São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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Pretérito e futuro de Machado

Em "Riso e Melancolia", Sergio Paulo Rouanet discute a influência de Sterne na obra do autor brasileiro, mas comete confusão conceitual

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

As interpretações de Machado de Assis (1839-1908) que de algum modo se ligam aos estudos de Mikhail Bakhtin e à linhagem da sátira menipéia têm sido exploradas com bastante sucesso desde o estudo pioneiro de José Guilherme Merquior. É de certa forma uma revisão dessas idéias que propõe Sergio Paulo Rouanet em "Riso e Melancolia".
Para o autor, o ponto de virada na questão é "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristram Shandy", de Laurence Sterne.
O romance conteria inúmeros traços da tradição do sério-cômico (obras em que convivem, entre outras características, mistura de gêneros, uso da paródia, jogos de inversões, extrema liberdade do narrador, inventividade e exagero nas situações ficcionais) mas ao mesmo tempo inauguraria uma nova forma, a forma shandiana, que seria retomada posteriormente por Diderot, Xavier de Maistre, Almeida Garrett e atingiria seu ápice com Machado de Assis.
De acordo com Rouanet, a forma shandiana consistiria em: 1) presença constante e caprichosa do narrador; 2) digressividade e fragmentação; 3) tratamento especial, subjetivo, dado ao tempo e ao espaço; e 4) interpenetração do riso e da melancolia.

Riqueza de exemplos
O autor dedica a cada um dos quatro fatores um capítulo do seu estudo, mostrando, com riqueza de exemplos, como eles aparecem no já citado romance de Sterne, em "Jacques, o Fatalista", de Diderot, em "Viagem ao Redor do Meu Quarto", de Maistre, em "Viagens na Minha Terra", de Garrett, e em "Memórias Póstumas de Brás Cubas".
No capítulo final, discute principalmente a relação da forma shandiana com a sátira menipéia e com o barroco.

Esquecer Machado
É evidente que a fortuna de um conceito novo depende de ele ser aproveitado por outros pesquisadores, mas talvez tivesse sido enriquecedor para o ensaio ter proposto uma ou duas obras posteriores à de Machado em que aparecesse a forma shandiana, dando assim ainda maior consistência ao argumento (dentre os inúmeros candidatos, pode-se pensar na produção de Saramago).
Por fim, não cabe nesta resenha comentar aspectos específicos do volume, mas vale a pena chamar a atenção para um.
Para justificar a escolha dos escritores analisados, Rouanet retoma o famoso prólogo de "Memórias Póstumas" ("Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre [...]") e aponta que um autor, Charles Lamb (1775-1834), era citado no prólogo da primeira edição do livro e depois sumiu.
E aí vem uma passagem que mereceria maior reflexão: "Se a referência a Lamb desaparece nas outras edições, essa omissão talvez se deva ao fato de que Machado de Assis acabou por dar-se conta de que não bastava o humor para enquadrar um autor na forma shandiana".
Ao misturar o nome (forma shandiana) com que batiza a sua percepção crítica com o nome do autor (Machado) enquanto comenta um trecho que é de fato assinado por um outro nome (o do personagem), o ensaísta cria uma confusão conceitual que tem muitas decorrências.
Seria possível pensar, por exemplo, que ele está ali apenas explicitando algo mais do que comprovado, afinal Machado de Assis pensava assim, ou, por outro lado, que o nome do escritor carioca está sendo, na verdade, usado para legitimar uma idéia que não era sua.
A questão é mais complexa (para um tratamento adequado, recomenda-se a leitura da segunda parte de "A Formação do Nome", de Abel Barros Baptista) e aqui foi apenas tangenciada, quem sabe como suporte para uma hipótese nada original, a de que, para pensar a respeito dos textos de Machado de Assis, talvez fosse interessante, de vez em quando, esquecer Machado de Assis.


RISO E MELANCOLIA
Autor:
Sergio Paulo Rouanet
Editora: Companhia das Letras
(tel. 0/xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 43 (256 págs.)

ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP.


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