São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

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A FORTALEZA AMÉRICA

Para analista, democrata John Kerry não tinha uma visão global que apresentasse uma alternativa plausível à política de Bush, e sua vitória teria sido uma anomalia histórica

por Slavoj Zizek

A primeira reação dos liberais de esquerda à segunda vitória de George W. Bush foi de decepção e até de medo: os últimos quatro anos não foram apenas um sonho ruim, o pesadelo -a coalizão entre grandes empresas e o populismo fundamentalista- continua, Bush poderá levar adiante seu programa com um novo ímpeto, indicando juízes conservadores para a Suprema Corte, passando para o país seguinte depois do Iraque, os Estados Unidos liberais estão um passo mais perto da extinção... No entanto essa reação emocional é exatamente o que se deve evitar -ela apenas comprova a extensão em que os liberais conseguiram impor as coordenadas de sua visão. Se mantivermos a cabeça fria e analisarmos calmamente os resultados, as coisas surgem sob uma luz totalmente diferente. Muitos observadores europeus se perguntam como Bush pode ter ganho, com a maioria da elite intelectual e pop-cultural contra ele. Agora somos finalmente obrigados a encarar a subestimada força mobilizadora do imaginário fundamentalista cristão americano. Por causa de sua própria imbecilidade óbvia, é um fenômeno muito mais paradoxal, apropriadamente pós-moderno, do que pode parecer. A história da ascensão da cientologia é um indício dessa dimensão: seu fundador, Ron L. Hubbard, começou como autor de ficção científica, com uma série de novelas sobre eventos em outra galáxia, antes que a humanidade se desenvolvesse na Terra; a certa altura, ele parece ter sido apanhado em seu próprio jogo e começou a apresentar sua ficção literária como textos religiosos "sérios" -de modo que o que no princípio era ficção se transformou retroativamente em religião, em uma inversão exata da história da modernidade, em que os textos originalmente religiosos sobrevivem como monumentos artísticos à grandeza do espírito humano. É a mesma coisa com o grande best-seller literário do fundamentalismo cristão americano, "Left Behind" [Deixados para Trás], de Tim. F. Lehaye e Jerry B. Jenkins, uma série de 12 novelas sobre o fim do mundo, que, ignoradas pela grande mídia, venderam mais de 60 milhões de exemplares. A história começa quando, subitamente, milhões de pessoas desaparecem sem explicação -os inocentes que Deus chamou diretamente para si, para poupá-los dos horrores do Armagedon. Então aparece o Anticristo, um jovem esperto e corrupto, o carismático político romeno Nicolae Carpathia, que, depois de eleito secretário-geral da ONU, muda sua sede para a Babilônia e consegue impor a organização como um governo mundial anti-americano que implementa o desarmamento de todos os países-Estados. E assim por diante até que, na batalha final, todos os não-cristãos, incluindo os judeus, são queimados em um fogo cataclísmico -imagine o clamor de protesto que uma história semelhante, escrita do ponto de vista muçulmano e que se tornasse um best-seller nos países árabes, teria causado na mídia liberal ocidental! Não é tanto a pobreza e o primitivismo dessas novelas que são de tirar o fôlego, mas sobretudo a estranha sobreposição da mensagem religiosa "séria" ao pior lixo da cultura popular comercial.

Maioria e unanimidade
A reflexão seguinte refere-se ao paradoxo básico da democracia. Em "A História do VKP(b)", a bíblia stalinista, existe um paradoxo único quando Stálin (que foi "ghost-writer" do livro) descreve o resultado da votação em um congresso do partido no final da década de 1920: "Por uma grande maioria, os delegados aprovaram unanimemente a resolução proposta pelo Comitê Central" -se o voto foi unânime, então a minoria desapareceu? Longe de trair algum perverso viés "totalitário", essa identificação faz parte da democracia como tal. A democracia baseia-se em um curto-circuito entre a maioria e o todo, nela o vencedor leva tudo, a maioria conta como todo, retém todo o poder, mesmo que essa maioria seja meramente de algumas centenas de votos entre milhões.
"Democracia" não é meramente o "poder do, pelo e para o povo", não basta apenas afirmar que, na democracia, a vontade e os interesses (os dois de maneira alguma coincidem automaticamente) da grande maioria determinam as decisões de Estado.
Democracia -na maneira como o termo é usado hoje- refere-se sobretudo à legalidade formal: sua definição mínima é a adesão incondicional a certo conjunto de regras formais que garante que os antagonismos sejam totalmente absorvidos no jogo agonístico. "Democracia" significa que, se tiver ocorrido alguma manipulação eleitoral, todo agente político respeitará incondicionalmente os resultados.


