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+Sociedade
Os bambas da bola
Principal medievalista
do país, Hilário Franco Jr.
fala sobre
a ascensão do São Paulo
e diz que baixo nível cultural do Brasil
se reflete em campo e nas torcidas
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
Hoje termina o
Campeonato Brasileiro de 2008
com o embate de
duas imagens
opostas do futebol brasileiro: o
São Paulo, líder, joga para consagrar os pontos corridos, forma de disputa em que a regularidade é recompensada.
O Grêmio de certa forma encampa a tradição trágica brasileira: para ser campeão, depende não só de sua vitória contra
o Atlético (MG) como da derrota do time paulista contra o
Goiás -portanto conta com a
associação do esforço de última
hora ao imponderado.
Esse confronto de modelos
do futebol é explorado pelo historiador Hilario Franco Jr., livre-docente da USP e autor de
"A Dança dos Deuses" (Companhia das Letras), a partir da
seguinte chave interpretativa:
"O futebol é expressão da sociedade que o contém".
Nesta entrevista à Folha, o
medievalista, especialista em
história social do futebol e são-paulino compara o futebol brasileiro atual ao do passado e
também ao praticado na Argentina e na Europa.
FOLHA - Uma das razões apontadas para o sucesso do São Paulo é o
orçamento maior. O que vem primeiro no futebol brasileiro, a riqueza ou o resultado em campo?
HILARIO FRANCO JR. - As coisas estão ligadas. O resultado em
campo atrai bilheteria, mas isso
não é o principal da receita dos
clubes; atrai bons patrocinadores, isso é fundamental. Influi
na negociação de cotas na TV
-os times não recebem a mesma quantia, afinal alguns representam mais audiência.
FOLHA - O São Paulo, então, aparece como o modelo de gestão a ser
seguido? Ou há alternativas?
FRANCO JR. - Não basta fazer dinheiro, é preciso aplicá-lo bem.
Basta ver o exemplo do Corinthians, com a [empresa de investimento] MSI, que teve dinheiro, mas acabou perdendo
resultados, credibilidade e dinheiro -e rebaixado.
Mas não existe um modelo
único, de aplicação universal. O
São Paulo gasta muito dinheiro
nas categorias de base, R$ 9 milhões por ano, é um investimento que rende vendas todo
ano. Outros clubes revelam jogadores sem ter essa estrutura
-mas o resultado é irregular.
FOLHA - Que outros times na história do futebol o sr. identificaria como
exemplares?
FRANCO JR. - Pensemos, por
exemplo, no Santos de Pelé.
Era extraordinário, mas era um
time de dez anos [de trabalho
em grupo], ao contrário de hoje, quando os times duram um,
dois, no máximo três anos.
O calendário permitia excursões ao exterior, muito rentáveis. O que se fez com essa riqueza? O Santos permaneceu
um time mediano -com grandes momentos, como a equipe
de Robinho, Diego e Elano.
Enquanto o São Paulo ficou
anos sem ganhar nada para poder construir o Morumbi, o
Santos fez o contrário: tinha tudo para ser uma grande potência, mas perdeu o bonde histórico. O Flamengo, com a imagem que tem, está sempre endividado, com problemas.
FOLHA - Como se conciliam tradição e marca?
FRANCO JR. - São as histórias, a
grife de cada clube, que se
transmitem historicamente.
Na Europa existem histórias
oficiais; no Brasil, essas coisas
permanecem por meio da paixão. O problema é ir além da
fantasia do nome, fazer dele
rentável. Às vezes é preciso inventar a própria marca, pois o
mercado muda.
A expressão depreciativa,
chamar o são-paulino de "bambi", por outro lado, acaba sendo
uma reação a um projeto que
está dando certo.
FOLHA - Esses estereótipos se fazem sentir em campo?
FRANCO JR. - Esses estereótipos
não valem, é claro que são clichês. As imagens que fazem
parte da cultura do futebol são
como as da cultura geral: nem
todo português é burro como
nas piadas, certo?
Os estereótipos não alteram
o rendimento dos times; podem talvez estimular brigas entre torcidas.
FOLHA - Historicamente, a rivalidade sempre se manifestou assim?
FRANCO JR. - A violência no futebol do Brasil existe desde pelo
menos a década de 1920.
