São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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Vivo ou morto

Por Silviano Santiago

Escritas em inglês, as três palavras me atraíram. Ocupavam a parte superior do cartaz pregado no quadro de avisos do shopping Plaza, que ficava num subúrbio da cidade de Buffalo. Ali tinha sido alugado um apartamento para mim. Nele estava morando desde setembro do ano anterior. Estávamos em pleno verão. Vivo ou morto. Fechei os olhos. Remontei em devaneio ao Oeste norte-americano do século 19 e à Chicago dos anos 1930. A saraivada de balas que recebe os intrépidos assaltantes de diligência nos filmes de John Ford e o oportunismo silencioso e intenso do roubo a banco, quadriculado em fotogramas pelos mestres do gênero no cinema. Vivo ou morto. Billy the Kid e Al Capone, heróis da criançada. Para tristeza dos espectadores infantis, Pat Garrett e o Imposto de Renda deram cabo dos dois. As três palavras em preto-e-branco mais me atraíram e horrorizaram, quando abri os olhos e voltei a elas. Originalmente ao centro do quadro de avisos, o cartaz crescera e tomara o formato de espelho. Lá estava minha cara em foto 4x7 colorida, circundada por 19 outros rostos masculinos e femininos. A foto não podia ter sido reproduzida do passaporte (o autêntico estava comigo, guardado no apartamento; apenas o nome do titular era falso). Só podia ser reprodução da foto em duplicata que o serviço consular exigiu no momento em que preenchi a ficha de solicitação do "visa" de entrada neste país. As 20 pessoas retratadas tínhamos em comum os cabelos compridos e desgrenhados, alheios ao barbeiro, à escova e até ao pente. Se fôssemos todos imberbes, não haveria diferença de gênero sexual na galeria. Parecíamos um engradado de garrafas de Coca-Cola. Éramos tão semelhantes uns aos outros quanto o foram os velhos caubóis gringos (cabelos louros e olhos azuis) e os gângsteres carcamanos (cabelos negros e pele crestada pelo sol mediterrâneo). Fechei de novo os olhos. Tentei e não consegui me lembrar de mulher caubói ou gângster. Nosso bando era moderno e cinematográfico. Nada a ver com o Clube do Bolinha. Geração Bonnie e Clyde. Composto de homens e de mulheres. Nada de assalto a diligência, a banco ou a trem pagador. Não tínhamos renda própria, éramos (por assim dizer) assalariados. O FBI nem cogitou em amestrar o leão do Imposto de Renda para nos abocanhar com a mão na botija. Tomou um atalho. Começou a investigar a origem dos depósitos "cash" em contas fantasmas. E a espalhar cartazes pelos shoppings, estações rodoviárias, aeroportos e agências dos correios. A caça ao bandido se atualizava. Solapávamos a lei do império de maneira inédita e original. Umas bombinhas caseiras nas agências bancárias suburbanas. Fogo nas casas comerciais dos patrioteiros, onde se lia nas faixas afixadas na fachada: "Better dead than red". Passávamos por cima da adaptação ao "american way of life" e da ambição do self-made man. Tudo sem visar a lucros. Era branco, fiquei com os universitários brancos. Outros, pretos, ficaram com os Black Panthers. Outros mais, marrons, com os Young Lords porto-riquenhos. Cada qual fazia o mal com o seu bem. Acirrava os universitários em manifestações públicas. Se pudesse dar a palavra de ordem para levar "os jamais vencidos estudantes unidos" de volta ao campus, de onde tinham saído em passeata, tanto melhor. Uma bomba-relógio e lá iria pelos ares um bem equipado laboratório de pesquisa em química, financiado pelo Exército ou a Marinha. Emprestei a caixa de fósforos para acender na reitoria o pavio do "sit in" dos professores. A primavera da manifestação pacífica dos mestres revolucionários deu na revista "Newsweek" -o grupo dos 22 professores pacifistas viram o sol nascer quadrado na delegacia de polícia. Pelo sim, pelo não, dei cobertura logística às bocas-de-fumo. O professor Fiedler foi abocanhado em casa pela narcóticos. Narrou os acontecimentos num livro, "Being Busted", onde constam meu codinome e presença.


