São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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"O Mercado das Crenças", de Eduardo Giannetti da Fonseca, rastreia como as concepções filosóficas, políticas e econômicas são formuladas, ditas e transmitidas

A gramática imprevisível das idéias

Denis Lerrer Rosenfield
especial para a Folha

O mercado das crenças é um mercado muito disputado, em que aparecem idéias dos mais diferentes formatos. Umas surgem como especificamente racionais, produto do trabalho autônomo da razão, outras são o resultado de desejos, sendo instrumentos desses, outras ainda são o efeito de paixões elaboradas pela imaginação, que dá livres asas aos seus objetos. As crenças conformam-se assim de uma multiplicidade de fontes, cada uma delas representada, em suas diferentes facetas, por filósofos e economistas. E as crenças, ao irem solidificando-se e transformando-se, dão forma àquilo que pensamos. Ou seja, crenças são uma espécie de óculos através dos quais vemos o mundo. E desses óculos não podemos prescindir, pois eles informam e formam sempre a nossa visão das coisas. Direta ou indiretamente, as idéias, consubstanciadas em crenças, se transformam em regras que orientam a nossa ação. Eduardo Giannetti retraça com cuidado e rigor as diferentes concepções filosófico-políticas e filosófico-econômicas, que permitem rastrear como as idéias são formuladas, ditas e transmitidas. E elas enunciam o que entendemos por natureza humana. Com efeito, não se pode falar de idéias sem falar da ação e dos homens em geral. Qual é o papel das idéias e crenças do ponto de vista da ação, dos seus produtos e do mundo que assim se forma? Eis uma pergunta que Eduardo Giannetti persegue com afinco ao desenhar um afresco no qual comparecem as mais diferentes correntes de análise, de Hume a Hayek, passando por Bacon, Espinosa, Adam Smith, Mill, Malthus, Marshall, Hegel e Marx, para citar apenas alguns dos autores mais tratados. Sua reconstituição é cuidadosa, apoiando-se sempre em referências textuais precisas. Essa que é a força mesma do livro se revela, às vezes, sua fraqueza, pois, em alguns momentos, a análise propriamente dita é deixada de lado, sendo substituída por longas e freqüentes citações. A erudição paga aqui o seu preço. "O Mercado das Crenças" é um livro que deve ser lido sob a ótica da historiografia das idéias filosófico-políticas e econômicas, não se centrando num autor determinado e privilegiando a tradição inglesa, embora menção seja feita, com menor força, às tradições francesa e alemã. Dentre os ausentes, destaca-se a figura de Alexandre von Humboldt, que teve influência decisiva sobre Mill e, por esse intermédio, sobre a tradição inglesa. Seus conceitos de natureza, de energia vital e de cultura poderiam perfeitamente se inscrever no contexto da discussão apresentada. Em sua reconstituição, chama particularmente atenção sua análise do pensamento de Edgeworth, quando normaliza a conduta humana via sua uniformização, propiciando, dessa maneira, a aplicação do método matemático à conduta prática humana. Sua pressuposição, que terminará marcando o pensamento econômico posterior, é a cisão que separa, "de um lado, a ação moral e, de outro, a ação econômica, definida como sendo aquela que não é afetada por noções de dever, beleza, solidariedade ou obrigação moral, à medida que está exclusivamente sujeita a cálculos de retorno das ações possíveis dentro do marco legal" (pág. 61).


A forma de conceber o valor moral tanto pode ser um impulso como uma restrição para a previsibilidade do comportamento econômico


Sua problematização é bem-sucedida ao assinalar que essa cisão opera um recorte que simplifica a ação humana, pois o "homem econômico" não pode ser separado do homem desejante ou do homem moral. Se o conceito de homem econômico é uma subespécie do homem-máquina ou do homem desejante, ele o é sob a condição de uma restrição da tese fisicalista tão bem apresentada pelo autor.

"Guerra das idéias"
O livro está ancorado nas relações entre a ação em suas acepções econômica e moral, perguntando-se pelo seu modo de estruturação, seus motivos e sua previsibilidade. Sendo o seu horizonte principal o pensamento econômico, o autor se pergunta sobre a influência de fatores constitutivos da natureza humana, como as paixões, os interesses e a razão.
E, nesse aspecto, pergunta-se pelo papel reservado à "guerra das idéias", na esteira de Hayek. Sua tese consiste em restringir o alcance dessa formulação, segundo a qual as idéias regem o mundo. Coloquemos a questão de uma outra maneira: quais idéias?
Idéias têm fontes distintas: elas podem se originar na razão, tendo uma lógica própria que se estende ao longo de várias gerações; elas podem se originar na máquina desejante ou na simples fisiologia do corpo humano; elas podem se originar nas paixões que movem os homens. O fato de que as idéias se originem nos desejos ou nas paixões não significa que elas não tenham um desenvolvimento próprio, independente dos desejos ou paixões que as geraram. O autor, nesse sentido, mostra muito bem que desejos ou paixões sempre se apresentam sob a forma de idéias.
O que é, por exemplo, um comportamento interessado? O comportamento egoísta, o comportamento apaixonado, o comportamento estético, o comportamento amoroso? A forma mesma de representação do interesse mostra a sua extrema variabilidade histórica. Uma sociedade de libertinos não entende o interesse da mesma maneira que uma sociedade baseada no consumo de bens materiais. Ambas agem interessadamente e segundo uma certa noção do prazer, porém as conseqüências econômicas dessas distintas formas de representação do interesse são muito distintas.
Da mesma maneira, a forma de conceber o valor moral tanto pode ser um impulso como uma restrição para a previsibilidade do comportamento econômico. Os conceitos de natureza humana, diferentemente veiculados, apresentam distintas formas de cultura.
Atento a essas diferenças semânticas, "O Mercado das Crenças" expõe de que modo os mal-entendidos e os equívocos fazem parte da transmissão das idéias. Coloca-se aqui a questão da oferta e da demanda, do locutor e do receptor, de sorte que o processo cultural é feito por idéias que se transformam e vêm, inclusive, a adotar um significado completamente diferente daquele tencionado pelo autor. Sua exposição da conversa entre Darwin e o jovem primeiro-ministro Pitt, em que o primeiro disse que o segundo teria melhor compreendido suas idéias (págs. 153-4), é particularmente interessante na economia geral do livro.
Compreensões e incompreensões são produtos culturais e, portanto, coletivos. Difícil sempre é para uma época compreender o que um autor de outra época quis dizer, pois toda recepção é mediada e determinada por uma "gramática", no sentido wittgensteiniano, de uma forma de vida, que altera e inclui aquilo que foi historicamente transmitido.
Talvez o livro poderia ter insistido sobre uma outra tradição inglesa de história das idéias, a de John Figgis, quando mostra como idéias formam progressivamente a opinião pública e o senso comum por panfletos, escritos menores, jornais e lutas políticas, que constituem a sua forma propriamente política de eficácia. Contudo isso nada mais é do que uma observação, pois o escopo do livro é outro, ao mostrar como a natureza humana é diferentemente dita no transcurso da história e como "somos" o resultado desses "dizeres".

Denis Lerrer Rosenfield é professor titular de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política".

O Mercado das Crenças
296 págs., R$ 39,50 de Eduardo Giannetti da Fonseca. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/11/3707-3500).


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