São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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Os caniços mal-pensantes

Introdução à filosofia é tema de dois lançamentos, que pecam pelo biografismo fácil e não fisgam o leitor

OLGÁRIA MATOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nada exprime mais pungentemente a modernidade despoetizadora que sua contrapartida grega -grega no sentido em que o helenista J.P. Vernant lhe confere, quando narra sua primeira viagem à Grécia, no início de seus estudos.
"Navegava à noite de ilha em ilha; estendido no convés, olhava o céu por cima de mim, onde a lua brilhava (...). O que estou vendo é Selene, dizia para comigo, noturna, silenciosa, brilhante (...). Muitos anos depois, ao ver na tela de meu televisor as imagens do primeiro astronauta lunar saltitando pesadamente com seu escafandro no espaço de uma desolada periferia, à impressão de sacrilégio se juntou o sentimento doloroso de uma ferida que não poderia ser curada (...). Meu neto, que como todos viu essas imagens, já não será capaz de ver a Lua como eu a vi: com os olhos de um grego. A palavra Selene tornou-se uma referência meramente erudita: a Lua, tal como hoje surge no céu, não responde mais por esse nome."


As obras inscrevem-se no campo do desencan-tamento psíquico e da cultura


Os livros "História da Filosofia Grega", de Luciano de Crescenzo, e "A Filosofia Explicada à Minha Filha", de Roger-Pol Droit, inscrevem-se ambos no campo do desencantamento psíquico e da cultura. Não convidam à filosofia -não devido a seu caráter pedagógico, mas antes por adaptarem a filosofia ao mercado consumidor.
Valendo-se do gênero "história da filosofia", Crescenzo se encontra na linhagem convencional, não fosse o tratamento antiespeculativo conferido a pré-socráticos, Sócrates, Platão e neoplatônicos; Pol-Droit recorre ao "diálogo", um e outro aderidos ao gosto de um senso comum filosofante. Que se recorde, a filosofia, ao contrário, nasce do espanto e da admiração, devolvendo-nos a dimensão inquietante do mundo.
A biografia é mobilizada para capturar o leitor, acenando com uma leitura sem esforço e divertida. Escreve Crescenzo: "Tales era diferente de qualquer outro rapaz. Quando lhe perguntavam "Por que não se casa?", respondia invariavelmente "porque ainda não chegou a hora", até que certo dia mudou a resposta e disse "já é tarde, já passou a hora" (..). Em outras palavras, Tales era o que se pode chamar de filósofo".
Quanto a Pol-Droit, apresenta-se como um "exercício dialético", seguindo a fórmula de "O Mundo de Sofia": "- Existem muitas coisas que a gente pensa que sabe e na verdade não sabe?/ - Toneladas de coisas (...). Por sorte nem todas as perguntas ficam sem resposta! Em filosofia também existem problemas que encontram solução. Nem sempre, evidentemente, pois acontece de toparmos com novas perguntas que só fazem aumentar o embaraço. Mas isso não é grave. Ao contrário, é até bom./ - Se é embaraçoso não é coisa boa!/ - Na verdade é só que temos de nos entender primeiro sobre o sentido do termo "embaraçoso". Na vida de todos os dias preferimos o que não é embaraçoso. Afastamos as coisas que ocupam muito espaço (as embalagens, as malas grandes), que estorvam fisicamente e que impedem os movimentos".
Ambos visam a explicitar o discurso filosófico ao leitor interessado e não-especialista, mas desacreditando-o como hermético e esotérico, transformando conceitos em dialeto filosófico. Desvitalizando a "physis" grega e a "natura" latina, elas são designadas pela palavra genérica "natureza", sem considerandos. O "ethos" vem a ser, por sua vez, simplesmente "ética", ética no plural: médica, familiar, acadêmica.
Embora atento à linguagem filosófica, Pol-Droit endossa a ideologia do progresso: "Só temos acesso às idéias pelas palavras e por meio da combinação delas. É por isso que os filósofos sempre prestam muita atenção na maneira como se exprimem. O papel da linguagem é central, e é isso que quero destacar agora. Os filósofos do passado já sabiam disso, mas na época atual essa questão é um ponto essencial da filosofia". Assim, Austin superaria o "Crátilo" de Platão.
Estes livros cedem à facilitação da língua filosófica e de seus problemas, com o que perdem seus arcanos, privando-nos de sua aura.

Olgária Matos leciona filosofia na USP.

História da Filosofia Grega 1 e 2
208 págs., R$ 32,50 (cada volume)
de Luciano de Crescenzo. Tradução de Mário Fondelli. Ed. Rocco (av. Presidente Wilson, 231, 8º andar, Centro, CEP 20030-905, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/3525-2000).
A Filosofia Explicada à Minha Filha
102 págs., R$ 19,80
de Roger-Pol Droit. Tradução de Claudia Berliner. Ed. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3241-3677).



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