Hoje sou um sexagenário de orelhas furadas e brincos dependurados que nem assentos de gangorra. O nirvana do unissexo é dolorido e custa barato, um par de brincos


Pertencíamos os 20 a uma mesma etnia revoltada, com direito à diferença entre os sexos. Bicha e sapatão eram excluídos, a não ser que tivessem a alma guardada no closet. Será por isso que naqueles anos os rapazes deixavam crescer barba e bigode? Hoje sou um sexagenário de orelhas furadas e brincos dependurados que nem assentos de gangorra. O nirvana do unissexo é dolorido e custa barato, um par de brincos. É uma hipótese, que coloco ao lado de outra. A gênese do atualíssimo brinco masculino pode ter a ver com os ciganos que nos tornamos todos depois que a viagem aérea nos fez -a palavra se repete- ciganos. Não me lembro de ter ficado mais de um mês parado numa cidade. O aeroporto ficava a caminho de casa. Entrava no avião e pulava de cidade em cidade, como no centro urbano o ônibus pula de ponto em ponto. A diferença é que o transporte público tem ponto de partida e ponto de chegada. Faz viagem de ida e de volta. Não era o meu caso. Fui macaco da rede aérea do Ocidente. Tinha à minha disposição (ou à disposição do dinheiro que me custeava) os aviões da American, da PanAm e da United. Visto dessa perspectiva, todas as mulheres retratadas -e eram oito- se pareciam a uma mulher; todos os homens -e éramos 12- a um único homem. Minha cara só se destacou quando o cartaz tomou as dimensões do quadro de avisos. Por isso levei tempo a reconhecê-la. A me reconhecer nela. Era a segunda na terceira coluna horizontal. Por minutos deixei os olhos pousarem de novo nas três palavras. De olhos fechados, saltei as caras coloridas e, impulsionado pela curiosidade malsã, corri para as legendas da parte inferior. Ali se lia que nós estávamos sendo procurados pelo FBI por sermos cidadãos estrangeiros e espiões a serviço do comunismo internacional. Infiltrados nas pequenas comunidades onde a grana corria a rodo. Éramos perdulários do mal-estar alheio. Acrescentavam que, no conflito bélico que se desenrolava na Ásia, estávamos a favor da vitória dos vietnamitas. Muito cuidado era pouco. Os espiões eram sutis, usavam codinomes. Eram solitários, nunca andavam em bandos. Eram traiçoeiros, capazes de na calada da noite perverter jovens sadios à causa do Mal. O valor da recompensa pela cabeça de cada um vinha em tipo itálico, como o título: US$ 20 mil. Multiplicados por 20, o FBI estava disposto a desembolsar, em tempos de Guerra Fria, US$ 400 mil para trancafiar as cabeças vermelhas dos sutis, solitários e traiçoeiros espiões. Meu corpo estava a leilão na praça norte-americana. Valia US$ 20 mil. Façam seu jogo, senhores! Meu codinome estava a descoberto: Santiago. Papai não iria acreditar que, um dia, o filho desgarrado abjuraria o nome de família para ter a cabeça orçada em US$ 20 mil. Meus velhos amigos brasileiros iriam pensar que, ao receber um segundo batismo na água-benta da Guerra Fria, estava virando personagem e tema para filme de Hollywood. O boxeador Kirk Douglas ou o sansão Victor Mature fariam o papel que por tantos anos tinha sido ocupado pelo nanico e enfezado Edward G. Robinson. J. Edgard Hoover, patrono dos patronos. Eu não era "baby face". Tinha algo do "latin lover". Teriam de importar um ator francês para me interpretar. Jean-Paul Belmondo, por exemplo. De alma lavada por ter nome e codinome finalmente registrados nos arquivos do FBI. Fingi que não me reconhecia mais. O cartaz perseguia a mim. Tio Sam apontava o dedo só para mim. Era o único membro destacado para a região. Não era muita coincidência ter esbarrado no cartaz a cinco quarteirões de casa? No shopping que venho