São Paulo, domingo, 07 de novembro de 2004

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Ernesto Nazareth e grupo Corpo

Quando fui convidado para fazer essa trilha [do balé "Nazareth"], o grupo Corpo queria algo ligado justamente à música popular brasileira desse período [fins do século 19, início do 20]. Há muito tempo eu me interessava por Nazareth [1863-1934], um compositor popular de música instrumental, que compunha ao piano. As suas peças são muito finamente escritas, por alguém que tocava repertório de concerto e participava ao mesmo tempo do processo pelo qual a polca se amaxixava. Que escreveu "Odeon", "Brejeiro", "Apanhei-Te Cavaquinho", clássicos da música popular que se tornaram também, em certa medida, clássicos da música erudita, tocados em recitais por grandes pianistas. Havia esse cruzamento, então, de erudito e popular em Nazareth. E o grupo Corpo também estava no mesmo processo. Eles começaram fazendo, vamos dizer, espetáculos de natureza mineira: "Maria, Maria" (com música de Milton Nascimento) e "O Último Trem". Depois passaram um período fazendo peças clássicas européias e estavam então voltando -em 1992, quando eu os conheci- para a música brasileira, a música contemporânea brasileira, com "21", espetáculo com música de Marco Antonio Guimarães executada pelo Uakti. Estavam, assim, numa encruzilhada que também me tocava; e que tinha algo a ver, no fundo, com Ernesto Nazareth. Era uma oportunidade para atacar um assunto que desde muito tempo me chamava a atenção: a relação de Nazareth com o conto do Machado de Assis "Um Homem Célebre". Comecei a ouvir Nazareth pensando em explorar aqueles momentos em que, por baixo de uma coisa tão popular, existe algo subjacente, algo erudito, querendo aparecer. [...]

Ernesto Nazareth e Machado de Assis

Agora, também é interessante que, em "Nazareth", apareça um tema musical machadiano, que é o tema de Flora, em "Esaú e Jacó", comentado em "Machado Maxixe": "Lá-lá-dó-ré-sol-ré-ré-lá/Ré-ré-lá-sol-lá-ládó". Um tema espelhado, que Flora toca no momento em que a monarquia cai e a casa dela está virada do avesso. A personagem está ao piano, tocando algo ao acaso, e toca essas notas ["lá-lá-dó-ré-sol-ré-ré-lá"]. Depois Machado volta a isso dizendo que tocava "por essas ou por outras notas" aquela mesma melodia, "ré-ré-lá-sol-lá-lá-dó". Ou seja, disfarçadamente, ele faz um espelhamento, compõe um tema musical de ficção, espelhado. [...] Espelho e gêmeos são temas machadianos. Nesse caso, então, eu desenvolvi um Nazareth-Pestana através de espelhamentos e reflexos.

O erudito e o popular

Pessoalmente, eu me sinto muitas vezes visto como um professor de literatura que também toca piano (e isso é uma surpresa para alguns). Por outro lado, tem pessoas que conhecem minhas músicas e depois descobrem que sou eu "o professor de literatura". Então, desde muito tempo lido com essa duplicidade. Como se eu fosse visto de um lado ou de outro. Quando, como neste livro, as duas coisas são postas juntas -letras de canções e ensaios, ensaios sobre música e literatura-, isso me dá uma sensação que não deixa de ser exaltante, no sentido de um reconhecimento de que as duas coisas pertencem a um movimento só. [...] Eu queria fazer as duas coisas. E não sabia se isso era possível, como seria possível. O surgimento de uma canção brasileira forte, na época em que eu estava na adolescência, acho que veio resolver esse impasse. A música popular surgiu para resolver o meu dilema. Quando cheguei à faculdade, fui fazer o curso de letras, mas estudava piano erudito, tinha tocado com orquestra [a Sinfônica Municipal de São Paulo], tinha apostado muitos anos da minha vida para ser pianista erudito. Cheguei a São Paulo [em 1967] com esse problema. Com essa questão, com esse desejo, e não só isso, com um longo investimento nessa direção. E me deparei com uma Faculdade de Filosofia [a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP] trepidante do mundo, não é? E fiquei dilacerado nesse momento. Tive então um contato muito forte e entusiasmante com a literatura -na faculdade havia Antonio Candido, Davi Arrigucci, mais tarde Alfredo Bosi. Que nos faziam ver a literatura de uma maneira inteiramente nova, o que inibia um pouco os meus desejos poéticos, mas ao mesmo tempo criava novos parâmetros. E, ao mesmo tempo, em volta da faculdade tinha o Teatro de Arena, Teatro Oficina, o Tuca, o teatro Paramount e o teatro Record. Com os programas todos de música popular da Record, os festivais de música popular, os cinemas estavam passando Glauber Rocha e Godard. Era isso o que estava acontecendo. E eu estudando piano erudito, num ambiente muito voltado para o século 19. Essas coisas entraram em choque, foi um momento de muita divisão interna. Eu não sabia como resolver aquilo. Mas justamente nesse momento é que se dava a aparição de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso (por ordem de entrada em cena). Aquilo tudo que era, para mim, problema, parecia prometer alguma forma de resolução ali. Porque aquilo era poesia cantada, de alta qualidade, intervindo no momento presente. Era música e era literatura, e por isso "aquilo deu nisso", nesse momento. De tal modo "aquilo" respondia à minha procura que me apeguei para sempre a "isso": Aos pontos altos do alcance da canção, no Brasil.

