambições de vida.
Foi durante sua pesquisa sobre a cultura popular parisiense que Roche fez o que considera sua realização mais importante: a descoberta da autobiografia de Jacques-Louis Ménétra, um vidraceiro parisiense que viveu durante o Antigo Regime e a Revolução. Com esse achado -que Roche publicou em 1982, com um ensaio interpretativo sobre o homem e seu meio-, pôde suplementar sua análise quantitativa da cultura popular com uma visão de dentro, mostrando como um determinado artesão percebia seu trabalho, seu lazer e também a Revolução Francesa, já que Ménétra nela participou como militante.
O livro mais notável de Roche é talvez o "La Culture des Apparences" (A Cultura das Aparências, 1989), uma história das roupas no século 18 francês, que já anuncia outro estudo brilhante, com o sugestivo título de "Histoire des Choses Banales" (História das Coisas Banais, 1997). O que torna esse livro sobre a cultura das aparências especialmente original é o modo como Roche usa as roupas como evidência das atitudes e valores de seus usuários. Assim, uma história que parece, à primeira vista, preocupada unicamente com a superfície, se revela como um meio de investigar estruturas profundas.
Daniel Roche recebeu a Folha para a entrevista a seguir, na famosa École Normale, na rue d'Ulm, em Paris, onde dirige o Instituto de História Moderna há vários anos.

Folha - O que o fez se tornar historiador?
Daniel Roche -
Venho de uma família da média burguesia. Meu pai foi primeiramente um oficial e depois se dedicou à administração; enfim, seguiu um itinerário em nada intelectual. Eu era aquela pessoa que tinha sempre que explicar para meus pais e irmãos qual é o trabalho de um historiador ou de um professor. No entanto, minha família era bastante culta. Havia muitos livros à disposição, lia-se muito, mas não livros de história.
Diria, pois, que meu interesse específico pela história surgiu por influência de meus professores do ensino secundário. Eu poderia ter optado por permanecer um professor de história do liceu, o que nos anos 60 ainda era uma opção interessante e honrosa. E, diferentemente da violência de agora, os alunos eram calmos e menos numerosos. Assim, a idéia de me tornar historiador se deveu novamente a meu encontro com professores; só que agora aos que conheci na Universidade de Paris e na École Normale.

Folha - Como parisiense e observador-participante dos famosos eventos de Maio de 1968, poderia dizer que impacto eles tiveram sobre o sr. naquela ocasião? E quão importantes esses eventos lhe parecem em retrospecto? Diria que eles afetaram sua visão de história e, particularmente, da história da Revolução Francesa?
Roche -
Devo confessar que tudo aquilo nos pegou de surpresa. Nessa época eu já era um "maître de conferences" ou "professor associado" da École Normale e, à parte alguns alunos militantes, trotskistas e maoístas, eles eram relativamente distantes do engajamento político que muitos de nós, professores, tínhamos.
No meu caso, por exemplo, pertencia ao que se chama de "sindicato nacional do ensino superior", participava de suas manifestações, sem me dar conta de quais poderiam ser, a longo prazo, as consequências de nossos brados. Desempenhei um papel um pouco mais preciso quando o sindicato me pediu que cuidasse da Sorbonne quando ela foi tomada. Foi assim que, durante os meses de maio e junho de 68, fui o principal responsável sindical pela ocupação da Sorbonne! Esse foi, sem dúvida, um papel bem desagradável, do qual não tenho boas memórias, pois logo fui chamado de "o Beria da Sorbonne".
Para mim, que não era tentado a exercer qualquer atividade política, foi uma experiência histórica interessante sobre a maneira como um acontecimento como esse pode usar as pessoas e contribuir para transformá-las -nem sempre num bom sentido.
Diria, pois, que minha concepção da história propriamente dita não foi profundamente marcada por essa experiência. O que ela fez foi me ensinar a relativizar um certo número de coisas, como, por exemplo, os grandes eventos da Revolução Francesa. Quando não se pode dormir durante dois meses, como foi o caso do Comitê de Saúde Pública, acaba-se ficando muito nervoso.

