São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Sociedade

Na pior em Paris

O cineasta de "Shoah" diz que a capital francesa se tornou hoje uma "cidade policial" e "inimiga de ciclistas" e pedestres

CLAUDE LANZMANN

Paris -e a esquerda contribuiu para isso tanto quanto a direita- é hoje uma cidade policial, a mais cheia de guardas das capitais européias.
Impossível percorrer mais de 500 metros sem encontrar um carro de polícia, com a sirene berrando ou não, um furgão mais volumoso, agentes de patins, particularmente agressivos, ciclistas azuis que atiram suas bicicletas contra as presas, como os cavaleiros da velha polícia montada, grupos a pé de quatro ou cinco, cinco ou seis, emboscados em locais onde a "falta" não pode deixar de ser cometida, cercando o culpado como se fosse um grande criminoso.

Centro fechado
Os obcecados pela ordem e a norma que governam a cidade anunciam seus planos extremos: por exemplo, proibir as vias marginais aos carros ou fechar o centro de Paris. Diante da indignação, eles dizem que recuam.
Mas fingem, eles são matreiros, obstinados, e conseguem atingir seus fins. As declarações do faceiro Denis Baupin [secretário de Transportes da capital] são edificantes: esse cavaleiro branco desafia cada um de nós num combate singular. Ele tem todo o poder, ele ri, está tranqüilo.
O sonho está avançando: se eu saio de minha casa no domingo, não posso virar à esquerda porque é contramão; e à direita, a 50 metros, a rua está bloqueada pois nesse dia só os ciclistas podem usá-la. Eu nunca fui avisado nem consultado; esse decreto divino me obriga a ziguezagues aberrantes para ir aonde preciso.
As bicicletas, falemos delas: eu sou ciclista e pedalo por Paris quando não chove e quando não faz muito frio.
Os ônibus raspam em minha perna a toda velocidade em nosso corredor comum, e o crescimento exponencial de motos e motonetas, certamente resultado da nova política, forma uma espécie de ninho de vespas barulhentas e perigosas em torno do infeliz velocipedista.
Mas Paris não é só inimiga dos ciclistas, também o é dos comerciantes do boulevard Magenta e de dez outras artérias, condenadas a sobreviver ou abrir falência.
Isso porque num belo dia as escavadeiras se instalam durante meses a fim de reduzir ainda mais as vias de circulação, alargar as calçadas, marcar com longas saliências de sinistro concreto cinza bulevares, avenidas e até ruas estreitas, indicando a fronteira entre o espaço comum -o dos ônibus- e o espaço privado -o dos infelizes carros que sufocam na trombose.
Se você não morrer de trombose, corre o risco de morte violenta ou ferimentos graves.

Tabuleiros de xadrez
Rode pelo boulevard Saint-Germain em direção ao Saint-Michel e tente virar à direita nas ruas de Seine ou de l"Odéon, por exemplo, e será exposto ao pior: protegidos pela linha cinzenta que delimita o corredor da liberdade, os táxis avançam com o sinal verde e o impedem de passar.
Mas, se você tentar fazer isso porque não tem outra opção, tem toda probabilidade de ser atingido em grande velocidade pelo lado direito do seu veículo.
Os pedestres também não estão a salvo do perigo. Eu mesmo me perdi a pé nos tabuleiros de xadrez pintados no asfalto, essas amarelinhas mortas que são a última mania do faceiro ecologista, sem saber onde ou quando passar, de quem, do quê e de onde me proteger. E não sou o único.
Os faróis de trânsito são cada vez mais complicados, cada vez menos sincronizados, cada vez mais lentos. Paris era fluida, agora temos de nos equilibrar nas paradas de pedestres.

Pedestre domesticado
Pois o rei, o ideal de nossos tecnocratas, de todos os inventores de festividades para o bom povo, "panis et circenses" modernos (Paris-Plage, hordas de patinadores cercados por sirenes da polícia etc.), não é o pedestre.
Mas, sim, o pedestre domesticado, espécie em via de criação, pois começa a punir o pedestre selvagem, aquele que se certificou somente de que podia passar sem obstáculos e sem incomodar ninguém, olhando à direita e à esquerda como aprendeu com seus pais.
A repressão ganha: policiais interpelam grosseiramente o pedestre contraventor, ameaçando-o de multa, e creio que em breve haverá uma carteira com pontos para ciclistas e outras, de cor diferente, para pedestres.
Aqueles que, tendo perdido todos os pontos da carteira de motorista (o que é muito fácil, pois os policiais se tornaram acirrados, insistentes, minuciosos), andam de bicicleta e não param na subida, pois viram o caminho livre e sabem que é íngreme, serão penalizados da mesma maneira que seus irmãos de quatro rodas e um dia perderão seus pontos de ciclistas e talvez seus pontos de pedestres.
Serão então condenados à imobilidade, ideal ainda disfarçado, mas bem real, dos cérebros faceiros a quem foi conferido o direito exorbitante de fazer a felicidade das pessoas contra elas mesmas.
Paris brilha, Paris morre, que ninguém mais se mova!

CLAUDE LANZMANN é cineasta e diretor da revista Les Temps Modernes. Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: + Cultura: Um inventor no exílio
Próximo Texto: Esperança à venda
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.