AI-5 e academia

Mas em dezembro de 68 [com o AI-5], acabaram-se esses festivais, acabou-se esse movimento na música popular ligado ao mundo estudantil. Essa conjunção acabou exatamente nesse momento. Eu sou de uma geração que fez 20 anos durante o AI-5. Vinte anos é o momento de entrada e foi bem aí que as condições da vida cultural mudaram bruscamente. E acho que esse meu hiato se produz, então, em alguma medida, por causa disso também. Os fios foram perdidos. Você passa a procurar de uma maneira muito mais indireta. O ano em que eu acabei o curso de letras, 1970, foi o ano em que se inauguravam os cursos de pós-graduação, tal como existem hoje: com orientador, sistema de créditos, bolsa de estudo. Ou seja, fechavam-se os festivais e abria-se a vida acadêmica. Eu estava exatamente nessa encruzilhada. Entrei na faculdade como músico (e talvez escritor) e saí professor de literatura.

Drummond

Eu acho que o Drummond... Desde o primeiro livro, ele fala da poesia sabendo que a poesia não pode mais existir. Mas por que ela continua? Tem um poema chamado "O Sobrevivente", em "Alguma Poesia" [1930], que diz: "Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade" e desfia os motivos pelos quais não pode existir o poema. E o poema termina com o verso: "Desconfio que escrevi um poema".
Essa questão atravessa o arco tenso que vai de "Alguma Poesia" a, talvez, "Lição de Coisas" [1962], o arco tenso do seu diálogo com o nosso tempo. A avenida maior pela qual nós, brasileiros, entramos em algumas das experiências fundamentais da modernidade -a do sujeito na metrópole, a grande cidade e o solitário na massa, cheio de potência e impotência, o indivíduo desgarrado das grandes questões, que não deixam de atormentá-lo -foi aberta pela poesia de Drummond. E o modo como o fez é incontornável, quando se quer questionar, apesar de tudo, o mundo. [...]
E aí me ocorre uma obviedade interessante: que talvez nenhum poeta no mundo fale tanto a palavra "mundo" como Drummond. Ou que tenha esse mote mesmo: "Os ombros suportam o mundo", "o coração maior que o mundo", "se eu me chamasse Raimundo", "a máquina do mundo". E que o tenha em anagrama no próprio nome: "Duro Mundo"/Drummond. O sentimento do mundo inabordável está incrustado como uma pedra, um cálculo impossível de extirpar, uma coisa maior e menor, que ele guarda em si e que ao mesmo tempo não cabe.
Acho que essa questão da poesia e da arte moderna, a questão de saber até quando ela foi capaz de abarcar o mundo e de quando não é mais capaz de fazê-lo, embora continue a fazê-lo, foi agudamente formulada pelo Drummond em modo brasileiro.

