São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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Ponto de fuga

Divulgação
"Inverno" (1932), pintura do mexicano José Clemente Orozco, na Pinacoteca Estação


A chave do abismo

Siqueiros, Rivera e Orozco formam a grande tríade dos muralistas mexicanos. Siqueiros, com a eloqüência das pinceladas largas e de figuras modeladas como monumentos, criou uma épica popular. Ela se aparenta aos retratos de camponeses sublimados nas fotografias de Juan Rulfo ou nos close-ups dos filmes dirigidos por Emilio Fernández. Rivera tende para a ilustração, traçando desenhos nítidos em grandes superfícies, ligando-os por um simbolismo obscuro: são imagens de arcanos políticos e cosmológicos, que parecem figuras de um complexo e imenso jogo de tarô.
José Clemente Orozco, que morreu em 1949, com 66 anos, é um artista da tragédia coletiva. Ele também, como os dois outros, misturou vida, política e arte. Condenou, com fúria, tiranias, religiões e injustiças sociais. Mas não confiou muito num amanhã positivo, como aquele que vem latente nos camponeses de Siqueiros, nutridos pela promissora força de trabalho, ou difuso nas complexas alusões visuais de Rivera.
A arte de Orozco, feita de paixões e violências, tende para um sombrio fatalismo apocalíptico. Ferve de ódios, com a energia de um profeta ansioso e exasperado. Insiste menos no futuro redimido por uma Revolução heróica do que nas feridas de uma História sanguinária e de um presente intolerável. Orozco recobre suas telas de pinceladas raivosas, que modelam, com energia suja e opaca, um mundo de iniqüidades sem remédio. Já se assinalaram, muitas vezes, seus vínculos evidentes com o expressionismo alemão. Orozco acrescenta a esse espírito uma ordem de grandeza, em escala poderosa, que é nova e que lhe é própria.

Áspero - Um prédio da velha estação Sorocabana, onde se instalara o Dops [Departamento de Ordem Pública e Social], foi transformado em lugar de exposições. São salas cômodas, agradáveis, bem adaptadas; não lembram em nada as violências indignas que ocorreram ali. Abrigam, atualmente, uma exposição consagrada a José Clemente Orozco. É um conjunto discreto, não muito numeroso, e se configura antes como uma amostragem. Mas as obras reunidas são de qualidade, servem de introdução à arte de Orozco e dão vontade de ver mais.
Há o mundo das prostitutas, mulheres da "Casa das Lágrimas", um inferno que remete antes a Goya que a Toulouse-Lautrec. Há a crueldade dos combates revolucionários, em desenhos concentrados, com força sintética na composição e no impacto. Há camponeses que vagam no escuro, como fantasmas. Há mãos desesperadas e enormes, que se juntam, cobrindo um rosto, e há cabeças descarnadas em meio a engrenagens. Há turistas ricos que contemplam mexicanos mirrados, há senhoras católicas que pisoteiam mulheres e crianças famélicas. Há um tirano nu, sentado num trono, quadro de impacto, estupendo, que lembra a pintura de Beckmann, mas é melhor que Beckmann. Há um quadro, sinistro entre os sinistros, silencioso e aparentemente neutro. Chama-se "Inverno". São homens enfiados em casacos pesados, andando sem se encontrarem, isolados em si mesmos, sob uma opressão invisível.

Pompier - Entre as maldades que Debussy dizia de Saint-Saëns, havia uma mais ou menos assim: "Ele não tem a menor inexperiência". A pintura de Miquel Barceló faz essa frase soar como justa. Barceló domina tudo o que faz, plena e completamente, controla seus efeitos, calcula seus empastamentos, dosa suas audácias. É arte de qualidade, como se diz, e bem feita. Várias de suas telas foram enviadas à Pinacoteca do Estado de SP pelo programa "Arte Español para el Exterior", que visa a divulgar a produção contemporânea daquele país.

Lente - Vik Muniz prossegue no seu fascínio pela fotografia concebida como reconstituição mental das imagens. A Pinacoteca expõe um conjunto de grandes retratos feitos por ele. Vik Muniz juntou rodelinhas recortadas em páginas de revistas, de tamanhos regulares, como confetes, e, com elas, formou caras, algumas muito famosas. Depois, fotografou e ampliou. Isso resulta em pontilhismo que faz vibrar a superfície, engendra um ilusionismo ótico e vem habitado por sugestivas ressonâncias culturais.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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