São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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Esperança à venda

Campanha pretende valorizar diversidade estética, mas reafirma o binômio "feminilidade-juventude"

VIRGINIA POSTREL

Os fabricantes de cosméticos sempre venderam esperança -cremes e poções que prometem juventude, beleza, sex appeal e até amor para as mulheres que os utilizarem.
Nos últimos anos, os marqueteiros da Dove acrescentaram algumas atrações aperfeiçoadas. Agora prometem auto-estima e transformação cultural. A "Campanha pela Real Beleza", segundo um comunicado de imprensa da empresa, é "uma iniciativa global destinada a servir de ponto de partida para uma mudança social e a atuar como catalisador para ampliar a discussão e a definição de beleza".
Juntamente com seus cremes para firmar a pele, autobronzeadores e condicionadores de cabelo, a empresa apregoa as idéias, muito apreciadas pelo público, segundo as quais a beleza é uma invenção da mídia, que identificar formas plurais de beleza é o mesmo que declarar que toda mulher é bela e que auto-estima significa ignorar as imperfeições.
Ela conquistou aclamação geral em junho de 2005, quando lançou seu creme para firmar a pele com cartazes de "mulheres reais", atraentes, mas de vários tamanhos, em roupas íntimas.
Ela anunciou seus produtos para cabelos mostrando centenas de mulheres com perucas louras idênticas -descritas como "o tipo de cabelo encontrado nas revistas"- que arrancam as melenas artificiais e comemoram seu cabelo real (perfeitamente penteado, tingido e condicionado, aliás).
O público e a imprensa entenderam e a empresa de cosméticos ganhou atenção.
[A apresentadora de televisão] Oprah deu cobertura à história, assim como o programa "Today".
Segundo a revista "Advertising Age", a campanha "mina a proposta básica de décadas de publicidade de produtos de beleza dizendo às mulheres -e às meninas- que elas são lindas do jeito que são".
Há poucos meses, a empresa ampliou sua construção de imagem com um bem-sucedido trabalho de marketing viral: um vídeo on-line de 75 segundos chamado "Evolution" [Evolução].

Reality show
O vídeo é um close-up de uma mulher aparentemente comum, filmada sob iluminação crua que destaca seu tom de pele irregular, os olhos ligeiramente caídos e o cabelo opaco, sem graça.
Em 20 segundos de vídeo, maquiadores e cabeleireiros a transformam numa beleza de olhos grandes, longos cabelos, rosto esculpido e pele perfeita.
Mas isso é só o começo.
Depois vem a transformação digital, quando um designer trabalha com o mouse sobre o rosto da modelo, dando-lhe um pescoço mais longo e esguio, uma testa ligeiramente mais estreita, lábios mais cheios e mais espaço entre as sobrancelhas e os olhos.
A imagem aperfeiçoada sobe até preencher um outdoor que anuncia uma linha de maquiagem fictícia. A imagem escurece até o preto, com a mensagem: "Não admira que nossa percepção de beleza seja distorcida".
O vídeo atraiu 6,5 milhões [até 4/4] de visitantes no YouTube e também aparece no site (www.campaignforrealbeauty.com) da empresa, que conclui: "Toda garota merece sentir-se bonita do jeito que é".
Toda garota certamente quer isso, o que explica a popularidade da campanha. Só há um problema: a beleza existe, e é distribuída de forma desigual. Nossos olhos e cérebros constantemente apreciam mais certas formas humanas do que outras.
Até os bebês, quando lhes mostram fotos de pessoas desconhecidas, olham mais para os rostos que os adultos consideram mais bonitos.
Se você prefere Nicole Kidman a Angelina Jolie, Jennifer Lopez a Kate Moss, pode ser uma questão de gosto, mas é raro alguém que declare Holly Hunter ou Whoopi Goldberg (embora não sejam feias) mais bonitas que qualquer dessas mulheres.
Por motivos semelhantes, ainda nos emocionamos diante do antigo busto de Nefertiti, da Vênus de Milo e dos rostos refinados nas pinturas de Leonardo e Botticelli.
O estilo de atuação de Greta Garbo parece duro hoje, mas seu rosto transcende o tempo. Reconhecemos a beleza quando a vemos, e nossas reações são notavelmente coesas.
A beleza não é uma mera construção social, e nem toda garota é bonita do jeito que é.
Veja-se o vídeo "Evolução". A transformação digital é fascinante porque, magicamente, torna uma bela mulher ainda mais interessante.
A nova geometria de seu rosto provoca uma reação imediata, visceral -e o impacto narrativo do vídeo depende dessa reação previsível.
O vídeo passa sua mensagem sobre o artifício somente porque a maioria das pessoas acha o rosto manipulado mais bonito que o natural.