A tensão Drumond-João Cabral

Sem dar crédito excessivo à tese da "angústia da influência", se poderia dizer que João Cabral teve que se afirmar contra Drummond. Mas teve que se afirmar sobretudo contra si mesmo, porque seus primeiros poemas, da "Pedra do Sono", são noturnos, oníricos, aquáticos, uterinos, todo o contrário daquilo que a sua poética diurna, construtiva e viril sustentou depois, sem sombras, a partir de "O Engenheiro". Drummond, por sua vez, que é um "anjo muito mais torto", teve que se afirmar contra si mesmo através de Mário de Andrade, seu mestre e tutor espiritual na juventude.
Mário de Andrade era cheio do desejo de compreender o mundo, cheio de boas intenções. E apontava no Drummond, no jovem Drummond, o perigo de uma certa afetação, a afetação de um Anatole France, de um... Na verdade de um blasé. O perigo do blasé que era o jovem Drummond, que não se interessaria pelo Brasil -não acreditaria no Brasil. E a grande aposta do Mário de Andrade, que ele toma como missão, é fazer o Brasil existir ao se encontrar consigo mesmo, no encontro da cultura oral com a cultura escrita. E esse projeto de Mário de certo modo pesa sobre o jovem Drummond, que escreveu, em 1927, um poema contundente (não publicado, depois), uma vingança, eu acho, contra o peso opressivo da vontade mário-andradina de abarcar o Brasil e de dar sentido a tudo isso. [...] A questão é que há em Drummond essa luta com as palavras como "a luta mais vã". A ironia drummondiana, corrosiva e autocorrosiva, supõe que só se conquistam as palavras ali onde elas escapam, nesse rio que se transforma em desprezo, e o objeto-poema, que resulta, não é redentor pelo trabalho que representa, mas sim por um enigma, vamos dizer, insolúvel, que recorre e remói. Acho que esse gesto de Drummond, tantas vezes noturno, se contrapõe ao gesto de Cabral, o da afirmação de um trabalho com as palavras, a exigência de uma vigília diurna e solar da consciência produzindo objetos que merecem existir pela espécie de ação penetrante e viril que voltam sobre os objetos. Porque, fora disso, é afetação.

Crítica

Nós somos professores de uma faculdade de letras e fazemos música popular, trabalhando num país em que a cultura letrada é esgarçada. Nos apresentando em Buenos Aires, por exemplo, como aconteceu comigo e com o Luiz [Tatit, em 2003], sentimos a súbita estranheza de nos vermos de repente num país letrado. Isso faz uma grande diferença no modo de ser escutado, e no tratamento que a imprensa te dá -não me refiro a elogios, mas a alguma coisa mais básica, ligada ao entendimento consistente da natureza do que você faz, que também está no tipo de atenção do público. Lá, dá a impressão que seriam inadmissíveis, ou muito difíceis, aqueles torcicolos tantas vezes absurdos que se tornaram exemplo de atitude crítica no Brasil. É quase como se se revelasse o segredo, tornado óbvio por contraste, de que a gente trabalha o tempo todo em condições adversas, condições essas que a gente toma como a fatalidade de um destino, que é o nosso, e que a gente não trocaria por nenhum outro, porque nele os limites correspondem de alguma maneira misteriosa à própria dimensão das imensas possibilidades, realizem-se essas ou não. Esse assunto está no conto do Machado de Assis ["Um Homem Célebre"]. Na verdade, Machado de Assis estava, ele mesmo, às voltas com essa questão, ao se dirigir para leitores num mundo em que literatura era vendida em balaios, livro junto com banana, de porta em porta, revistas femininas e livros em tiragens reduzidíssimas. Ao mesmo tempo em que há o borbotão de alguma outra coisa, o que em princípio nos levaria a desprezar essa outra coisa em razão da cultura letrada. Mas há um momento de revirada, porque essas duas coisas se contaminam e produzem uma outra coisa originalíssima, que não existe dessa forma em lugar nenhum do mundo. Na minha história, eu venho da música erudita para a popular; de certo modo, sou um Pestana às avessas. Muitas vezes se discute se a música popular contém uma poesia de alta qualidade ou não. E, quando a resposta é "não", é somente porque poesia de livro é poesia de livro. Eu não sinto que a questão se coloque assim, porque existem poemas de livro que são de uma expressão e irradiação universal de sentidos e existe evidentemente poesia escrita que não vale uma letra de canção mediana. Não é esse o crivo que decide a qualidade ou o grau de importância de uma ou de outra.