Folha - Após o estudo da cultura de elite o sr. se voltou para a cultura popular, com "Le Peuple de Paris". O que o fez mudar de direção? Estava seguindo as novas tendências da história urbana e da história da cultura popular?
Roche -
Bem, isso nos leva a 1980, quando eu já me tornara professor da universidade, o que muda muito as condições de trabalho. Eram seis horas de curso por semana, mais o Centre Nationale de Recherches Sociales (CNRS), a École des Hautes Études, enfim, era preciso preparar muita coisa e ainda fazer com que os alunos trabalhassem.
Ora, uma questão de política imediata era como interessar os alunos de uma universidade, na qual os recrutados eram, em grande parte, de esquerda. Para interessar esses grupos de estudantes que só acreditavam na realização de uma revolução imediata, ocorreu-me fazê-los compreender a idéia de povo, de cultura popular, de massas operárias e coisas do gênero.

Folha - Sua mudança de tópico parece ter sido acompanhada por uma mudança de método, tendo ganhado grande peso em suas obras o trabalho de equipe. Poderia falar sobre isso?
Roche -
Há mais do que um modo de se conceber o trabalho coletivo na historiografia dos anos 60 a 80. Um deles é o que predominava nas instituições como a École des Hautes Études ou o CNRS, onde se reúnem professores e pesquisadores trabalhando sobre temas afins, o que pode, eventualmente, resultar em publicações importantes como foi o "Livre e Société", sob a direção de François Furet.
Foi essa publicação que acabou determinando a decolagem de história do livro e uma reorientação da história da leitura, da história da alfabetização etc. Outro tipo de trabalho coletivo -e nisso fui pioneiro- é aquele em que o professor mobiliza alunos para trabalhar sobre temas comuns e, em conjunto com eles, decide visitas aos arquivos, define os protocolos de análise de documentos, determina o que vão fazer e, finalmente, reúne tudo.
O professor, nesse caso, funciona como um organizador ou, se quiser, um mestre de obras, que organiza e publica os resultados. No meu entender, nesse tipo de trabalho todos ganham, tanto os alunos como o professor. Na maioria dos livros que publiquei há uma longa lista de estudantes, mostrando que eu não poderia ter escrito o "Le Peuple de Paris" ou "La Culture des Apparences", sem sua cooperação.

Folha - Em "La Culture des Apparences", o sr. defendeu uma idéia bastante ousada, quando colocou lado a lado frivolidade, igualdade e liberdade. Poderia dar uma breve idéia de como a moda no século 18, e especialmente a moda feminina, teve um efeito liberador e igualador?
Roche -
Ao estudar a cultura das aparências, tentando recuperar a história das roupas e relacioná-la com mudanças socioculturais, queria, na verdade, compreender um funcionamento social geral do consumo e não somente do consumo feminino.
Se quisesse obter sucesso nos Estados Unidos, eu teria me ligado claramente à história do gênero, à história das mulheres, o que não fiz. Em vez disso, deixei tudo meio à francesa, de um modo republicano-universalista, totalmente criticável como sendo uma linguagem politicamente incorreta. Mas estou pronto a admitir que as mulheres foram as pioneiras desse tipo de consumo no início do século 18 e continuaram a ser pioneiras no fim do século, impulsionando todo um movimento econômico e toda uma transformação pela aquisição de novos hábitos, transformação essa que se abriu para novos tipos de liberdade.
Nos 30 anos que precederam a Revolução Francesa há feministas e toda uma imprensa feminista a estimular novas reivindicações e a instar as mulheres a ler e a se ligar à classe culta. Ao lhes propor novas modas e novos objetos, propunham-lhes, ao mesmo tempo, novas leituras e um conjunto de novas idéias. Daí, então, essa junção que vejo entre igualdade, fraternidade e frivolidade.

Folha - O sr. editou, com Robert Darnton, um livro intitulado "Revolution in Print", no qual se argumenta que sem a imprensa os revolucionários poderiam ter tomado a Bastilha, mas não derrubado o Antigo Regime. O que foi mais importante para o solapamento da velha ordem: a "revolução da imprensa" ou a "revolução das roupas"?
Roche -
Para certas coisas foi seguramente a imprensa, mas a transformação no consumo de roupas também afetou profundamente outras coisas. Acredito firmemente que, quando levamos em conta essa transformação, nossas perspectivas se ampliam sensivelmente. O trabalho que fiz com Darnton tinha o objetivo de refletir sobre o que tornou possível o grande acesso aos impressos na sociedade francesa.
Darnton tem a respeito disso uma teoria bem precisa. Para ele, foi um tipo específico de literatura -a que ele chama de pornografia política- que está na origem da dessacralização da imagem do poder real. A questão principal, no meu entender, é saber se essa literatura foi eficaz porque encontrou um terreno já pronto para se transformar. A tese de Darnton pode ainda conservar sua força, mas dentro de um quadro mais amplo, em que se discute o que tornou possível a apropriação de novas idéias pelas diferentes categorias sociais. É aí que as transformações da cultura material, que a "revolução nas roupas", adquirem sua importância.

