São Paulo, domingo, 08 de janeiro de 2006

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"O Roubo da Mona Lisa", de Darian Leader, toma como ponto de partida a psicanálise e a cultura de massa para discutir o episódio envolvendo a obra de Leonardo da Vinci ocorrido no Louvre, em Paris, em 1911

Como preencher um lugar vazio

Atsuhiko Hase - 10.set.2003/Kyodo News/Associated Press
Réplica gigante da "Mona Lisa", de Leonardo da Vinci, feita em plantação de arroz em Inakadate, no Japão


TALES A.M. AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dado o grau de defesas que sempre existirão diante do discurso estrangeiro da psicanálise e a necessidade da disciplina e do psicanalista de falarem de um outro lugar para que sua própria experiência, desde o inconsciente, se mantenha viva, a presença a céu aberto da cultura de percepções, raciocínios e conceitos psicanalíticos não deixa de ter o seu momento problemático.
Essa presença da psicanálise na produção de algo que nos é comum tem correspondência com uma certa mutação no escrito psicanalítico: ele se aproxima, mais do que nunca, da sua vocação original para a forma ensaio, que foi camuflada ou recalcada pelo desejo formal de ciência, falsamente endereçado à consciência médica.
Essa mutação pode ser percebida no livro "O Roubo da Mona Lisa - O Que a Arte Nos Impede de Ver", do interessante psicanalista inglês Darian Leader, estudioso singular de Freud e de Lacan.
Trata-se, mais do que nunca, do tal ensaio psicanalítico que pode ter interesse geral, no qual a liberdade dos movimentos de associação e referências do autor cria um amplo panorama de problemas, ao redor da construção do olhar e da imagem na vida humana e do lugar da arte em nosso tempo. Nele, o velho esporte psicanalítico da livre associação, que configura uma cadeia significante heterodoxa, surpreendente, corresponde, de forma muito íntima, à própria forma ensaio, que alcança a cultura. A psicanálise, assim, faz de sua própria forma de pensar um dado de sublimação.
Leader desfila uma série significativa de construções psicanalíticas, com a típica ontologia do inconsciente própria à disciplina, a respeito dos limites e da constituição do visível e também da imagem como reguladora da vida simbólica humana -série que ele liga a muitos episódios e anedotas espirituosas envolvendo artistas e trabalhos de arte contemporânea.
Tudo isso gira ao redor de um fenômeno público que esteve, segundo o livro nos leva a crer, na origem de algo da espetacularização e massificação do lugar da arte -eminentemente visual- em nosso mundo contemporâneo: o episódio criminoso mas também de cultura de massas do roubo da Mona Lisa do Louvre, em 1911, por um homem absolutamente comum, Vincenzo Peruggia, e, rigorosamente, sem nenhum motivo especial.
Partindo de uma reflexão de Freud sobre a constituição de nosso campo de visão sobre o ocultamento de uma parte do corpo erótico humano -e nosso erotismo visual estaria baseado nesse objeto ausente, não-visível, que mantém o desejo vivo-, Leader atenta para o movimento de massa a partir do sumiço do quadro, que envolveu até mesmo Franz Kafka e seu amigo Max Brod, quando milhares de pessoas acorreram ao museu para ver o lugar vazio da obra ausente.
Essa percepção do fenômeno e sua pergunta -o que significa o fato de o vazio de uma obra de arte, e aquela obra em particular, atrair pessoas ávidas por algo, aliás, ávidas pelo quê?- já são em si um tipo de atenção aos gestos simbólicos humanos que a psicanálise descobriu -um modo de ser sensível e de dar respostas, para muitos inaceitáveis, a esses problemas evidentes, mas, de algum modo, ocultos, cheios de sentido, mas francamente antiintuitivos.
Leader é muito sensível a esse tipo de fenômeno, o que leva o seu livro a uma constelação de direções simultâneas, em que o episódio, a anedota e a vida cotidiana são a matéria extensa de graduais e densos mergulhos naquilo que Lacan chamou de "formações do inconsciente".
Dois pontos me parecem muito altos, na constelação cristalina de Leader: a análise do lugar social do significante do desejo absoluto que a arte pode ocupar em nosso mundo; e o estudo da dimensão irrepresentável do real pulsional, a "coisa", segundo Lacan, na fronteira da qual a arte contemporânea estaria em geral às voltas.
Nesse momento, Leader realiza uma leitura da evolução da obra de Francis Bacon realmente notável, demonstrando que, com seu próprio gesto criador, a psicanálise pode se pôr no mesmo nível simbólico de seus objetos elevados.
Ao final, após aprendermos muito com a clareza do autor em um universo amplo e estranhamente cheio de dimensões heterogêneas -articuladas na prestidigitação, no gesto, próprio ao método do analista-, fica a dúvida diante do sorriso cristalino e ambíguo de Leader para o seu mundo: a psicanálise pode falar de qualquer coisa, pois sua matéria está mesmo em tudo, ou a sua própria exibição pública deve, necessariamente, guardar o espaço de opacidade do que ainda é intransponível no humano?
Que a obra escolhida por Leader para pensar o seu mundo seja a mais óbvia e, também, ideologicamente, a mais enigmática de todo o cânone ocidental é um retrato revelador dos impasses que envolvem a presença dos psicanalistas em nosso mundo.

Tales A.M. Ab'Sáber é psicanalista, autor de "O Sonhar Restaurado" (editora 34).

O Roubo da Mona Lisa
168 págs., R$ 39
de Darian Leader. Trad. de Álvaro Cabral. Ed. Elsevier (r. Sete de Setembro, 111, 16º andar, CEP 20050-006, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 3970-9300).



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