O som e o sentido do futebol

Cresci na Baixada Santista, tendo uma vivência muito forte do futebol; em primeiro lugar, evidentemente, porque a baixada foi o lugar onde se jogou cotidianamente o melhor futebol do mundo por esses anos, mais ou menos de 1960 a 66. Para quem convivia com o Santos Futebol Clube e freqüentava a Vila Belmiro durante essa época, a excelência máxima parecia pertencer à ordem natural das coisas. Como os demais times da época, o uniforme não tinha logomarca: camisas e calções brancos sobre pele negra, e um distintivo no coração. Além disso, a mesma cidade que tinha o Santos tinha a Portuguesa Santista e o Jabaquara na divisão principal do Campeonato Paulista; e, em São Vicente ([onde Wisnik nasceu] que é colada a Santos, como se sabe), tinha o São Vicente Atlético Clube, o Beira-Mar, o Beija-Flor, o Itararé, o Vidrobrás, a primeira e a segunda divisões do Campeonato Vicentino. Na escola a gente jogava bola duas vezes por semana: o meu ginásio era de frente para o mar, e as aulas de educação física aconteciam na praia, das 7h às 10h, até que um salva-vidas trilasse o apito final (já que o professor, que era um eterno candidato não-eleito a vereador, ficava nos bares da praça, às voltas com a pequena política diária). Durante as férias, nem bem feita a digestão do almoço, voávamos para um terreno próximo, que hoje é o leito de uma avenida, onde se jogava até anoitecer, naquele gramado enlameado não muito distante de onde, décadas depois, nasceria o Robinho. Foi nesses lugares, para mim, que o futebol ganhou essa dimensão. [...] Escrever um ensaio sobre isso, então, tem algo, bem ou mal comparando, de escrever um "O Som e o Sentido" do futebol, embora nesse caso a pesquisa não seja a do especialista, mas, em grande parte, a do amador, do jogador-torcedor, temperada pelos estudos de quem trilhou as ciências humanas. [...] Eu parti [no ensaio que está escrevendo sobre futebol] de um texto do Pasolini que, justamente, faz uma interessante abordagem semiológica do futebol, logo depois da Copa do Mundo de 1970. Ele escreveu um artigo sobre "futebol de poesia" e "futebol de prosa", que traz indicações muito interessantes para pensar o futebol desde dentro. Então, o jogo do livro é mais ou menos esse, e fica difícil avançar qualquer outra coisa sobre isso agora.

Pelé

Vendo o filme "Pelé Eterno"... Aliás, eu fui no primeiro dia, na primeira sessão. Porque esperava esse filme havia muitos anos. Esperei o dia em que se pudesse ter um material documental capaz de nos devolver esse fenômeno e de me devolver, proustianamente, àquilo tudo; e o filme tem muito disso mesmo. Mas a abertura é muito desagradável, num estilo épico que subimita a concepção de um herói segundo a mitologia cinematográfica norte-americana. Sendo que a ironia nisso é justamente a de que o filme demonstra, na prática, que Pelé fez na realidade proezas daquelas que os mitos heróicos americanos só fazem na ficção. E de fato, do começo ao fim, se apresenta o herói sem falha, sem fissura, que não erra nunca. A edição dos lances foi sempre armada de tal maneira que Pelé só realiza verdadeiros feitos; e a narração realça muito esse negócio. Só aparece Pelé, também mal aparecem os jogadores do Santos que jogavam junto com ele, faziam parte daquilo. Pelé não precisa de apologia. Pelé... Basta mostrar. A gente nem acredita que tenha acontecido um fenômeno desses. Seja pela realização artística mesmo, interna ao campo, seja pela repercussão mundial. E sobre isso o filme tem muito para mostrar.

