São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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Sensibilidade para a inércia

O FILÓSOFO ANALISA POR QUE O PERSONAGEM RIPLEY É ÉTICO, EMBORA SEM NENHUMA MORAL, ATACA AS ADAPTAÇÕES PARA O CINEMA DA OBRA DE PATRICIA HIGHSMITH E DIZ QUE A ESCRITORA AMERICANA TRANSFORMOU O ROMANCE POLICIAL EM ARTE

Por Slavoj Zizek

Hulton Archive/Getty Images
A escritora Patricia Highsmith (1921-1995)


Antes de mais nada, permitam-me um esclarecimento de natureza pessoal. Para mim, o nome "Patricia Highsmith" designa um território sagrado. No meu credo, a autora ocupa, entre os escritores, uma posição semelhante à de Espinosa -o "Cristo dos filósofos", na avaliação de Deleuze. Para compreender uma obra de arte é preciso conhecer seu contexto histórico, costumamos ouvir. A lição de Highsmith contraria esse lugar-comum historicista: o excesso de contextualização histórica pode dificultar um contato adequado com a obra, pois esse contato exige que nos abstraiamos de seu contexto.
Além disso, a própria obra de arte nos fornece o contexto capaz de fazer-nos compreender uma determinada situação histórica. Se alguém fosse visitar a Sérvia hoje, o contato direto com a realidade local deixaria o visitante confuso. Se esse visitante lesse alguns romances e assistisse a alguns filmes representativos, tais obras sem dúvida forneceriam o contexto capaz de levá-lo a organizar os dados de sua experiência imediata. Analogamente, a tarefa no caso de Highsmith é menos explicar a obra por meio de referências à vida "real" da autora que esclarecer, mediante referências à obra, como ela conseguiu sobreviver na vida "real".
E qual seria sua obra-prima? Os primeiros textos -o conto "The Heroine" (A Heroína) e o romance "Pacto Sinistro" ("Strangers on a Train")- já revelam uma forma extraordinariamente acabada. Tudo estava lá, nenhum "amadurecimento" era necessário. Como Buda, que, segundo a lenda, já nascera um homem sábio, de cabelos prateados, a escritora começou no ápice. Seu único fracasso artístico evidente foi o romance de temática explicitamente lésbica, "The Price of Salt" (O Preço do Sal), publicado em 1952, sob o pseudônimo de Claire Morgan, e reeditado em 1991, já com a assinatura de Highsmith e o título "Carol".
Paradoxalmente, a explicação para esse fracasso talvez resida no fato de que "Carol" se aproximava demais dos traumas e preocupações da "vida real" da autora: enquanto Highsmith buscou formular tais preocupações de modo oblíquo, cifrado, o resultado foi excepcional, mas, ao tratar diretamente desses temas, "chamando as coisas pelo nome", produziu um romance insípido, desinteressante, endossando a tese lacaniana de que a verdade se articula nas próprias distorções e deslocamentos do tema principal.
Entre os romances que não pertencem ao ciclo Ripley, meu favorito é "Those Who Walk Away", no qual a originalidade do romance policial de Highsmith se evidencia particularmente: a ficcionista introduziu no mais "narrativo" dos gêneros a inércia do real, a irresolução, a lenta passagem do "tempo morto", características do curso factual da vida. Em Roma, Ed Coleman tenta matar o genro Ray Garrett, um pintor frustrado e dono de galeria, de quase 30 anos, a quem culpa pelo recente suicídio de sua única filha, Peggy, mulher de Ray. Em lugar de evitá-lo, Ray procura Ed em Veneza, onde este passa o inverno com a namorada Inez.
Então começa a paradigmática agonia highsmithiana da relação simbiótica entre dois homens, ligados um ao outro pelo próprio ódio. Atormentado por um sentimento de culpa na morte da própria mulher, Ray se expõe às intenções violentas de Ed. Cedendo a esse impulso autodestrutivo, aceita uma carona na lancha de Ed, e, no meio da lagoa, o sogro empurra Ray para dentro d'água. Ray finge ter morrido e assume uma falsa identidade, vivendo ao mesmo tempo uma liberdade eufórica e um vazio esmagador. Como um morto vivo, vaga pelas ruas frias de uma Veneza invernal quando... Trata-se de um romance policial sem assassinato, só com tentativas de homicídio malogradas: o livro termina sem desenlace claro, afora talvez a resignação de Ray e Ed ao fato de estarem ambos condenados a ser um eterno tormento para o outro.


