São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2009

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A libido lúdica

"Pornografia" narra as artimanhas do desejo na Polônia ocupada durante a 2ª Guerra

NELSON DE OLIVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As personagens quase não se tocam, não há beijos nem amassos, não há uma única cena de sexo em "Pornografia", romance de 1960 do polonês Witold Gombrowicz (1904-69).
Mas o erotismo e a lubricidade estão por toda parte. Principalmente na cabeça dos protagonistas, Witold e Fryderyk, dois libertinos astutos e manipuladores. Na cabeça deles e na nossa.
Como outras ficções de Gombrowicz, essa também está saturada de humor ácido e exagerado. Não é à toa que um dos protagonistas, justamente o narrador, recebeu seu próprio nome.
A face mais interessante do pessimismo e do desencanto, ao menos para esse autor, sempre foi a sátira e a insolência. É verdade que, em literatura, confundir o narrador ficcional com o autor empírico costuma ser bastante perigoso, ainda mais quando aquele é da estirpe dos calhordas.
Perigoso para o autor, é claro. Para o leitor disposto a entrar no jogo, delicioso.
A ação de "Pornografia" se passa em 1943, na Polônia ocupada pelos nazistas, mas a guerra não é o assunto central do romance, ela é parte da metáfora que o anima.
Metáfora que diz respeito ao impulso bastante humano de conquistar e dominar, pela força descomunal de Hitler ou pela esperteza miúda dos maquiavélicos Witold e Fryderyk.
Os dois se conheceram em Varsóvia. Ambos costumavam se encontrar com um grupo de artistas e literatos decadentes, que, durante as reuniões semanais, debatiam aos berros quatro temas básicos, sempre os mesmos: Deus, arte, nação e proletariado.
Mas a metrópole, a boemia maltrapilha e seus clichês também não são centrais no romance. O cenário principal é o mundo rural, distante e rústico. É no campo que os dois calhordas, para espantar o tédio, articularão suas artimanhas libidinosas.
Witold, convidado por um velho amigo a passar um tempo no campo, viaja com Fryderyk para lá. Com o mesmo Fryderyk de quem desconfia muito por lhe parecer ardilosamente "irrepreensível, calmo e prudente", como quem contém em si a escuridão. Viajam.
Uma vez lá, a atenção dos dois logo se fixa na filha do casal de anfitriões, Henia. E no faz-tudo da casa, Karol.
A dupla tem 16 anos e, para os hóspedes de meia-idade, transpira tanta juventude e sensualidade que essa excitação chega a transtorná-los. O plano: unir Henia e Karol. O complicador: a menina está prometida em casamento a outro homem, mais velho.

Mergulho na feiura
A "pornografia" do título é, no romance, o fluxo de fantasias e artimanhas lascivas de Witold e Fryderyk.
Pornográfico -é esse jogo sexual que os mais jovens são levados a jogar para o deleite de adultos imorais. Para o prazer, principalmente, do gentil e educado Fryderyk.
Na opinião do narrador, ele é o Mefistófeles que a todos envolve e seduz, o voyeur cujos olhos precisam assistir à união de Henia e Karol, pois essa é a única possibilidade de aproximação erótica com eles.
Para os de meia-idade, a beleza está sempre do outro lado: no jovem. Witold, num lampejo de consciência, reconhece isso: "Uma pena! Uma pena! Depois dos 30 anos, o ser humano penetra na monstruosidade". Para o homem adulto, atingido pelo cinismo e pela corrupção, só resta mergulhar na feiura.
A juventude e a imaturidade também são as maiores obsessões do Gombrowicz escritor.
Elas são ruminadas com igual determinação em seu célebre "Diário" e nos outros romances. No mais conhecido deles, o irreverente e extravagante "Ferdydurke", publicado em 1937, um escritor de 30 anos volta a ser tratado como adolescente e é levado a um excêntrico colégio, onde o processo de infantilização continuará.

Erotização da cultura
Da mesma maneira, décadas depois da publicação de "Pornografia", os valores da juventude e do erotismo sequestraram a velha cultura e a levaram para a fortaleza do entretenimento, infantilizando-a.
Hoje há sensualidade juvenil e sexo real, virtual e ficcional para todos os gostos e valores. Isso enfraqueceu o romance, tornando ingênuas a obsessão de Witold e Fryderyk e a situação de Henia e Karol?
Não, porque o maior atrativo do romance são as manias e os tiques do narrador, sua prosa nervosa, apaixonada e às vezes deselegante. Witold esbanja entusiasmo, perplexidade, interjeições e exclamações.
O contato com os adolescentes transforma-o em um velho adolescente problemático. Ele já não reconhece a si mesmo, não totalmente. Ele vai se redescobrindo e se revelando conforme a narrativa avança.
Seu espanto com determinadas reações suas e alheias é o nosso espanto, seu nervosismo é o nosso nervosismo.

NELSON DE OLIVEIRA é escritor e autor de "Ódio Sustenido" (ed. Língua Geral).


PORNOGRAFIA
Autor: Witold Gombrowicz
Tradução: Tomasz Barcinski
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 42 (208 págs.)




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