Mestiçagem

Eu tendo a achar que a originalidade brasileira está ligada à cultura mestiça. A crítica da idéia de uma mestiçagem harmoniosa no Brasil, sem conflitos, tem jogado fora a questão. É preciso retornar a ela incluindo exatamente o que há de surdamente conflitivo na mestiçagem, num país escravocrata, sem perder o fio revelador da questão. E acho que existe uma figura-chave, dada por aquele que não é o escravo nem o branco, alguém que teve sempre que se entender como fazendo parte de um entrelugar, pois é "a parte nem rejeitada nem excluída que guarda o segredo inconfessável do todo", como está dito no ensaio "Machado Maxixe". Eu acho que o futebol inglês foi apropriado pelo brasileiro por meio dessa figura, e acho que é ela que preside a formação da música popular urbana no Brasil. Que o primeiro craque [Friedenreich] fosse filho de um alemão com uma negra, que tivesse a pele branca e procurasse disfarçar o cabelo pixaim e que fosse ele o jogador diferenciado -eu procuro levar adiante algo disso. Sabendo, veja bem, que uma cultura da mestiçagem não se realiza necessariamente pelo mestiço racial. E, sabendo o quanto a música popular também está ligada a um sentimento intervalar, não é? Não é à toa, como diz o Chico Buarque [no DVD "Chico e as Cidades"], que muitos dos compositores de música popular alimentem a fantasia de serem futebolistas, e muitos futebolistas queiram ser músicos.

Futebol e literatura

Mais que isso, eu acho que no futebol os gêneros literários estão todos intrincados. Dos esportes todos, o futebol é o que mais deu margem a um espectro narrativo em que se mesclam o fino e o grosso, o épico, o trágico e o paródico; e ao mesmo tempo, uma dimensão lírica, a expressão da subjetividade inscrita num certo modo ser de um jogador. Que é como o Chico Buarque vê o Pagão, por exemplo: aquilo é identificação lírica, com um jogador que, na infância, ele vê dar chapéus, assim, de calcanhar, não é?
Isso é expressão lírica, porque aquela jogada, aquele toque na bola, é um desejo de beleza, e quase a expressão de uma nostalgia.

José Celso e Teatro Oficina

O Zé Celso é o seguinte: em primeiro lugar, o impacto de "Roda Viva" [em 68]. Portanto, no mesmo momento, ou logo depois, em que saiu o disco do Caetano. Também vi o "Rei da Vela", mas não teve para mim o mesmo impacto de "Roda Viva". Que, por sinal, estava ligada à música popular. Aquela relação com o teatro, aquele modo vital de mexer com os tabus, de uma maneira que era agressiva mas espantosamente bela, aquilo fez com que se tornasse difícil, para mim, assistir a qualquer outro teatro depois. Ficou tedioso ver qualquer outro teatro durante um bom tempo. [...] Zé Celso vem de uma tradição que parte do grande teatro realista -no início da carreira ele fez "Pequenos Burgueses" [de Górki]. E a referência dele permanece realista, num sentido não-literal da palavra, realismo que vai se somando a um caráter alegorizador e carnavalizante. Quando trabalhei com o Zé Celso, pude constatar que ele nunca tem interesse por um elemento que seja puramente plástico, gratuitamente plástico. Tudo tem uma ligação com alguma forma de representação da realidade, dos conflitos reais, que ganham uma dimensão fortemente alegórica. Existe nele um Brecht profundo e, ao mesmo tempo, uma conversão dionisíaca, o que dá uma mistura muito peculiar. Perto dele sei que eu sou órfico -ou seja, eu faço canções, canções ligadas às emoções profundas.