Pressão evolucionária
No livro "Survival of the Prettiest - The Science of Beauty" [Sobrevivência das Mais Bonitas - A Ciência da Beleza], Nancy Etcoff, psicóloga da Escola de Medicina de Harvard, relata experiências em que as pessoas dão notas a rostos e "criam" digitalmente gerações cada vez mais atraentes.
O resultado nos rostos das mulheres parece um pouco o produto acabado no vídeo da empresa: "Mandíbulas mais finas, olhos maiores em relação ao tamanho dos rostos e distâncias menores entre a boca e o queixo" em um caso; em outro, "lábios mais cheios, mandíbula menos robusta e nariz e queixo menores que os da média da população".
Essas características, escreve Etcoff, "exageram o modo como os rostos das mulheres adultas diferem dos rostos dos homens adultos. Elas também exageram a juventude do rosto".
Mais que juventude, os lábios cheios e queixos pequenos das mulheres bonitas refletem níveis relativamente altos de hormônios femininos e níveis baixos de hormônios masculinos -indicando maior fertilidade-, segundo o psicólogo Victor Johnston, que fez alguns desses experimentos.
De modo mais geral, os psicólogos evolucionistas sugerem que as características que consideramos belas -como indicadores de boa saúde, como pele lisa e simetria- foram recompensadas ao longo de inúmeras gerações de competição por parceiros. As mesmas pressões evolucionárias, sugere a pesquisa, programaram biologicamente as mentes humanas para perceber essas características como belas.
"Alguns cientistas acreditam que nossos detectores de beleza são na verdade detectores da combinação de juventude com feminilidade", escreve Etcoff. O fato de a beleza que detectamos ser decorrente da natureza ou de artifício não modifica esse reflexo visceral.

Corretivo
Talvez de modo surpreendente, a própria Etcoff aconselhou a empresa em várias pesquisas e a ajudou a criar workshops para garotas.
A empresa de cosméticos salienta a participação dela (e seu doutorado e sua afiliação a Harvard) no material publicitário. Etcoff vê a campanha como um corretivo útil.
As imagens na mídia, disse por e-mail, são muitas vezes tão rarefeitas que "mudam nossas idéias sobre a aparência das pessoas e a aparência de normal. (...) Nossos cérebros não evoluíram com a mídia, e muitas pessoas vêem mais imagens de mulheres na mídia do que mulheres reais. O efeito da comparação faz até a mais bela não-modelo parecer menos atraente; ele produz um novo "normal'".
A empresa de cosméticos começou sua campanha identificando diversas manifestações dos padrões universais de beleza. As "mulheres reais" mostradas nos cartazes podiam não parecer supermodelos, mas eram todas jovens, de rostos simétricos, traços femininos, ótima pele, dentes brancos e curvas de ampulheta.
Até as mais roliças tinham estômagos relativamente chatos e cinturas claramente definidas.
Essas mulheres bonitas não eram uma amostragem aleatória da população. A empresa diversificou o retrato da beleza, mas sem abandonar o conceito.
Mas a campanha não parou aí. Essa empresa está se definindo como a marca que ama mulheres comuns -e mulheres comuns, por definição, não são extraordinariamente belas.

Conceito ambíguo
A empresa não pode se arriscar a uma definição precisa de "beleza real" que poderia excluir a metade da população -não é uma boa estratégia para vender produtos de consumo em massa. Então a campanha deixa a beleza real ambígua, deixando que as espectadoras preencham o conceito com seus desejos.
Outro de seus anúncios, enfocando a insegurança das garotas sobre seu visual, conclui: "Toda garota merece sentir-se bem consigo mesma e ver como é realmente bonita".
Aqui a empresa incentiva o mito de que a beleza física é um conceito falso e, ao mesmo tempo, equipara falsamente a beleza a bondade e auto-estima.
Se você não vê perfeição no espelho, ela sugere, você foi enganada pela mídia e sofre de baixa auto-estima.
Mas as mulheres adultas têm uma visão mais realista. "Somente 2% das mulheres se descrevem como bonitas", anuncia o título do comunicado de imprensa da empresa.
Ao contrário do que a companhia quer que as leitoras acreditem, porém, essa estatística não representa necessariamente uma crise de confiança; ela pode simplesmente refletir o poder da palavra "bonita".

A beleza é injusta
As pesquisas não perguntam às mulheres se elas se consideram feias, por isso é difícil diferenciar entre saber que você tem defeitos, acreditar que você é comum de uma maneira aceitável, mas não marcante, e sentir-se desesperadamente feia.
Em outra pesquisa da empresa, 80% das mulheres americanas entrevistadas disseram que estão pelo menos um pouco satisfeitas com seu rosto, enquanto 76% disseram estar pelo menos um pouco satisfeitas com seu corpo. Mas insatisfação não é a mesma coisa que infelicidade ou insegurança.
Como o resto da loteria genética, a beleza é injusta. Todo mundo fica aquém da perfeição, mas algumas pessoas têm mais sorte que outras. A verdadeira confiança exige autoconhecimento, que inclui reconhecer seus pontos fracos assim como os fortes.
Em uma recente conferência sobre manipulações biológicas, ouvi uma filósofa declarar durante o almoço que jamais faria cirurgia plástica nem pintaria o cabelo. Mas ela confessou que pagaria qualquer coisa para ter mais 15 pontos de QI.
Essa mulher não é insegura sobre sua inteligência, que está bem acima da média; ela apenas gostaria de ser mais inteligente.
Pedir às mulheres que digam que são bonitas é como pedir a intelectuais que digam que são gênios. A maioria sabe que simplesmente não se qualifica.

Este texto foi publicado na "Atlantic Monthly". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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