freqüentando desde que me mudei para Buffalo? Meus vizinhos de prédio me reconhecerão, se já não me reconheceram. Descontrolei-me. Voltei a controlar-me. Precisava repaginar a cara do retrato. Corri de volta ao apartamento que tinha sido alugado para mim. Abri a porta e fui direto ao banheiro. Mijei. A vontade de me masturbar era muita. Não me masturbei. Cortei a barba a tesouradas. Agitei o creme de barbear Noxema. Batia uma punheta com a embalagem branca. Pressionado o botão superior, a espuma esguichou abundante na palma da mão direita. Dispersei-a pelo rosto. Raspei barba e bigode. Mais espuma esguichada e aplicada, escanhoei todo o rosto. Cara lisinha que nem bumbum de bebê. "Baby face". A imagem refletida no espelho oval não correspondia mais ao retrato. Novo disfarce. Respirei fundo e aliviado. Olhei o telefone. Pensei em discar. Alertar. Acionar os dispositivos. Tínhamos um número especial de contato. Em caso de urgência urgentíssima. Não disquei. Em resposta à indecisão, o telefone tilintou. Deixei que tocasse. Não atendi. Bem escanhoado, a pele vermelha ardia (não tinha loção pós-barba em casa). Caminhei despreocupado até o shopping para fazer o que não tinha feito. As compras de supermercado. Evitei passar pelo quadro de avisos onde colaram aquele e outros cartazes. Não tomei a escada rolante. Desci de degrau em degrau até o subsolo. Caminhei em direção à porta corrediça do supermercado. Peguei o carrinho de compras. Empurrei-o, o controle remoto enviou mensagem, a porta de blindex abriu e entrei. O supermercado estava cheio naquela hora e naquele dia. Fim de semana. Tanto melhor, passaria despercebido sem barba e bigode. Depois de ter atravessado a linha de frente das caixas registradoras, dei com a seção de cosméticos. Um grande espelho redondo -não sei se para auxiliar os guardas na vigilância dos "shop-lifters" ou se para ajudar as mulheres na escolha do produto- estava parafusado ao final do estande principal. Meio que sem querer, olhei para a imagem refletida que passava empurrando um carrinho de compras. De baixo para cima a cara avermelhada nada tinha que lembrava a cara 4x7 colorida do cartaz. A não ser o cabelo. A pele delicada do rosto, escanhoada às pressas, implorava às pequeninas veias rubras de sangue que explodissem. Duas tinham explodido no pescoço. O sangue estava coagulado. Não chegou a manchar o colarinho. Precisava mudar o codinome. Para mudá-lo, precisava antes mudar o documento clássico de identidade nos Estados Unidos -a carteira de motorista, com foto do portador. Decidi. Não iria pagar as compras com cheque da conta que tinham aberto para mim no M & T Bank. Não estava cadastrado no supermercado e o caixa iria exigir a carteira. Na acareação da foto com o modelo, como justificar o rosto escanhoado? Como me escafeder sem dar na pinta, se fosse "convidado" (como são gentis!) a passar antes pelo escritório? Tinha de agir como bom cidadão, cumpridor dos seus deveres. Não levantar suspeita. O dinheiro que trazia no bolso era suficiente para pagar as compras à vista. Não compraria o que deveria ter comprado. Compraria o que podia comprar, dadas as circunstâncias. Leite e margarina, saltei o queijo suíço fatiado. Salame, saltei o presunto e também o pastrami. Pão integral e biscoitos "cream crackers", saltei as torradas de centeio importadas da Dinamarca. Não economizei nas frutas: maçã, pêra, uva, banana e o caríssimo abacaxi. O pacote de batatas era suficiente e me permitiu evitar a cenoura, a berinjela e a abobrinha. Arroz tinha de sobra em casa. Feijão preto -"frijoles negros", como dizem os latinos de Nova York, "free holes" negros, lembrei-me do jogo de palavras- comprava em latinhas, da marca Goya.


