São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ Livros

Na rapa do tacho

EVALDO CABRAL DE MELLO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nem por serem obras menores, quando comparadas a "Casa-Grande e Senzala", "Sobrados e Mucambos" ou "Ordem e Progresso" [todos lançados pela Global], "Açúcar" e "Olinda", ambas de 1939 e agora reeditadas, merecem a esnobação com que foram recebidas pelos condes de Abranhos da cultura brasileira da época.
Com que, então, em vez de carpir os males da mestiçagem ou abordar em linguagem inacessível as questões eminentemente nobres do seu ofício, como a origem e o funcionamento das nossas instituições políticas e sociais (de preferência sob viés jurídico), esse sociólogo nortista dava-se ao desplante de comprometer suas atividades aos olhos do país, publicando um livro de receitas de bolos e doces pernambucanos ou orientando eventuais turistas (quase inexistentes então) ou simplesmente conterrâneos ignorantes (ao contrário, inúmeros) sobre o que havia para se ver no velho burgo duartino? O autor não parecia sociologicamente correto; já quando da publicação de "Casa-Grande e Senzala", um dos chamados luminares da inteligência brasileira taxara-o de livro pornográfico.

Defesa antecipada
Gilberto, a quem mesmo no fim da vida nunca faltaria o gosto pela provocação intelectual (como no elogio do analfabetismo), previra os ataques, tratando de defender-se por antecipação não só com a saborosa epígrafe retirada de uma "Arte da Cozinha" escrita em Portugal no século 17 (que erro tipográfico data de 1962, e não de 1692), a qual alertava maliciosamente prestar-se o livro "aos mordazes pela matéria e pelo estilo".
Se ele, porém, se tivesse deixado aprisionar pelo sociologicamente correto, provavelmente já não seria lido hoje em dia.
"Açúcar" e "Olinda" são igualmente obras originalíssimas, como será anos depois "Assombrações do Recife Velho" [Topbooks], que ele definiu como história sobrenatural.
"Olinda" seguia o gênero que anos antes ele mesmo inaugurara com "Recife", o primeiro dos seus guias práticos, históricos e sentimentais.
Há muito a dizer em favor das obras menores, desde que, evidentemente, escritas pelos grandes autores. Na França, tentou-se há anos correlacionar respiração e estilo: os intermináveis períodos de Proust resultariam da asma que o afligia, embora o bom senso parecesse indicar, pelo contrário, a associação entre a doença e a concisão da escrita.
A conhecida expressão "obra de fôlego" leva a suspeitar que a correlação também poderia ser feita entre a respiração e o escopo da obra.
Se uma espécie de apnéia ronda implacavelmente a redação da obra-prima, nada mais natural que as obras menores lhe sirvam de alívio.
Apenas concluída "Casa-Grande e Senzala", Gilberto desafogou-se escrevendo o guia do Recife ou "O Escravo nos Anúncios de Jornais Brasileiros do Século 19", que constituiu a primeira utilização sistemática em história social daquele gênero de texto até então desprezado.
Após "Sobrados e Mucambos" e "Nordeste" [Global], surgem "Açúcar" e "Olinda".
Mas não é apenas a singularidade de "Açúcar" e de "Olinda" que os recomenda ao leitor.
A introdução de "Açúcar" e o texto inteiro de "Olinda" são excelentes amostras do ensaísmo coloquial e imagístico de Gilberto, cujo estilo curiosamente alcançava por vezes seus pontos altos ao versar precisamente o que os sisudos estimariam serem temas boêmios ou frívolos.
Às sucessivas edições de ambos, o autor, muito à sua maneira, adicionou prefácios, o que lhe oferecia sobretudo a ocasião de dialogar, na solidão suburbana de Apipucos, com os críticos que haviam feito reparos a este ou aquele livro seu.
Aliás, em 1980 Gilberto eliminou de "Olinda" as referências circunstanciais que ou se haviam tornado inatuais ou eram "passíveis de ser substituídas por indagações orais", com o que, reconheceu, o guia perdia sua natureza prática, o que nesta edição de agora, e com o zelo de sempre pelo velho amigo, Edson Néry da Fonseca buscou remediar.

Receitas de bolo
Na verdade, a eliminação não se justificava, pois àquela altura e, para a maior glória de qualquer livro, o guia de Olinda e também o do Recife haviam-se transformado em fontes históricas, no único repositório de informações valiosas que o autor ouvira, ainda jovem, a velhos moradores de uma e de outra cidade.
Quanto às receitas de bolos e doces que constituem o essencial de "Açúcar", cozinheiras houve que impugnaram várias delas, apontando incorreção nas medidas deste ou daquele condimento e até no uso deles.
É provável que boa parte do problema resultasse da prática, que Gilberto definiu como "maçônica", pela qual tais receitas eram secretamente transmitidas de geração em geração de mulheres, de modo a preservar o casticismo do manjar.
Ele observava, por exemplo, o "fato curioso" de as receitas do bolo Souza Leão serem a tal ponto contraditórias que o levavam a "duvidar da existência de um bolo Souza Leão ortodoxo", lembrando afirmação de Anatole France para quem "em história, a dúvida começa com a abundância dos documentos".
É provável que na segunda metade do século 19, época de maior fastígio provincial dos Souza Leões, tenha existido um bolo original, embora já não seja possível identificá-lo.
Ocorreu contudo que, timbrando as senhoras da família em fornecer receitas inexatas a quem não pertencesse à tribo, verificou-se a proliferação das inautênticas. O exclusivismo clânico resultaria, aliás, inútil, pois recordo haver há alguns anos visto o bolo Souza Leão publicamente incluído em cardápios de restaurantes recifenses.
Se me pedissem o exemplo mais poderoso do estilo de Gilberto, não hesitaria em apontar os parágrafos iniciais do primeiro capítulo de "Nordeste" e o primeiro parágrafo do primeiro capítulo de "Ordem e Progresso", embora este já escrito nos anos 1950, quando a usura da sua "manière" já a transformava na caricatura dela mesma.
Ainda a respeito de "Nordeste", trata-se, ao que eu saiba, e agradeceria retificação se for o caso, do primeiro estudo brasileiro a definir-se formalmente como ecológico e a descrever a ruptura dos equilíbrios naturais de uma região do país em decorrência do tipo de economia que prevalecera no decurso da sua colonização, embora os euclidianos (seita fanática) possam tentar reivindicar a primazia de "Os Sertões".
Nessa hipótese, teriam de fazê-lo sobre a "escola de Chicago", não a dos economistas, tão na moda, mas a dos sociólogos, hoje esquecida e que tanto influenciou Gilberto.
Aliás, a leitura de "Nordeste" parece particularmente oportuna no momento em que se entrevê o surgimento de outro daqueles ciclos de que tanto falava nossa história econômica, o "ciclo do etanol".
Seria irônico (mas a história possui enorme componente de ironia) ver ressuscitar em escala quase nacional e sob novas formas o passado canavieiro tão repudiado pelos nossos ideólogos do século 20.


OLINDA
Autor:Gilberto Freyre
Editora: Global (tel. 0/xx/11/3277-7999)
Quanto: R$ 69 (200 págs.)

AÇÚCAR
Autor: Gilberto Freyre
Editora: Global
Quanto: R$ 49 (272 págs.)


EVALDO CABRAL DE MELLO é historiador, autor de, entre outros, "Nassau - Governador do Brasil Holandês" (Companhia das Letras) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks).


Texto Anterior: O elo perdido
Próximo Texto: Pretérito e futuro de Machado
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.