São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2008

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+Sociedade

Os bambas da bola

Principal medievalista do país, Hilário Franco Jr. fala sobre a ascensão do São Paulo e diz que baixo nível cultural do Brasil se reflete em campo e nas torcidas

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

Hoje termina o Campeonato Brasileiro de 2008 com o embate de duas imagens opostas do futebol brasileiro: o São Paulo, líder, joga para consagrar os pontos corridos, forma de disputa em que a regularidade é recompensada. O Grêmio de certa forma encampa a tradição trágica brasileira: para ser campeão, depende não só de sua vitória contra o Atlético (MG) como da derrota do time paulista contra o Goiás -portanto conta com a associação do esforço de última hora ao imponderado.
Esse confronto de modelos do futebol é explorado pelo historiador Hilario Franco Jr., livre-docente da USP e autor de "A Dança dos Deuses" (Companhia das Letras), a partir da seguinte chave interpretativa: "O futebol é expressão da sociedade que o contém". Nesta entrevista à Folha, o medievalista, especialista em história social do futebol e são-paulino compara o futebol brasileiro atual ao do passado e também ao praticado na Argentina e na Europa.

 

FOLHA - Uma das razões apontadas para o sucesso do São Paulo é o orçamento maior. O que vem primeiro no futebol brasileiro, a riqueza ou o resultado em campo?
HILARIO FRANCO JR. -
As coisas estão ligadas. O resultado em campo atrai bilheteria, mas isso não é o principal da receita dos clubes; atrai bons patrocinadores, isso é fundamental. Influi na negociação de cotas na TV -os times não recebem a mesma quantia, afinal alguns representam mais audiência.

FOLHA - O São Paulo, então, aparece como o modelo de gestão a ser seguido? Ou há alternativas?
FRANCO JR. -
Não basta fazer dinheiro, é preciso aplicá-lo bem. Basta ver o exemplo do Corinthians, com a [empresa de investimento] MSI, que teve dinheiro, mas acabou perdendo resultados, credibilidade e dinheiro -e rebaixado. Mas não existe um modelo único, de aplicação universal. O São Paulo gasta muito dinheiro nas categorias de base, R$ 9 milhões por ano, é um investimento que rende vendas todo ano. Outros clubes revelam jogadores sem ter essa estrutura -mas o resultado é irregular.

FOLHA - Que outros times na história do futebol o sr. identificaria como exemplares?
FRANCO JR. -
Pensemos, por exemplo, no Santos de Pelé. Era extraordinário, mas era um time de dez anos [de trabalho em grupo], ao contrário de hoje, quando os times duram um, dois, no máximo três anos. O calendário permitia excursões ao exterior, muito rentáveis. O que se fez com essa riqueza? O Santos permaneceu um time mediano -com grandes momentos, como a equipe de Robinho, Diego e Elano. Enquanto o São Paulo ficou anos sem ganhar nada para poder construir o Morumbi, o Santos fez o contrário: tinha tudo para ser uma grande potência, mas perdeu o bonde histórico. O Flamengo, com a imagem que tem, está sempre endividado, com problemas.

FOLHA - Como se conciliam tradição e marca?
FRANCO JR. -
São as histórias, a grife de cada clube, que se transmitem historicamente. Na Europa existem histórias oficiais; no Brasil, essas coisas permanecem por meio da paixão. O problema é ir além da fantasia do nome, fazer dele rentável. Às vezes é preciso inventar a própria marca, pois o mercado muda. A expressão depreciativa, chamar o são-paulino de "bambi", por outro lado, acaba sendo uma reação a um projeto que está dando certo.

FOLHA - Esses estereótipos se fazem sentir em campo?
FRANCO JR. -
Esses estereótipos não valem, é claro que são clichês. As imagens que fazem parte da cultura do futebol são como as da cultura geral: nem todo português é burro como nas piadas, certo? Os estereótipos não alteram o rendimento dos times; podem talvez estimular brigas entre torcidas.

