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A libido lúdica
"Pornografia" narra as artimanhas do desejo na Polônia ocupada durante a 2ª Guerra
NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
As personagens quase não se tocam,
não há beijos nem
amassos, não há
uma única cena de
sexo em "Pornografia", romance de 1960 do polonês Witold
Gombrowicz (1904-69).
Mas o erotismo e a lubricidade estão por toda parte. Principalmente na cabeça dos protagonistas, Witold e Fryderyk,
dois libertinos astutos e manipuladores. Na cabeça deles e na
nossa.
Como outras ficções de
Gombrowicz, essa também está saturada de humor ácido e
exagerado. Não é à toa que um
dos protagonistas, justamente
o narrador, recebeu seu próprio nome.
A face mais interessante do
pessimismo e do desencanto,
ao menos para esse autor, sempre foi a sátira e a insolência. É
verdade que, em literatura,
confundir o narrador ficcional
com o autor empírico costuma
ser bastante perigoso, ainda
mais quando aquele é da estirpe dos calhordas.
Perigoso para o autor, é claro. Para o leitor disposto a entrar no jogo, delicioso.
A ação de "Pornografia" se
passa em 1943, na Polônia ocupada pelos nazistas, mas a
guerra não é o assunto central
do romance, ela é parte da metáfora que o anima.
Metáfora que diz respeito ao
impulso bastante humano de
conquistar e dominar, pela força descomunal de Hitler ou pela esperteza miúda dos maquiavélicos Witold e Fryderyk.
Os dois se conheceram em
Varsóvia. Ambos costumavam
se encontrar com um grupo de
artistas e literatos decadentes,
que, durante as reuniões semanais, debatiam aos berros quatro temas básicos, sempre os
mesmos: Deus, arte, nação e
proletariado.
Mas a metrópole, a boemia
maltrapilha e seus clichês também não são centrais no romance. O cenário principal é o
mundo rural, distante e rústico. É no campo que os dois calhordas, para espantar o tédio,
articularão suas artimanhas libidinosas.
Witold, convidado por um
velho amigo a passar um tempo
no campo, viaja com Fryderyk
para lá. Com o mesmo
Fryderyk de quem desconfia
muito por lhe parecer ardilosamente "irrepreensível, calmo e
prudente", como quem contém
em si a escuridão. Viajam.
Uma vez lá, a atenção dos
dois logo se fixa na filha do casal de anfitriões, Henia. E no
faz-tudo da casa, Karol.
A dupla tem 16 anos e, para
os hóspedes de meia-idade,
transpira tanta juventude e
sensualidade que essa excitação chega a transtorná-los. O
plano: unir Henia e Karol. O
complicador: a menina está
prometida em casamento a outro homem, mais velho.
Mergulho na feiura
A "pornografia" do título é,
no romance, o fluxo de fantasias e artimanhas lascivas de
Witold e Fryderyk.
Pornográfico -é esse jogo sexual que os mais jovens são levados a jogar para o deleite de
adultos imorais. Para o prazer,
principalmente, do gentil e
educado Fryderyk.
Na opinião do narrador, ele é
o Mefistófeles que a todos envolve e seduz, o voyeur cujos
olhos precisam assistir à união
de Henia e Karol, pois essa é a
única possibilidade de aproximação erótica com eles.
Para os de meia-idade, a beleza está sempre do outro lado:
no jovem. Witold, num lampejo
de consciência, reconhece isso:
"Uma pena! Uma pena! Depois
dos 30 anos, o ser humano penetra na monstruosidade". Para o homem adulto, atingido
pelo cinismo e pela corrupção,
só resta mergulhar na feiura.
A juventude e a imaturidade
também são as maiores obsessões do Gombrowicz escritor.
Elas são ruminadas com
igual determinação em seu célebre "Diário" e nos outros romances. No mais conhecido deles, o irreverente e extravagante "Ferdydurke", publicado em
1937, um escritor de 30 anos
volta a ser tratado como adolescente e é levado a um excêntrico colégio, onde o processo de
infantilização continuará.
Erotização da cultura
Da mesma maneira, décadas
depois da publicação de "Pornografia", os valores da juventude e do erotismo sequestraram a velha cultura e a levaram
para a fortaleza do entretenimento, infantilizando-a.
Hoje há sensualidade juvenil
e sexo real, virtual e ficcional
para todos os gostos e valores.
Isso enfraqueceu o romance,
tornando ingênuas a obsessão
de Witold e Fryderyk e a situação de Henia e Karol?
Não, porque o maior atrativo
do romance são as manias e os
tiques do narrador, sua prosa
nervosa, apaixonada e às vezes
deselegante. Witold esbanja
entusiasmo, perplexidade, interjeições e exclamações.
O contato com os adolescentes transforma-o em um velho
adolescente problemático. Ele
já não reconhece a si mesmo,
não totalmente. Ele vai se redescobrindo e se revelando
conforme a narrativa avança.
Seu espanto com determinadas reações suas e alheias é o
nosso espanto, seu nervosismo
é o nosso nervosismo.
NELSON DE OLIVEIRA é escritor e autor de
"Ódio Sustenido" (ed. Língua Geral).
PORNOGRAFIA
Autor: Witold Gombrowicz
Tradução: Tomasz Barcinski
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/
xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 42 (208 págs.)
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