Folha - O sr. se refere a uma variedade de teóricos como Freud, Elias, Barthes etc. Como os seleciona e os combina?
Roche -
Não sou freudiano, apesar de saber que não se pode trabalhar sobre roupas sem se fazer um pouco de leitura psicanalítica, o que, no entanto, não é nada fácil. Dá vontade de chorar quando se vê os absurdos que aparecem nesse domínio, falando de barbaridades como o "fetichismo das roupas" e coisas desse tipo. Já Elias me parece fundamental, e desde 1974 recomendo a meus alunos que o leiam.
Quanto à utilização de teorias, eu não sou daqueles que a todo momento estão a dizer coisas como "meu instrumental eu o encontrei em Elias" ou "é no conceito de distinção que vou explicar o funcionamento da fabricação dos sapatos no bairro do Marais" etc. Todo esse tipo de coisa é meio irritante, a meu ver. Não é porque se cita Bourdieu, De Certeau ou Ricoeur que se vai resolver todos os problemas históricos. Além do mais, por que só citar esses e não outros, como, por exemplo, Simmel, que é tão importante quanto Weber? Simplesmente porque, apesar de sua importância, ninguém o conhecia antes de ser traduzido para o francês.

Folha - O que diria do impacto de Foucault sobre os historiadores? Ele tem alguma especial relevância para o seu trabalho?
Roche -
Cheguei a trabalhar com Foucault durante 15 dias nos arquivos do Arsenal, quando eu fazia uma pesquisa para Furet sobre tudo o que concernia à censura. E Foucault estava no mesmo projeto. Lembro-me que íamos fumar nossos cigarros juntos, nos intervalos, e ele me falava um pouco sobre sua mãe, seus pais, e um dia ele simplesmente desapareceu. E eu nunca mais o revi.
Naquela época, 1960, ele ainda não era o grande Foucault, o teórico. Na corporação de historiadores franceses sempre houve uma certa desconfiança para com o filósofo que se torna historiador, atitude que acho errada. Teria sido melhor entrar no jogo e dialogar com Foucault, em vez de simplesmente dizer que ele não tinha estudado os documentos.
E, depois, houve aquele fenômeno da vedetização promovido, em parte, pela mídia, o que fez com que Foucault se tornasse meio inacessível para quem não o conhecera antes muito bem. O sistema francês tem esse não sei quê de irritante que faz com que se exporte para os Estados Unidos nossas vedetes. As vedetes do cinema americano vêm para a França, enquanto nossas vedetes intelectuais vão para os Estados Unidos, onde são idolatradas. Esse é um fenômeno digno de ser estudado: por que pessoas como Barthes, Foucault, Michel Serres e René Girard se transformam em gurus nos Estados Unidos?

Folha - O sr. acabou de ser eleito para o Collège de France. Poderia falar um pouco sobre a importância dessa instituição?
Roche -
Há uma espécie de mitologia do Collège de France, porque seguramente aí estiveram figuras notáveis com as quais poucas pessoas podem se identificar. Na Alemanha há pouco tempo, alguém me disse: "Então, você é o sucessor de Michelet!". Esse comentário me fez ficar vermelho de vergonha. O Collège realmente reuniu figuras intelectuais importantes do século 19 e 20, como Michelet, Renan e uma quantidade de grandes cientistas. Há, sem dúvida, figuras de grande força inspiradora, que contribuíram significativamente para a reflexão filosófica, como Foucault, por exemplo, ou outros, como Duby e Le Roy Ladurie, que tiveram um papel significativo na paisagem intelectual. Mas nem todos os recrutados têm a mesma força. Eu, pelo menos, não tenho a pretensão de me identificar com estes monumentos.



Maria Lúcia Pallares-Burke é professora de história da educação na Faculdade de Educação da USP e autora de "The Spectator - O Teatro das Luzes - Diálogo e Imprensa no Século 18" (Hucitec).
Peter Burke é historiador inglês, autor de "A Arte da Conversação" (Unesp) e "O Renascimento Italiano" (Nova Alexandria), entre outros.


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