Highsmith praticou o equivalente literário do que Deleuze mais tarde definiria como a mudança da "imagem-movimento" para a "imagem-tempo" na história do cinema


Highsmith praticou o equivalente literário do que Deleuze mais tarde definiria como a mudança da "imagem-movimento" para a "imagem-tempo" na história do cinema: a verdadeira arte não é apenas contar histórias, mas contar como histórias "dão errado", tornando visíveis e palpáveis os interstícios em que "nada acontece". Na arte, o espiritual e o material estão intimamente entrelaçados: o espiritual emerge quando nos damos conta da inércia material, da pura presença ineficaz dos objetos a nossa volta. O espiritual irrompe depois de uma tentativa de homicídio malsucedida na qual o assassino frustrado e sua vítima ficam um diante do outro, sem ação, aparvalhados. Nesse sentido, mais que qualquer outro autor, Highsmith elevou o romance policial ao estatuto de arte.
Essa sensibilidade para a inércia se torna particularmente significativa numa época como a nossa, em que o incessante impulso capitalista para produzir mais e mais objetos novos causa uma necessária obsolescência, formando pilhas crescentes de lixo, montanhas de carros usados, computadores etc. Nessas sempre crescentes pilhas de "coisas" inertes, inoperantes, com sua presença obviamente inútil, flagramos o impulso capitalista em repouso. Aí reside o interesse de "Stalker", obra-prima de Andrei Tarkovsky, com suas ruínas pós-industriais -fábricas abandonadas invadidas pela vegetação, túneis de concreto e estradas de ferro cheios de água estagnada e cobertos de mato, deserto só povoado por cães e gatos vira-latas. Aqui a natureza e a civilização industrial novamente se sobrepõem, mediante uma degradação comum, e a civilização em decadência é de novo reintegrada, não à natureza idealizada e harmoniosa, mas à natureza em decomposição. Por ironia da história, um autor do Leste comunista mostrou-se extremamente sensível ao reverso da medalha do impulso capitalista para produzir e consumir.
Essa ironia talvez revele uma necessidade mais profunda, vinculada ao que Heiner Müller chamou de "mentalidade de sala de espera" da Europa do Leste: "Era para anunciarem: o trem chegará às 18h15 e partirá às 18h20 -e nunca chegou às 18h15. Então anunciaram: o trem chegará às 20h10 etc. Você continuou sentado na sala de espera pensando: com certeza chegará às 20h15. Essa era a situação. Uma expectativa messiânica. Há anúncios constantes da chegada iminente do Messias, e você sabe perfeitamente que ele não virá. Ainda assim, a cada vez, é bom ouvir anunciar sua chegada".
O importante nessa atitude messiânica não era a manutenção da esperança, mas o fato de que, como o messias não vinha, todos começavam a olhar à própria volta e reparar na materialidade inerte em torno deles, ao contrário das pessoas no Ocidente, em frenética atividade o tempo inteiro e incapazes de perceber de forma adequada o que se passa a seu redor. Não havendo aceleração, era possível apreciar o contato com a terra na qual a sala de espera tinha sido construída. O adiamento permitia vivenciar as idiossincrasias daquele mundo, seus detalhes topográficos e históricos. É fácil imaginar um protagonista de Highsmith, como Ray ou Ed, preso numa semelhante estação de trem da Alemanha Oriental. A autora nos fez ver o que nos cerca com olhos alemães-orientais.
No entanto tal ambiente de deterioração material e decisões falhadas é apenas metade da história: nessas circunstâncias, ainda seria imaginável um autêntico herói? Quem andaria por ruas decrépitas contrariando essa inércia? A resposta de Highsmith é Tom Ripley, o protagonista de cinco romances seus. Ripley é uma personagem desagradável, incômoda, como indica o fracasso de suas quatro versões cinematográficas. Primeiro foi encarnado por Alain Delon no filme de René Clément, "O Sol por Testemunha" ("Plein Soleil", 1960), uma adaptação de "O Talentoso Ripley" [Companhia das Letras] na qual a polícia o prende no fim, para o desgosto de Highsmith. Dirigido por Wim Wenders, Denis Hopper interpretou Ripley em "O Amigo Americano" ("Der Amerikanische Freund", 1977), baseado em "O Jogo de Ripley" [Companhia das Letras].
Depois, em "remakes" estranhamente simétricos, foi a vez de Matt Damon em "O Talentoso Ripley" ("The Talented Mr. Ripley", 1999), de Anthony Minghella, e John Malkovich em "O Jogo de Ripley" [o filme estréia no Brasil em abril], de Liliana Cavani. Embora memoráveis, os quatro filmes apresentam um Ripley bem distinto do de Highsmith, pois de certa maneira humanizam sua essência inumana: Delon é um europeu frio e cruel; Hopper, um caubói existencialista a la Sam Shepard; Damon compõe um americano cheio de vontades, impulsivo, instável, quase histérico; Malkovich exibe sua habitual frieza irônica e decadente.
Quem é então o Ripley "original"? Tomemos o filme de Minghella, no qual o contraste é mais acentuado. Tom Ripley, um jovem nova-iorquino sem dinheiro, é confundido pelo magnata Herbert Greenleaf com um colega de seu filho Dickie na Universidade Princeton, onde este se formou. Dickie está na Itália, dedicando-se a um dolce far niente, e Greenleaf paga a Tom para ir até lá e convencer o filho a voltar e assumir o lugar a ele reservado à frente dos negócios da família.Uma vez na Europa, Tom fica cada vez mais fascinado não só pelo próprio Dickie, mas também pela vida fácil, elegante, luxuosa e socialmente aceitável que leva o rapaz.