Na calçada da direita estava um senhor dos seus 50 anos, de terno e gravata (apesar do sábado e do calor de verão); fingia que falava ao telefone; estava ali a me espreitar


Tinha estoque para um mês. Não descartei a alface e o tomate, dispensei os brócolis. Comprei óleo de cozinha, desprezei o azeite de oliva importado. Sabão em pó, tinha de comprar. O amaciante de tecido ficou na prateleira. As toalhas felpudas sofreriam. Sabonete e pasta dental saltaram para o carrinho. Olhei a seleção de uísques, pisquei, quase escorreguei em duas garrafas de vinho tinto Galo (vexame dos vexames!) e acabei me oferecendo duas caixas de cerveja em lata. Nada de Heineken. Budweiser, quem iria acreditar? E por aí fui, até chegar ao caixa com o carrinho. Atinei a tempo. Ouvi o conselho da pele esfolada do rosto: Compre um novo aparelho de barbear. Arranquei o estojo do mostruário ao lado da caixa registradora. Vinha com duas lâminas. Arranquei uma embalagem com mais seis lâminas. Mudanças de hábito no banheiro. O total das compras não chegou a US$ 40. Hoje pagaria o triplo ou cinco vezes mais. E dizem que inflação é coisa de país subdesenvolvido. Tudo coube em dois sacos de papel pardo, um deles reforçado por um segundo saco devido às caixas de cerveja. Levava os dois sacos cheios para o apartamento, quando notei ao final do estacionamento, na calçada, duas cabines telefônicas suspeitas. Na da direita, iluminada, estava um senhor dos seus 50 anos, de terno e gravata (apesar do sábado e do calor de verão). Fingia que falava ao telefone. Estava ali a me espreitar. Tive certeza pelos olhos que iam correndo para a esquerda a seguir o restante do meu percurso no estacionamento. Foi ele que ligou para meu apartamento? Se tivesse atendido? Se me abordasse agora, de supetão? Olho clínico, pra que te quero! Antes de atravessar a rua, busquei um jeito de depositar os dois sacos no chão para dar o laço no cadarço do tênis. Desde que o notei a espionar meus passos, o corpo dele na cabine tinha girado 90 graus. Praticamente dava as costas ao telefone. Telefonava num telefone sem fio. Não tive dúvidas. Atravessada a rua, percebi um outro senhor, em tudo por tudo semelhante ao anterior, embora em mangas de camisa. Estava de pé na minha esquina. No ângulo oposto ao em que estava. Coçava o saco. Exibiu-me a mala embrulhada pelo pano da calça. Tinha exibido para mim, tinha certeza. Está me chamando de 24 veado?, pensei com meus botões que, por sua vez, me sussurraram que J. Edgard Hoover estava fazendo escola. Caminhei até o prédio. Não tinha elevador. Subi dois a dois os quatro lances de escada, até o apartamento alugado. Distribuí os mantimentos pela geladeira e o armário que estava dependurado na parede de azulejos brancos. Voltei a abrir a geladeira. Retirei uma latinha de Budweiser pela abertura lateral da embalagem, rasgando o papelão na parte de cima. Puxei a argola. Pschhht. Dei uma boa bicada. Autoconfiança e naturalidade, antes de tudo. Instalaram câmaras e aparelhos de escuta na minha ausência. Arrependi-me de ter raspado barba e bigode de uma hora para a outra. Bandeira maior, impossível. De nada adiantava valer-me do kit de disfarce que tinha recebido. Dele constavam, entre muitos outros itens inúteis, barba e bigode postiços. Entregaria de vez o ouro ao bandido. Idéia melhor. Peguei no banheiro o saco de roupa suja e na cozinha a caixa de sabão em pó. Tinha moedas de 25 centavos, guardadas na gaveta do criado-mudo. Eram suficientes para as máquinas de lavar e de secar roupa. Desci até o subsolo. Uma mesa, ao lado da porta, servia de lixeira de jornais e revistas velhos. A vizinha da direita lia um número antigo da revista "New Yorker". "Howdy?", disse a ela