Bush teve de vencer duas vezes para que os democratas liberais percebessem que estamos todos entrando em uma nova era


Nesse sentido, as eleições presidenciais nos Estados Unidos em 2000 foram efetivamente "democráticas": apesar das evidentes manipulações eleitorais e da patente insensatez do fato de algumas centenas de votos da Flórida terem decidido quem seria o presidente, o candidato democrata aceitou sua derrota. Nas semanas de incerteza após as eleições, Bill Clinton fez um comentário apropriadamente amargo: "O povo americano falou; apenas não sabemos o que ele disse". Esse comentário deveria ter sido levado mais a sério do que pretendia: ainda hoje não sabemos -e talvez porque não houvesse qualquer "mensagem" substancial por trás do resultado. Os que têm idade suficiente ainda se lembram das tentativas tediosas dos "socialistas democráticos" de opor ao miserável "socialismo realmente existente" a visão do socialismo autêntico -a essa tentativa, a resposta hegeliana padrão é bastante suficiente: o fracasso da realidade em cumprir sua idéia sempre é testemunho da fraqueza inerente à própria idéia. Mas por que o mesmo não deveria valer para a democracia? Não é muito simples opor à capital-democracia liberal "realmente existente" uma democracia "radical" mais verdadeira? No entanto isso não significa que a vitória de Bush tenha sido apenas um erro acidental, resultado de fraude e manipulação. Hegel escreveu que Napoleão teve de perder duas vezes: somente depois de Waterloo ficou claro para ele que sua derrota não foi um erro militar acidental, mas a expressão de uma mudança histórica mais profunda. E o mesmo vale para Bush: ele tinha de vencer duas vezes para que os liberais percebessem que estamos todos entrando em uma nova era. Em 11 de setembro de 2001 as Torres Gêmeas foram atacadas. Doze anos antes, em 9 de novembro de 1989, o Muro de Berlim havia caído. O 9 de novembro anunciou os "felizes anos 90", o sonho de Francis Fukuyama do "fim da história", a crença de que a democracia liberal havia vencido em princípio, que a busca havia terminado, que o advento de uma comunidade global liberal estava próximo, que os obstáculos a esse final feliz ultra-hollywoodiano são meramente empíricos e contingentes (bolsões locais de resistência onde os líderes ainda não entenderam que seu tempo terminou). Em contraste com isso, o 11 de Setembro é o principal símbolo do fim dos felizes anos 90 da era Clinton, da próxima era em que novos muros estão surgindo por toda parte, entre Israel e a faixa de Gaza, ao redor da União Européia, na fronteira Estados Unidos-México.