Toda a conversa sobre a homossexualidade de Tom é descabida: para ele, Dickie não é objeto de desejo, representa antes um modelo, um ideal de sujeito, "capaz de saber como desejar". Em suma, torna-se seu ego ideal, a figura com quem se identifica imaginariamente: quando disfarçadamente lança a Dickie olhares cobiçosos, Tom não está manifestando um desejo erótico pelo outro, quer é ser igual a ele. Para tanto, Tom monta um plano elaborado: durante um passeio de barco, mata Dickie e, por algum tempo, assume a identidade do morto. Fazendo-se passar por Dickie, organiza tudo de modo que, após a morte "oficial" da vítima, herde sua fortuna. Quando isso acontece, o falso Dickie desaparece, deixando uma carta na qual anuncia o próprio suicídio e elogia Tom, que então reaparece, engana os desconfiados investigadores e até conta com a gratidão dos pais do "suicida". Depois deixa a Itália e vai para a Grécia.
Embora escrito em meados dos anos 1950, Highsmith prefigura a atual reescrita terapêutica dos mandamentos éticos, transformados em "recomendações" que não devem ser seguidas tão cegamente. Ripley corresponde ao último passo nessa reescrita: "Não matarás", a menos que não haja outra maneira de alcançar a felicidade. Ou, conforme disse Highsmith numa entrevista: "Ele poderia ser descrito como psicótico, mas não o chamaria de insano, pois suas ações são racionais. (...) Considero-o uma pessoa razoavelmente civilizada, que só mata quando não vê outra saída". Ripley não é nenhum daqueles "psicopatas americanos": seus atos criminosos não são frenéticas "passages à l'acte" nem súbitos acessos de violência nos quais libera a energia retida com as frustrações do cotidiano yuppie. Seus crimes são calculados mediante um raciocínio pragmático simples: faz o necessário para atingir seu objetivo -uma vida opulenta e calma nos mais seletos bairros de Paris.
O traço mais perturbador de Ripley é sem dúvida a ausência do mais elementar sentido moral. No dia-a-dia, é muito amável e obsequioso, embora com alguma frieza. Quando mata alguém, age a contragosto, depressa e o menos dolorosamente possível, como se realizasse uma tarefa desagradável, porém necessária. Ripley é o melhor exemplo do que Lacan tinha em mente ao definir a normalidade como uma forma especial de psicose, uma forma de não ficar traumaticamente preso à rede simbólica, de conservar a "liberdade" da ordem simbólica. O enigma do Ripley de Highsmith não se resume ao recorrente tema ideológico americano da capacidade que cada indivíduo tem de "reinventar" radicalmente a si mesmo, de apagar os vestígios do passado e assumir uma identidade completamente nova, transcende o "self polimorfo".
Aqui o filme de Minghella se distancia do romance, transformando Ripley numa nova versão, a la Gatsby, do herói americano que recria a própria identidade de maneira nebulosa. Aqui se perde algo que a diferença crucial entre o livro e o filme ilustra bem: no filme, Ripley tem lampejos de consciência; já no romance, esses escrúpulos estão muito além de sua capacidade de compreensão. Por isso, explicitar seus desejos homossexuais, como faz o filme, também me parece equivocado. Assim Minghella acaba dando a entender que, nos anos 50 do século 20, Highsmith precisava ser mais discreta a fim de tornar o herói palatável ao grande público, discrição hoje desnecessária, claro. Contudo a frieza de Ripley não é o efeito visível de sua homossexualidade, seria antes o inverso.
Num dos últimos romances, ficamos sabendo que mantém relações sexuais com a esposa Heloise uma vez por semana, num ritual rotineiro, destituído de qualquer paixão. A personagem criada por Highsmith é como Adão no paraíso. Antes da queda, segundo santo Agostinho, Adão e Eva faziam sexo, mas apenas como uma tarefa instrumental, comparável a plantar sementes num campo. Uma possibilidade de leitura é ver em Ripley uma espécie de anjo, que vive num universo anterior à lei e sua transgressão (o pecado), isto é, anterior ao círculo vicioso da culpa gerado pela própria obediência à lei, conforme o descreve Paulo. Daí ele não sentir nenhum remorso, não ter a consciência culpada depois dos assassinatos. Não está totalmente integrado à lei simbólica.
O preço que Ripley paga por essa falta de integração é sua inabilidade em viver intensamente o sexo -clara evidência de não existir intensidade sexual fora do universo da lei simbólica. Num dos últimos romances do ciclo Ripley, o protagonista nota duas moscas na mesa da cozinha. Ao observar de mais perto e percebê-las copulando, esmaga-as com nojo. Esse é um detalhe digno de nota. O Ripley de Minghella nunca teria reagido assim. O Ripley de Highsmith se acha de certa forma desvinculado da realidade carnal, repugna-o a materialidade da vida, seu ciclo de geração e corrupção. Marge, a namorada de Dickie, faz um retrato preciso do herói: "Está bem, ele pode não ser bicha. É um nada, pior ainda. Não é normal o suficiente para ter qualquer tipo de vida sexual". Como semelhante frieza caracteriza determinada atitude lésbica radical, alguns talvez considerassem que o paradoxo de Ripley não é ser um homossexual enrustido, mas ter um comportamento lesbiano e pertencer ao sexo masculino (não admira que Highsmith se sentisse tão próxima da figura de Ripley.)


