São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

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LEIA A SEGUIR TRECHO DA BIOGRAFIA "ARAFAT - O IRREDUTÍVEL", ESCRITA POR UM DOS PRINCIPAIS ESPECIALISTAS EM ORIENTE MÉDIO E QUE SERÁ LANÇADA NO BRASIL, PELA ED. PLANETA, EM DEZEMBRO

A TERRA, O HOMEM, A LUTA

Kieran Doherty - 04.nov.2004/Reuters
O líder palestino Iasser Arafat, em Londres, em foto de 1999


Amnon Kapeliouk

O pequeno Iasser festeja seus dez anos em 1939, quando irrompe a Segunda Guerra. Ele começa a se interessar pela atualidade, por mapas e pelas armas. Durante o conflito, as ruas do Cairo estão cheias de soldados britânicos, australianos, indianos etc. e de refugiados vindos de Alexandria, a cem quilômetros de Al Alamein, onde se concentram as forças alemãs sob o comando do Afrika Korps de Rommel [destacamento do Exército alemão destinado a auxiliar as forças italianas que então batiam em retirada diante do Exército inglês]. À noite, quando as sirenes uivam, é preciso voar para apagar todas as luzes e correr para o abrigo em que muçulmanos, cristãos e judeus rezam com fervor. Iasser e [seu irmão] Fathi juntos lêem o Alcorão, persuadidos de que o livro santo os protegerá. Logo eles ostentarão orgulhosamente as máscaras de gás que lhes foram dadas por seu irmão Jamal, voluntário nos serviços da defesa civil: os bombardeios se intensificam e as autoridades do país temem que aviões alemães e italianos soltem bombas de gás tóxico. Bastante sociável, generoso, mas autoritário, Iasser aproveita a guerra para organizar um "exército" com as crianças do bairro. Todos se dobram aos exercícios que ele dirige com um galho de árvore na mão. Tanques de papelão, aviões de papelão, navios de papelão, blindados de papelão! Ao mesmo tempo chefe e árbitro entre os grupos, Iasser é o senhor. Quando impõe a um menino desajeitado renunciar a seu tanque e contentar-se com uma bicicleta (de papelão!), ninguém sonha protestar, nem mesmo o pequeno Fathi, que paciente e inutilmente espera que seu irmão comandante o faça subir de patente. [...] Pouco antes do final da Segunda Guerra Mundial, a situação na Palestina balança: a imigração ilegal de judeus que fugiam do nazismo chega ao auge, multiplicam-se os ataques da Haganá, as forças militares clandestinas da comunidade judaica na Palestina, do grupo Stern e do Irgun. De agora em diante, o movimento sionista está firmemente mobilizado para obter a criação de um Estado judaico. O governo britânico compreende que deve transmitir o poder para a Palestina. A "questão palestina" é apresentada na ONU -constitui-se uma comissão de inquérito, que enviará seu relatório no dia 31 de agosto de 1947. No dia 29 de novembro, a Assembléia Geral vota a partilha recomendada pela comissão: de um lado o Estado judaico, compreendendo 52% do território, e do outro, um Estado palestino, que abrange 46% -para Jerusalém, é instituído um enclave internacional.