Superpotência solitária
Em seu recente "The War over Iraq" [A Guerra pelo Iraque, Encounter Books], William Kristol e Lawrence F. Kaplan escreveram: "A missão começa em Bagdá, mas não termina lá... Estamos à beira de uma nova era histórica... Este é um momento decisivo... Trata-se claramente de mais que o Iraque. Trata-se até mais que do futuro do Oriente Médio e da guerra ao terrorismo. Trata-se do tipo de papel que os Estados Unidos pretendem exercer no século 21". Só podemos concordar com isso: é efetivamente o futuro da comunidade internacional que está em jogo hoje -as novas regras que a regularão, qual será a nova ordem mundial. Uma nova visão da nova ordem mundial está portanto surgindo como a diretriz efetiva da recente política americana: depois do 11 de Setembro, os Estados Unidos basicamente descartaram o resto do mundo como parceiro confiável; o objetivo final, portanto, não é mais a utopia de Fukuyama de expandir a democracia liberal universal, mas a transformação dos Estados Unidos em uma "Fortaleza América", uma superpotência solitária e isolada do resto do mundo, protegendo seus interesses econômicos vitais e garantindo sua segurança por meio de seu novo poderio militar, que inclui não apenas forças para rápida mobilização em qualquer parte do planeta mas também o desenvolvimento de armas espaciais por meio das quais os Estados Unidos controlam do espaço à superfície global. O fato é que essa estratégia projeta uma nova luz sobre os recentes conflitos entre Estados Unidos e Europa: não é a Europa que está "traindo" os Estados Unidos, são os próprios Estados Unidos que não mais precisam ou têm de confiar em sua parceria exclusiva com a Europa. Em suma, o problema dos Estados Unidos de Bush não é o fato de ser um novo império global, mas de NÃO sê-lo: enquanto finge ser, continua agindo como um país-Estado, perseguindo impiedosamente seus interesses. Como diretriz da recente política americana, é uma estranha inversão do conhecido lema dos ecologistas: aja globalmente, pense localmente. E dentro dessas coordenadas todo esquerdista que pensa deve se alegrar pela vitória de Bush. É melhor para o mundo todo, porque os contornos dos futuros confrontos serão traçados de maneira muito mais clara -a eventual vitória de Kerry é que teria sido uma espécie de anomalia histórica, apagando as verdadeiras linhas divisórias. Vamos dizer claramente: Kerry não tinha uma visão global que apresentasse uma alternativa plausível para a política de Bush. Além disso, a vitória de Bush é paradoxalmente melhor para as economias européia e latino-americana: para obter o apoio dos sindicatos, Kerry prometeu mais medidas protecionistas. Mas a principal vantagem refere-se à política internacional. Se Kerry ganhasse, caberia aos liberais enfrentar as conseqüências da Guerra do Iraque, e o lado de Bush poderia lhes atribuir os resultados de suas próprias decisões catastróficas. Ainda em 1979, em seu ensaio "Ditadores e Critérios Duplos", publicado na "Commentary", Jeanne Kirkpatrick elaborou a distinção entre regimes "autoritários" e "totalitários", que serviu como justificativa da política americana ao colaborar com ditadores de direita, enquanto tratava de modo muito mais duro os regimes comunistas: os ditadores autoritários são governantes pragmáticos que se importam com poder e riqueza e são indiferentes às questões ideológicas, mesmo que digam defender alguma grande causa; em comparação, os líderes totalitários são fanáticos sem ego, que acreditam em sua ideologia e estão prontos a apostar tudo por seus ideais.

Clichê jornalístico
Por isso, enquanto é possível lidar com governantes autoritários que reagem racional e previsivelmente às ameaças materiais e militares, os líderes totalitários são muito mais perigosos e têm de ser enfrentados diretamente. A ironia é que essa distinção resume perfeitamente o que deu errado na ocupação americana do Iraque: Saddam era um ditador autoritário e corrupto que ansiava por poder, guiado por considerações pragmáticas brutais (que o levaram a colaborar com os Estados Unidos na década de 1970), e o principal resultado da intervenção americana é que ela gerou uma oposição "fundamentalista" muito mais rígida, que exclui qualquer compromisso pragmático.
A vitória de Bush vai dissipar as ilusões sobre a solidariedade de interesses entre os países ocidentais desenvolvidos; ela dará novo ímpeto ao processo doloroso, mas necessário, de construção de novas alianças como a União Européia ou o Mercosul. É um clichê jornalístico enaltecer o dinâmico capitalismo americano "pós-moderno" contra a "velha Europa" presa a suas ilusões regulatórias do Estado de Bem-Estar Social.
No entanto, pelo menos no campo da organização política, a Europa hoje está indo muito além dos Estados Unidos no sentido de se constituir como uma unidade transestatal inédita, adequadamente "pós-moderna", em que existe lugar para qualquer um, independentemente de geografia ou cultura, até para Chipre e Turquia. Então, não há motivos para desespero -mesmo que as perspectivas hoje sejam sombrias, devemos lembrar um dos grandes "bushismos": "O futuro será melhor amanhã".

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo). Ele escreve regularmente no Mais!.
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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