Embora memoráveis, os quatro filmes apresentam um Ripley bem distinto do de Highsmith, pois de certa maneira humanizam sua essência inumana


A personagem de Minghella evidencia o equívoco dessa opção, aparentemente "mais radical que a do romance", de tornar manifesto seu conteúdo implícito, recalcado: no original de Highsmith, importava menos a "repressão" do conteúdo (sexual etc.) supostamente proibido que a própria ausência dessa repressão enquanto tal. O gesto de preencher as lacunas elimina a monstruosidade fria e não-psicológica de Ripley, incomodamente próxima de uma estranha "normalidade". "Preenchendo a lacuna" e "tornando tudo explícito", Minghella exclui o vazio enquanto tal, um vazio de subjetividade, em última análise. Desaparece o indivíduo educado, que é ao mesmo tempo um monstruoso autômato sem nenhuma turbulência interna, para dar lugar à "riqueza de uma personalidade", a alguém carregado de traumas psíquicos -em síntese, uma pessoa a quem podemos compreender, no sentido pleno do termo.
Tom Ripley não era uma simples máscara para Highsmith, representava o ego exteriorizado da escritora: segundo assinala a biografia "Beautiful Shadow" [ed. Bloomsbury], de Andrew Wilson, lançada no ano passado, ela até mudou o nome, passando a se chamar Patricia Highsmith-Ripley e a assinar "Tom (Pat)" em cartas. Parafraseando o velho dito taoísta a respeito do homem que sonha ser uma borboleta ou vice-versa, perguntaríamos: Highsmith está sonhando que é Ripley ou Ripley, em sua vida social diária, é quem está sonhando ser Highsmith, a romancista? O cerne desse fascínio é ético: Ripley traduz da maneira mais clara e radical a diferença entre moralidade e ética: apesar de imoral, é totalmente ético. Parece impossível proceder assim hoje, quando todas as regras impostas a nós são contrárias a semelhante conduta, seduzindo-nos com a promessa: "Se vocês seguirem essas regras morais básicas, podem ser tão antiéticos quanto quiserem".

Slavoj Zizek é filósofo esloveno, professor no Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. É autor de "Bem-Vindo ao Deserto do Real" (Boitempo) e "O Mais Sublime dos Histéricos" (Jorge Zahar). Escreve mensalmente na seção "Autores".
Tradução de Bluma Waddington Vilar.


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