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"Diário de Navegação de Teotônio José Juzarte" narra o dia-a-dia de uma expedição fluvial pelo interior do Brasil no século 18
Um épico da colonização
Jean Marcel Carvalho França
especial para a Folha
A conquista do sertão, durante os séculos 17 e 18,
é sem dúvida um dos episódios mais importantes e curiosos da história pátria. Já Capistrano
de Abreu, em 1907, no seu conhecido "Capítulos de História Colonial", destacava o quão decisiva para a constituição do sentimento de brasilidade e para a
dilatação dos contornos do território nacional tinha sido a épica incursão dos brasileiros pelo selvagem e desconhecido interior do Brasil, incursão que, na maior
parte das vezes, custou a vida aos pioneiros. Infelizmente não são muitos os registros que esses desbravadores
deixaram das suas andanças pelo país e, entre os poucos
existentes, a maioria necessita urgentemente de uma
reedição, pois são hoje praticamente inacessíveis ao público, mesmo ao público universitário.
Comitiva rio acima
Merece, assim, uma atenção
toda especial a publicação do "Diário de Navegação de
Teotônio José Juzarte", livro organizado por Jonas Soares de Souza e Miyoko Makino, que a Edusp acaba de
lançar dentro da excelente coleção "Uspiana Brasil 500
anos". O "Diário" de Juzarte, um sargento-mor português a serviço da coroa,
narra o dia-a-dia de uma monção, isto é,
de uma das muitas expedições fluviais
que, nos séculos 18 e 19, aproveitando o
período das cheias, subiam o rio Tietê e
exploravam os afluentes do Paraná e do
Paraguai.
A "monção" que descreve o lusitano
no seu "Diário de Navegação" partiu de
Araritaguaba (Porto Feliz) em abril de
1769 com destino à longínqua e miserável povoação de
Iguatemi, situada na margem esquerda do rio homônimo, nas proximidades do Paraguai. O sargento-mor e
comandante da expedição, seguindo as ordens do governador da Província de São Paulo, dom Luís Antônio
Botelho de Sousa e Mourão, conduzia então uma comitiva de 36 canoas, que levava para o pequeno estabelecimento 700 colonos e cerca de 80 soldados pagos destinados a "preencher os claros deixados pelo impaludismo e outras enfermidades devastadoras".
A viagem pelos rios Tietê, Paraná e Iguatemi durou
cerca de três meses, e Juzarte permaneceu aproximadamente mais 24 meses no longínquo estabelecimento. O
relato dá conta de todo esse período, dos tumultuados
preparativos da monção ao retorno de seu líder a Porto
Feliz (1771), detendo-se demoradamente na viagem de
ida, que é descrita dia a dia.
Juzarte não é um homem de grande cultura nem tem
destacados dotes literários, mas seu diário, escrito numa linguagem seca e objetiva, constitui, ao lado do "Divertimento Admirável" (1783), de Manuel Cardoso de
Abreu, o mais precioso e rico documento disponível sobre a navegação fluvial no Brasil Colônia.
Agruras e tormentos
É impossível descrever,
mesmo que de maneira sucinta, as inúmeras informações disponíveis nesse testemunho, informações sobre os modos e técnicas de
navegação fluvial do período, sem dúvida, mas também sobre a alimentação e as
vestimentas da época, sobre os rios percorridos pelas 36 canoas que Juzarte conduzia, sobre as relações que os povoadores mantinham com os índios no interior
do país, sobre a tensa situação na fronteira com a América espanhola, sobre a povoação de Iguatemi e, especialmente, sobre as muitas agruras enfrentadas por aqueles que, voluntariamente ou obrigados, se metiam a desbravar os
sertões.
Tais agruras, a propósito, talvez constituam o aspecto
mais tocante do relato para um leitor contemporâneo.
A descrição que deixou o sargento-mor dos tremendos
esforços físicos exigidos pela viagem, da fome constante
que atormentava os monçoeiros, das inúmeras doenças
que dizimavam os membros da comitiva, do tormento
causado pelos milhares de insetos das matas tropicais,
do medo sempre presente de animais ferozes ou de índios, enfim, a descrição das incontáveis dificuldades
que enfrentavam os participantes de uma monção causa forte impacto no leitor e dá-lhe uma idéia bastante
nítida do quão duro, dispendioso em vidas humanas e,
de certo modo, heróico foi o processo de conquista do
interior da América portuguesa.
É indispensável dizer ainda que o "Diário", que já havia sido publicado nos "Anais do Museu Paulista"
(1922), na "Revista do Arquivo Histórico Municipal" e
na coletânea "Relatos Monçoeiros" (1953), sai pela primeira vez junto com o "Plano em Borrão", que Juzarte
havia preparado para acompanhar o texto, plano que
contém mapas detalhados de todos os três rios percorridos pela monção.
A presente edição traz também uma breve mas instrutiva introdução assinada pelos organizadores, uma
versão fac-similar do manuscrito, algumas notas bibliográficas e uma ótima série de reproduções de pinturas,
quase todas oitocentistas, que tem como tema as monções e o rio Tietê. Sem nenhum exagero, trata-se de um
livro indispensável para os interessados na história do
Brasil Colônia e recomendável para todos os que apreciam uma boa aventura histórica.
Jean Marcel Carvalho França é doutor em literatura comparada e
autor de, entre outros, "Visões do Rio de Janeiro Colonial" e "Outras
Visões do Rio de Janeiro Colonial", ambos pela ed. José Olympio.
Diário de Navegação de
Teotônio José Juzarte
468 págs., R$ 70,00
Jonas Soares de Souza e Miyoko
Makino (orgs.). Edusp (av. Prof.
Luciano Gualberto, 374, travessa J, 6º andar, CEP 05508-900,
Cidade Universitária, SP, tel. 0/
xx/11/ 3818-4006).
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