Falta de armas
Tanto de um como de outro lado, no momento em que a perspectiva de uma guerra se esboça cada vez mais nitidamente, há uma cruel falta de armas. Com outros palestinos, o jovem Arafat, que observa com atenção o que acontece no cenário do Egito e também no de seu país, vai para o deserto egípcio, onde negocia a compra de espingardas e munições abandonadas pelos alemães, italianos e aliados cinco anos antes, que os beduínos haviam apanhado. As armas se destinam ao exército da Jihad, dirigido por Abd al Kader al Husseini, que o recebe em sua casa no Cairo antes de fazê-los entrar na Palestina. Assim, Arafat é levado a freqüentar a casa desse famosíssimo chefe militar palestino, cujo nome está associado à guerrilha dos anos 30. Iasser, que em sua casa aprende a manejar armas, o admira e se torna amigo de seu filho, Fayçal, a quem ensina o Alcorão.
O principal líder político e religioso dos árabes palestinos, o haji Amin al Husseini, também vive no Cairo naquela época. Fugiu de sua terra na segunda onda da revolta de 1936-39, foi para o Líbano, depois para a Síria, sem deixar de dirigir suas tropas. Desde 1939 vive no Iraque, onde, em maio de 1941, participa do golpe de Estado pró-nazista de Rachid Ali al Kaylani, esmagado pelos britânicos. Terá então de fugir para a Itália, depois para a Alemanha. Em Berlim, é recebido por Hitler e participa da propaganda nazista contra os aliados e os judeus. Preso pelo Exército francês depois da guerra, ele consegue voltar para o Cairo em junho de 1946.
Tendo os ingleses proibido sua volta à Palestina, é dessa cidade que ele organiza uma campanha contra a divisão da Palestina. Nesse momento, é chefe do alto comitê árabe. Sua casa, em Heliópolis, onde vive então Arafat, com quem se encontra inúmeras vezes, é um dos principais pontos de encontro dos nacionalistas palestinos.
Pouco antes de sua morte em 1974, o haji Amin explicou seu envolvimento com os nazistas: segundo ele, a guerra mundial impunha a escolha do campo. Os ingleses eram os senhores da Palestina e haviam ajudado os judeus a se instalarem lá para estabelecer seu Estado. Os alemães, de sua parte, não haviam imposto nenhum jugo colonial ao mundo árabe e, além disso, eram inimigos dos ingleses e dos judeus. "O inimigo do teu inimigo é teu amigo", concluíra ele, como diz numa entrevista dada a Imad Chakur, membro do Fatah [grupo político de Arafat], e publicada no mensário de pesquisas da OLP, "Chu'un Falastinia" (em maio de 1974).
Esse raciocínio não deixou de ter seus emuladores. Um dos membros do partido egípcio pró-nazista Misr al Fatat (Jovem Egito), proibido durante a guerra, não era outro senão o futuro presidente do Egito, Anuar Sadat. Fiel a suas simpatias, em 1953 ele publicará em um semanário egípcio uma carta aberta "A Meu Amigo Hitler" -em que assegura sua estima ao Führer, censurando-lhe apenas o fato de se ter arriscado em duas frentes diferentes...
Por mais incrível que pareça, constata-se uma atitude semelhante no seio da comunidade judaica da Palestina, mesmo quando a "solução final" já estava a caminho. Um grupo judaico de extrema direita propõe aos nazistas a seguinte aliança: contra uma participação de judeus no esforço de guerra contra os britânicos, os nazistas os ajudarão a criar seu Estado sobre chão palestino, depois da vitória do Terceiro Reich! Essa proposta emana do grupo Stern, organização terrorista cujo nome oficial é "Combatentes pela Liberdade de Israel", cuja sigla é Lehi.
Ela está na mensagem enviada em janeiro de 1941 à embaixada da Alemanha em Ancara [Turquia] (o embaixador é Franz Von Papen), que diz o seguinte: "Podemos encontrar uma série de interesses comuns entre as tendências da nova ordem na Europa, segundo a visão alemã e as verdadeiras aspirações nacionais do povo judeu. A criação do Estado histórico dos judeus em base nacional e totalitária, tendo uma aliança com o Reich alemão, é idêntica à idéia do reforço e da salva-guarda das futuras posições das forças alemãs no Oriente Próximo".
No decorrer dos primeiros meses do ano crucial de 1948, o olhar de Arafat se voltou para a Palestina. Arafat lê muito, escuta todas as conversas em que se fala dessa tragédia que assume tanta amplitude. Ele gostaria de saber e compreender mais. Mais tarde, ele confessará com franqueza: "Eu só tive uma percepção política da presença sionista [na Palestina] pouco antes de 1948...".

Amnon Kapeliouk é especialista em língua e cultura árabes. É autor de, entre outros, "Rabin - Anatomie d"un Assassinat Politique" (Rabin - Anatomia de um Assassinato Político, Le Monde Éditions).
Tradução de Beatriz Sidou.


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