Bossa nova e Caetano Veloso

Com João [Gilberto] e [Tom] Jobim aprendemos, para sempre, a ser desafinados. A partir deles começou a circular na nossa imaginação uma harmonia mais rica. O nome de João Gilberto ficou marcado para ser a expressão por excelência dessa desafinação inventiva. Mas a fase heróica da bossa nova surgiu na verdade de uma trindade estranha, de um verdadeiro acorde que nunca havia existido antes e que era formado de três nomes: João Gilberto, Tom Jobim e Newton Mendonça. Precisou que se unissem esses três criadores para que aparecesse, no nosso cenário musical, um samba de uma nota só. Prodígios da bossa nova. Naquela época, embalada pela cadência do desenvolvimento juscelinista, começava a tomar corpo na nossa música uma série de transformações que já estava latente havia algum tempo. Uma transfiguração da nossa tradição popular, modernizada por uma harmonia que recebia influxos do jazz. A batida do samba assumia uma feição mais requintada, e os acordes tradicionais eram alterados por combinações dissonantes. Junto com essa maior elaboração rítmica, melódica e harmônica, as letras se tornavam poeticamente mais concentradas, e, a interpretação, mais contida. Naquele momento, havia um certo parentesco feliz entre a aceleração da vida social nas grandes cidades e a vanguarda da criação musical popular. Ritmo novo, país novo, bossa nova. No entanto os procedimentos adotados pelos músicos da bossa nova não eram, a rigor, uma "invenção" deles. Tomada isoladamente, a harmonia usada na bossa nova remontava a recursos já conhecidos da música erudita ou que eram usados no jazz. Mas é que a noção de invenção dentro da criação popular tem um sentido muito especial. Dentro do universo de referências da cultura popular a bossa nova criou um mundo de formas e significados realmente novo. Primeiro, dava um calafrio camerístico na tradição do canto em "dó-de-peito". Segundo, criava uma lírica de uma grande densidade ao mesmo tempo que integrava, com malícia, elementos de várias fontes, brasileiras e estrangeiras. Um exemplo antológico dessa malícia inventiva é a música "Desafinado". Uma canção de amor paródica, fingindo-se de "desafinada" ao mesmo tempo que dotada de uma noção de afinação muito mais avançada. Uma canção de amor de um lirismo rigoroso que, ao comentar a linguagem que usa, ironizava as condições de escuta em que se lançava. Dez anos depois, uma canção brasileira ou um iê-iê-iê romântico de Caetano Veloso lançava nos céus do Brasil um "Objeto Não-Identificado". Que era, a seu modo, o "Desafinado" do fim da década de 60. Essas duas canções de amor incorporam, ao mesmo tempo, um pensamento sobre as discrepâncias da nossa cultura e mostram uma linha de conseqüência fecunda vinda da bossa nova.

O mestre Tom Jobim

Tom Jobim é o mestre. Graças a ele e a João Gilberto, a bossa nova já nasceu madura. Costuma-se falar nas suas principais qualidades: as músicas de Tom têm com as letras uma relação muito eficaz, sem se satisfazerem com melodias fáceis e ornamentais. Já se sabe que Tom Jobim é o músico de uma prodigiosa imaginação melódico-harmônica. Integra assim, em sua textura, as dimensões horizontal e vertical da música, o que também o faz sensível ao contraponto. Às vezes, a sua melodia é muito simples, quase estática, mas sustentada por uma harmonia muito rica. As duas partes do "Samba de uma Nota Só" indicam isso: na primeira a melodia dá lugar à harmonia, na parte central, a melodia se expande até voltar à repetição insistente da nota inicial. Em suma, na bossa nova, o esquematismo de certas melodias é um modo de ressaltar a riqueza da harmonia.

Educação pública e efervescência cultural

Eu imagino que, ao lado da entrada maciça da televisão, a degradação do ensino público tenha sido a maior transformação cultural que se deu no Brasil, com a ditadura e depois. Que aquela geração da música popular brasileira, dos festivais, que esses garotos de 23, 24 anos pudessem ter feito aquelas canções, que tivessem tamanho grau de intervenção sobre o país, acho que só foi possível num interregno democrático com escola pública íntegra. Há pouco tempo, numa das vezes que voltei a São Vicente, fiquei parado na frente do Instituto de Educação Martim Afonso, sentindo o tamanho do estrago.
O garoto não tem mais idéia de que pertence a uma vida social que não se compra, mas que é um direito e dever seu. O garoto e a garota pobres, porque a escola não se dignifica e não os dignifica; os de classe média ou ricos, porque estudar ficou sendo algo inseparável, consciente ou inconscientemente, do privilégio consumidor. Nesse apartheid de classe que a escola onde eu estudei não tinha, não crescem, portanto, com a sensação de pertinência, a sensação de ser de um país. E essa foi uma condição fundamental, me parece, para a espantosa aparição de talentos (mesmo que as considerações sociológicas não expliquem a singularidade do talento) e a efervescência cultural dos anos 60.


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