São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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+ brasil 504 d.C.

Luiz Costa Lima

EMBORA RECONHECIDO COMO CRÍTICO LITERÁRIO CENTRAL, AUTOR TEVE INSIGHTS MAIS IMPORTANTES EM ÁREAS COMO HISTÓRIA, POLÍTICA E SOCIOLOGIA

JOSÉ VERÍSSIMO, O DESCONHECIDO

A reedição de "Homens e Coisas Estrangeiras" pela ed. Topbooks (2003) é o resgate parcial de uma dívida que temos com José Veríssimo (1857-1916). A princípio lançado em três volumes (1902, 1905 e 1910), só agora o livro volta a circular. E isso, apesar de, como mostra seu prefaciador e melhor especialista, João Alexandre Barbosa, o livro fazer parte do que há de mais significativo na produção do crítico paraense. A explicação do descaso é simples: continuamos sem uma cultura do livro. E, apesar de contarmos com dezenas de cursos de letras, suas bibliotecas não estão obrigadas a manter um acervo nem sequer razoável. De Veríssimo, contentamo-nos em saber da existência da "História da Literatura Brasileira" (1916), na verdade muito menos fértil que os "Estudos de Literatura Brasileira", reeditados em sete volumes, entre 1977 e 1979, e, agora, não mais encontráveis. Ignorado, Veríssimo cria um hiato no conhecimento da vida intelectual entre o fim do século 19 e a primeira década do 20. Mais do que isso, evita que se perceba a prolongada carência na compreensão do fenômeno literário. Como diz seu prefaciador: "... a dificuldade em fazer passar para a análise das obras de criação literária a mesma largueza de ponto de vista que assume na leitura de obras de não-ficção, o que certamente decorre do entranhado conceito de arte como representação de sua herança naturalista". Com efeito, se é bastante largo o leque de leituras e interesses de Veríssimo, parece estranho, em um crítico literário, que suas melhores formulações não concirnam à arte e à literatura. São sintomáticos os artigos que dedica a John Ruskin. Embora cite seu "Modern Painters" (1843-60), de sua concepção de arte se limita a dizer que "foi em arte um realista embriagado do ideal" (!). A Veríssimo importa em Ruskin seu humanismo, sua fundação "em plena Inglaterra (d)a colônia comunista Saint George's Guild", sua crítica às relações capitalistas -"o culto de Mammon é tão impossível de conciliar com a justiça social como com a beleza". Seria algo semelhante ao articulista que hoje, destacando a corajosa atuação política de Chomsky, esquecesse seu papel na lingüística.

"Feições obscenas"
O mesmo se diga do que escreve sobre o romance. Seus comentários quase se restringem ao resumo dos enredos. Para isso, por certo influi escrever para o grande público, mesmo porque não tínhamos outro, e a própria concepção de crítica na época, simples mediadora entre a obra e o leitor. Mas não é tudo. Fora alguns justos reparos sobre o romance histórico -(...) "não creio nessa espécie híbrida"- e outros, demasiado esquemáticos, sobre a natureza do romance -a épica de nosso tempo-, suas reflexões sobre arte e literatura são de um primarismo assombroso. Para ele, uma e outra ou são "espelho da vida" ou obra de imaginação, quando se confundem com "um largo vôo para o ideal". No primeiro caso, arte e literatura levam à visão do social e, daí, à sua abordagem sociológica, e, no segundo, se dissolvem em extrema vagueza: "O mais realista talvez dos grandes poemas humanos", dirá do "Quixote", "é porventura aquele que melhor exprimiu a capacidade de ideal (...)". E, quando sai da grosseira dicotomia, é para reprovar, em seu admirado Zola, haver maculado "a sua obra de feições obscenas".


As reflexões de Veríssimo sobre arte e literatura são de um primarismo assombroso


Pois a crítica exercida por Veríssimo era a exata contraface do que Antonio Candido, caracterizando a tradição da literatura brasileira do século 19, viria a chamar de "literatura militante". Aqui, entretanto, está a surpresa: se, em seu campo específico, o autor era vago e normativo, na reflexão histórica e política tem achados que não poderiam ter sido esquecidos. Destaque-se seu artigo "Raça e Cultura - Latinos e Germanos", motivado pelas conferências então pronunciadas entre nós pelo historiador italiano Guglielmo Ferrero. Se Ferrero se empenhara em afirmar as diferenças entre as raças latina e germânica, contra o critério étnico, Veríssimo escrevia: "Há na história um fator mais importante do que a raça: a cultura. De fato foi a cultura romana que fez o que nós erradamente chamamos de raça latina, simples produto histórico e não raça no rigoroso sentido da palavra, como foi a mesma cultura que tão profundamente modificou os germanos". Incluída no terceiro volume do "Homens e Coisas Estrangeiras" (1910) e havendo sido originalmente publicado entre fevereiro de 1907 e março de 1908, a contraposição entre raça e cultura era, ao que eu saiba, inédita entre nós. Por ela, o autor contradizia o que ainda ele próprio aceitava no começo do século. Assim, ao discutir "Nos Estados Unidos, Impressões Políticas e Sociais" (1899), de Oliveira Lima, embora rejeitasse o que lhe parecia um americanismo extremado, Veríssimo contudo admitia "que a civilização ocidental só pode ser obra da raça branca e que nenhuma civilização se poderá levantar com povos mestiços". Parte do primeiro volume, datado de 1902, esta seria a interpretação acatada entre nós. Não sabemos se Veríssimo se deu conta de sua reviravolta. Nem é isso o que mais importa. O incrível é que não se lhe tenha assinalado o mérito de fazê-lo. O que nos leva a suspeitar de que, entre nós, os nossos autores se lêem menos entre si do que seria de esperar. Mas não é esse seu único achado.

"A ilusão americana"
São ainda extremamente fecundas suas observações sobre o fenômeno religioso e sobre a vocação norte-americana para o domínio "de pólo a pólo". Sobre o primeiro, em "O Fim do Paganismo", o autor mostra sua sagacidade historiográfica ao notar: "As religiões antigas não conheceram a intolerância religiosa. (...) Só as religiões que têm uma teologia são, quando dominantes, perseguidoras". Sobre o segundo, o argumento é reiterado ao voltar à questão norte-americana, a que Oliveira Lima retornara em o "Pan-Americanismo" (1906). Ressaltando "o perigo americano", Veríssimo se apoiava em passagem de livro de John Fiske, "American Political Ideas" (1898). "Creio que tempo virá" -dizia o autor americano- "em que se realize na terra um tal estado de coisas que seja possível falar dos ESTADOS UNIDOS estendendo-se de pólo a pólo". Embora ressalve que Oliveira Lima não partilhava da "ilusão americana", opondo-se, como se sabe, ao seu até então amigo Joaquim Nabuco, Veríssimo observava que o risco da dominação só poderia ser contrastado "por uma política que não (fizesse) da amizade americana uma questão nacional".
Como, em suma, se explicaria que o autor fosse mais agudo em áreas que não eram de sua especialidade? Teria errado de vocação ou era a própria sociedade brasileira que o pressionava a desenvolver sua inteligência na história, na política, na sociologia, e não em questões de arte e literatura? Ao ignorá-lo, nos permitimos repetir suas carências, ainda quando, formalmente, as condições de produção intelectual, no país, sejam bastante melhores.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ). É autor de "O Redemunho do Horror" (ed. Planeta) e "Intervenções" (Edusp). Escreve regularmente na seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).


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