São Paulo, domingo, 08 de abril de 2001

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Obra estuda as encenações que ocorriam em alto-mar entre os séculos 15 e 18

Riso e drama nas caravelas

O convés era mudado em palco: lonas de linho, pintadas "à maneira de água", velas de brocado, batéis cheios de tochas e velas contracenavam com cavaleiros em ricas armas, responsáveis pela simulação de alegres combates

Mary del Priore
especial para a Folha

Boca fechada! Olhos bem abertos! Silêncio!": as palavras de Próspero, ao evocar os prodígios da mascarada em "A Tempestade", bem servem ao leitor desse "Teatro a Bordo das Naus Portuguesas", de Carlos Francisco Moura, em cuidadosa co-edição do Liceu Literário Português e Instituto Luso-Brasileiro de História. Inscrito num dos mais valorizados domínios da historiografia -o das festas e sociabilidades-, o livro estuda o teatro encenado no convés de naus e caravelas entre os séculos 15 e 18. Um teatro, diga-se, sobre as ondas. Novidade? Não: o uso da água como suporte para toda sorte de representações existe desde a Antiguidade clássica. Anfiteatros eram, então, inundados, para permitir batalhas navais -as chamadas "naumachias"-, responsáveis por espetáculos que envolviam carros triunfais, cortejos de personagens míticos e centenas de figurantes fantasiados de cisnes, sereias, serpentes marinhas e quejandos. Na Itália e na França do Renascimento transformavam-se em palco rios, lagos, canais ou qualquer espelho d'água capaz de suportar carros alegóricos flutuantes, dirigidos e animados por hábeis atores. A cidade de Baiona, por exemplo, ofereceu a Catarina de Médicis um desses espetáculos em que a rainha viu desfilar o carro de Netuno, tritões cavalgando uma tartaruga marinha, Arion sobre um golfinho e dezenas de sereias que lutavam para ficar à tona em meio a um espalhafatoso combate de baleias. Em 1589, galeras cristãs deram assalto a uma fortaleza turca no adro interno do Palazzo Pitti. Convenhamos: o espetáculo não era pouco! No caso do livro de Moura, o espelho d'água é sem fim: são os mares cruzados pelos portugueses, em cujas naus não faltavam criatividade e luxo às encenações teatrais. O convés era mudado em palco, no qual lonas de linho, pintadas "à maneira de água", velas de brocado, batéis cheios de tochas e velas contracenavam com cavaleiros em ricas armas, responsáveis pela simulação de alegres combates. Pilotos, grumetes e mareantes participavam do evento, vestidos com sedas e tecidos finos. Com espetáculos jocosos, cômicos e "graciosos", divertiam uma tripulação que oscilava entre 500 e 800 pessoas.

Prêmios e cardápio festivo
Histórias extraídas da "Távola Redonda" e da "Demanda do Santo Graal" inspiravam matéria para mímicas e atuações que lhes enchiam os olhos e a imaginação. A sonoplastia também impressionava: artilharia, trombetas, pandeiros e charamelas rasgavam os ares. Os vários pretextos para festejar eram extraídos dos calendários religioso e profano. Tanto se representava para aclamar as 11 Mil Virgens ou o Natal quanto o aniversário ou o casamento d"El Rei. Em determinadas circunstâncias, levantavam-se altares, emprestavam-se retábulos aos passageiros, rezavam-se missas solenes, seguidas de animada cantoria e danças. Tal animação faria, hoje, inveja a um cruzeiro de luxo: prêmios eram oferecidos aos que decifrassem enigmas e emblemas usados na decoração, e a travessia do Equador ensejava um cardápio festivo à base de presunto, doce de pêra e caramelos.
A genial pesquisa de Moura sobrepuja, em muito, seu texto. Severos, certos especialistas poderão cobrar um destino mais interessante às dezenas de informações que, com tanto cuidado, compilou. Falta-lhes narrativa, problematização, intriga. O autor descreve os documentos, mas não os interroga. Dá a conhecer fatos, administra provas, mas termina por amarrá-las num esquema explicativo cuja simplicidade contrasta com a riqueza das fontes. Não se pergunta em que medida tais comemorações teatrais eram o mecanismo de afirmação de uma determinada ordem moral e social, de certa visão global do homem e de suas relações com o mundo ou em que colaboraram para submeter culturalmente grupos sociais. Afinal, é sabido que, nos tempos modernos, minorias dominantes organizavam "festas-espetáculo" para impedir a "festa-participação" da imensa maioria. Mas, para quem gosta do assunto, nada disso é muito grave. Afinal, "navegar era preciso" e, com teatro a bordo, melhor ainda.


Mary del Priore é professora de história na USP, autora de "Ao Sul do Corpo" (ed. José Olympio) e organizadora de "História das Mulheres no Brasil" (ed. Contexto).

Teatro a Bordo de Naus Portuguesas
158 págs., R$ 20,00 de Carlos Francisco Moura. Ed. Nórdica (r. Lins de Vasconcelos, 272, CEP 20710-130, RJ, tel. 0/ xx/21/501-6630).


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