no estilo caubói. A velhinha baixou a revista e, por detrás dos óculos escuros, me perguntou se era texano. Disse que não. Que tinha um bom amigo que morava na fronteira, em El Paso. Com uma só pedra matava também o legítimo sotaque mexicano que tinha em inglês. Nem caubói nem chicano. Mexicano. Ela me disse: "Ainda bem. Detesto caubói do asfalto. Esses "midnight cowboys'". Percebi com o canto dos olhos: nenhuma das máquinas -nem as de lavar nem as de secar- estava em funcionamento. Só a minha passou a girar as pás, depois que as moedas caíram. A velhinha continuou me olhando. Piscou para mim, a safada, e não desgrudava os olhos do volume da minha caceta. Quer, mas não te dou, pensei. Ela insistia com os olhos. Implorava. Não vem que não tem. Perguntei-lhe se podia ligar o ventilador do teto. Estava quente, o dia. Não me respondeu. Liguei assim mesmo. As pás passaram a girar. Tinha adivinhado que estava lavando roupa suja para me despistar? Tinha sido plantada ali para me vigiar? Nisso entrou o homem que estava de pé na esquina, agora vestido com o terno do que estava dentro da cabine telefônica. Não entendi o troca-troca. Entrou e sentou ao lado dela. Pegou um número velho da "Playboy". Foi direto à página que procurava. Escancarou a foto central para a velhinha ver. Ela continuava de óculos escuros. Riram da lingerie abusada da coelhinha. Sacanas os dois. Ela lhe mostrou um cartum da "New Yorker". Sentado numa poltrona, um cachorro perguntava ao casal de namorados que se esfregava no sofá se era para hoje ou amanhã. Ele não entendeu a piada. "O espetáculo", ela acrescentou. O homem não riu. "A foda?", ele retrucou, tentando adivinhar o significado latente. Eu tinha de telefonar para o Russell. De onde? Do apartamento? Uma temeridade. Da cabine telefônica? O senhor de aproximadamente 50 anos estava à minha espera. Nu, na certa, já que tinha emprestado o terno para o outro. Tinha grampeado o telefone, faltava me grampear. O círculo se fechava. Não podia continuar sentado como cachorro, à espera da roupa lavada para jogá-la na secadora. Russel tinha me recrutado no restaurante Brasserie, de Nova York, onde era "bus boy", ao lado do Neville e do Toninho. Russell veio almoçar em dias alternados. Sempre arranjava um jeito de puxar conversa comigo. O truque não passou despercebido. "A bichona tá gamada", disse o Neville ao cruzar comigo na cozinha. Russell deu a entender que tinha a minha ficha pregressa. "Surpreendente para alguém da sua idade e do seu porte", disse. Abriu o jogo. Casa, automóvel, roupa lavada, dinheiro para as despesas. Em particular, te explico o trabalho a ser feito. "Nada que você não tenha feito ou não saiba fazer", disse. Não me reuniria com ninguém em ambiente escuso. Estaria sozinho e não estaria. Seria telecomandado da Califórnia e teleprotegido por ele de Nova York. "Topa tudo?" Pedi demissão no restaurante. Passaram-se uns dias. O telefonema foi curto. Endereço em Nova Jersey, no subúrbio de Highland Park. Ao norte, New Brunswick. Ao sul, Princeton. As chaves estariam com o "super" do edifício. Tomei posse do apartamento. Mentalmente fui compondo uma longa lista de palavras com final em -ado: Apartamento mobiliado. Ar-condicionado. Telefone ligado. Supermercado ao lado. Cuidado, veado! Ri da minha lista ou da minha sorte? Fui extraído do sonho a porradas, como, antes da descoberta da anestesia, um dente era arrancado do maxilar. Acordei. O corpo estava banhado em suor e cheirava a mijo e a fezes. Não tenho mais 26 anos.

Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico, autor de, entre outros, "Stella Manhattan" e "Uma Literatura nos Trópicos" (Rocco).


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