Há casos de torcedores invadirem o gramado para agredir
adversários, tiros dos guardas
para o alto. O que não havia era
brigas de rua entre torcidas.
Mas isso não parece ser próprio
do futebol, e sim o reflexo de
uma sociedade mais violenta.
A sociedade faz o futebol, não
o contrário.
A preferência pelo esquema
mata-mata, que está sendo
substituído pelos pontos corridos, por exemplo, não é casual.
Ele representa uma sociedade dada a improvisações, a golpes de sorte, ao esforço de última hora. É como estudar apenas na véspera para tentar passar na prova. Nos pontos corridos, a tendência é que ganhe o
mais organizado, mesmo que
não seja brilhante -como é o
caso do São Paulo neste ano.
FOLHA - Se o futebol acompanha a
evolução da sociedade, então, numa sociedade menos preconceituosa, não poderemos chamar um corintiano de "gambá"? O futebol não
perde a graça com isso?
FRANCO JR. - Você poderá chamá-lo assim, sem que isso resulte em um tiro ou uma facada. A Inglaterra, que é o grande
país do futebol -em termos de
o quanto as pessoas vivem, discutem, pensam, publicam e
comparecem aos estádios-,
tem rivalidades muitos fortes.
Há uma tradição de cânticos
de torcidas. Alguns são muito
violentos em relação a um rival
tradicional, falando em bater,
matar. Um cântico da torcida
do Arsenal, por exemplo, pede
que se levantem aqueles que
odeiam os torcedores do Tottenham, e todos se levantam.
FOLHA - Torcer pela TV, não no estádio, é ter essencialmente outra relação com o futebol, com o time?
FRANCO JR. - Essa questão tem
dois aspectos. Quando torcemos diante da televisão, nossas
reações são pontuais, espontâneas, enquanto no estádio a
pessoa é levada pela massa.
Isso não tem necessariamente a ver com o contato com o
ídolo; nesse sentido, há uma inversão: estamos mais perto do
jogador pela TV, com o close no
rosto do atleta, com a entrevista coletiva.
FOLHA - Com a violência nos estádios, com a bilheteria representando cada vez menos para as finanças
do clube, a presença física da torcida
está se tornando obsoleta?
FRANCO JR. - Não. O jogador não
distingue os rostos na arquibancada, mas sente sua presença. A torcida influencia o comportamento do time, para o
bem e para o mal; quantas vezes
a torcida do Corinthians não
atrapalhou o time com sua cobrança excessiva?
Em outros casos a torcida,
que deveria apoiar, cala-se. Estive no jogo entre São Paulo e
Fluminense [30/11]; a torcida
local jogou pouco. Porque o time jogou pouco. Mas quem deve animar quem?
FOLHA - A torcida brasileira é muito diferente da européia?
FRANCO JR. - Muito. E da torcida
argentina também. Minha hipótese é de que há "perfis nacionais" de torcida. Os povos
com maior autoconfiança, ou
arrogância, se quiser, têm mais
entusiasmo e empurram o time
para a frente.
No Reino Unido, o grande
império do século 19, há entusiasmo o tempo inteiro, independentemente da posição do
clube na tabela; mesmo que o
time seja pequeno, a torcida
canta o tempo todo.
No caso brasileiro, se a equipe joga bem, a torcida acompanha; se joga mal, vaia -o que é
raro em outros países- ou se
fecha.
FOLHA - Se o brasileiro não é orgulhoso, é o quê?
FRANCO JR. -
O futebol reflete o
padrão cultural geral do país.
Não só na forma de jogar, mas
na forma de vivenciar, de torcer. Nossa pobreza cultural se
reflete na pobreza das canções,
na violência da torcida.
Jogamos bem, mas pensamos mal o esporte. Como um
país como o Brasil não tem um
periódico de nível sobre futebol? O que são os jornalistas
brasileiros, senão pessoas que
apenas decoram escalações?
Há duas ou três exceções.
FOLHA - Quem são?
FRANCO JR. - Casagrande -espero que volte à ativa-, Paulo
Vinicius Coelho e Tostão. Mas a
culpa não é só do jornalista. É
preciso escrever de acordo com
a demanda do público.
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