FOLHA - Historicamente, a rivalidade sempre se manifestou assim?
FRANCO JR. -
A violência no futebol do Brasil existe desde pelo menos a década de 1920. Há casos de torcedores invadirem o gramado para agredir adversários, tiros dos guardas para o alto. O que não havia era brigas de rua entre torcidas. Mas isso não parece ser próprio do futebol, e sim o reflexo de uma sociedade mais violenta. A sociedade faz o futebol, não o contrário. A preferência pelo esquema mata-mata, que está sendo substituído pelos pontos corridos, por exemplo, não é casual. Ele representa uma sociedade dada a improvisações, a golpes de sorte, ao esforço de última hora. É como estudar apenas na véspera para tentar passar na prova. Nos pontos corridos, a tendência é que ganhe o mais organizado, mesmo que não seja brilhante -como é o caso do São Paulo neste ano.

FOLHA - Se o futebol acompanha a evolução da sociedade, então, numa sociedade menos preconceituosa, não poderemos chamar um corintiano de "gambá"? O futebol não perde a graça com isso?
FRANCO JR. -
Você poderá chamá-lo assim, sem que isso resulte em um tiro ou uma facada. A Inglaterra, que é o grande país do futebol -em termos de o quanto as pessoas vivem, discutem, pensam, publicam e comparecem aos estádios-, tem rivalidades muitos fortes. Há uma tradição de cânticos de torcidas. Alguns são muito violentos em relação a um rival tradicional, falando em bater, matar. Um cântico da torcida do Arsenal, por exemplo, pede que se levantem aqueles que odeiam os torcedores do Tottenham, e todos se levantam.

FOLHA - Torcer pela TV, não no estádio, é ter essencialmente outra relação com o futebol, com o time?
FRANCO JR. -
Essa questão tem dois aspectos. Quando torcemos diante da televisão, nossas reações são pontuais, espontâneas, enquanto no estádio a pessoa é levada pela massa. Isso não tem necessariamente a ver com o contato com o ídolo; nesse sentido, há uma inversão: estamos mais perto do jogador pela TV, com o close no rosto do atleta, com a entrevista coletiva.

FOLHA - Com a violência nos estádios, com a bilheteria representando cada vez menos para as finanças do clube, a presença física da torcida está se tornando obsoleta?
FRANCO JR. -
Não. O jogador não distingue os rostos na arquibancada, mas sente sua presença. A torcida influencia o comportamento do time, para o bem e para o mal; quantas vezes a torcida do Corinthians não atrapalhou o time com sua cobrança excessiva? Em outros casos a torcida, que deveria apoiar, cala-se. Estive no jogo entre São Paulo e Fluminense [30/11]; a torcida local jogou pouco. Porque o time jogou pouco. Mas quem deve animar quem?

FOLHA - A torcida brasileira é muito diferente da européia?
FRANCO JR. -
Muito. E da torcida argentina também. Minha hipótese é de que há "perfis nacionais" de torcida. Os povos com maior autoconfiança, ou arrogância, se quiser, têm mais entusiasmo e empurram o time para a frente. No Reino Unido, o grande império do século 19, há entusiasmo o tempo inteiro, independentemente da posição do clube na tabela; mesmo que o time seja pequeno, a torcida canta o tempo todo. No caso brasileiro, se a equipe joga bem, a torcida acompanha; se joga mal, vaia -o que é raro em outros países- ou se fecha.

FOLHA - Se o brasileiro não é orgulhoso, é o quê?
FRANCO JR. -
O futebol reflete o padrão cultural geral do país. Não só na forma de jogar, mas na forma de vivenciar, de torcer. Nossa pobreza cultural se reflete na pobreza das canções, na violência da torcida. Jogamos bem, mas pensamos mal o esporte. Como um país como o Brasil não tem um periódico de nível sobre futebol? O que são os jornalistas brasileiros, senão pessoas que apenas decoram escalações? Há duas ou três exceções.

FOLHA - Quem são?
FRANCO JR. -
Casagrande -espero que volte à ativa-, Paulo Vinicius Coelho e Tostão. Mas a culpa não é só do jornalista. É preciso escrever de acordo com a demanda do público.


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