São Paulo, domingo, 08 de abril de 2007

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A história sou eu

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

A Argentina dependeu dos relatos pessoais daqueles que sobreviveram à ditadura (1976-83) para construir sua história mais recente.
Conseqüentemente, eles ajudaram a legitimar o processo de redemocratização do país, entre outras coisas, por viabilizarem a busca dos culpados pela repressão militar, responsável pelo desaparecimento de mais de 30 mil pessoas.
Apontar os limites ou falhas do poder desses depoimentos, portanto, seria adentrar terreno pedregoso.
Mas é exatamente isso que Beatriz Sarlo, 64, uma das mais importantes intelectuais argentinas, faz em "Tempo Passado", que está saindo no Brasil.
O livro critica a importância que se tem dado ultimamente ao relato em primeira pessoa, tanto por parte da imprensa como da história acadêmica.
Segundo ela, a autoridade que o testemunho vem ganhando, dentro desse processo de "guinada subjetiva", diminui a importância do debate teórico e da necessidade de cruzar versões para que se possa chegar próximo da realidade.
Para Sarlo, a história realizada pela universidade vem perdendo influência na sociedade por não querer responder a uma história mais comercial, que se torna cada vez mais popular por meio da proliferação das grandes exposições temáticas ou dos best-sellers de época.
Essa "indústria cultural da memória", alerta a autora, é perigosa por disseminar simplificações e lugares-comuns.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Sarlo concedeu à Folha, de Buenos Aires, onde vive.

 

FOLHA - Por que trocou a idéia de analisar a década de 70 na Argentina por uma reflexão teórica sobre o tema da memória coletiva?
BEATRIZ SARLO
- Porque esse projeto se transformaria inevitavelmente numa autobiografia.
Quis evitar isso. É claro que uma boa autobiografia teria sido um exercício fascinante, mas pensei que eu e muitos outros estávamos ainda envolvidos no período. E então achei que não era o melhor momento.
Mas, quando cheguei a essa conclusão, já havia percorrido boa parte do caminho que me levou a "Tempo Passado".
Fiz, então, a crítica de meu próprio projeto. Afinal, diante da abundância de escritos de caráter autobiográfico, nada me autorizava a pensar que um livro meu em que a primeira pessoa estivesse muito implicada seria melhor do que aqueles que já existem e não me agradam.

FOLHA - A sra. diz que a "guinada subjetiva" que vivemos faz com que o relato pessoal ganhe uma independência e uma autoridade acima de suspeitas. Qual seria a conseqüência mais negativa desse processo?
Sarlo
- Confia-se no relato da experiência pessoal como se todo o século 20 não tivesse sido, precisamente, uma época de crítica da experiência, partindo de Freud e terminando em Derrida. Não há uma relação direta entre fato e recordação.
Freud nos ensinou que a via para alcançarmos o passado é feita de desvios e acidentes e resulta de uma operação realizada por uma teoria interpretativa.
Cada sujeito poderá pensar que há um caminho reto entre seu próprio passado e sua recordação, mas isso não existe -o que não quer dizer que se pode recordar de um jeito melhor ou pior. O que está no meio são todo tipo de manobras, os gêneros literários, a ideologia e os interesses em jogo.
E, sobretudo, o peso do presente, que não pode ser descolado da lembrança. Os que hoje lembram, todos temos batalhas abertas na área político-ideológico-cultural do presente.
O testemunho traz uma carga do presente que deve ser contrastada com outras fontes escritas que permitam submetê-lo à crítica.

FOLHA - Por que lhe parece que, a partir de um ponto de vista do mercado, o relato pessoal tem tido tanto êxito?
Sarlo
- Isso tem a ver com a manifestação contemporânea, tanto da cultura letrada como da de massas.
Vivemos a época em que a primeira pessoa reclama para si uma legitimidade e uma verdade sustentadas pela idéia de que, se alguém viveu certo acontecimento, está em uma posição privilegiada para narrá-lo. Estamos na "era do depoimento".

FOLHA - A sra. acha que os relatos dos sobreviventes da ditadura foram supervalorizados?
Sarlo
- O testemunho pessoal foi fundamental para provar os crimes dos responsáveis pelo terrorismo de Estado, pois todas as outras formas de prova haviam sido destruídas. Essa é a dimensão jurídica do testemunho pessoal que não pode ser substituída.
É praticamente a única coisa que temos para poder julgar e condenar. Sobre esse ponto não há discussão.
Mas, sim, se podem discutir outros temas que surgem a partir dos relatos, que se referem à cultura política dos anos 60 e 70, às ideologias que sustentavam a violência guerrilheira ou o terrorismo revolucionário.
Isso não está protegido por nenhuma sacralidade. Nada é sagrado com relação a esse ponto, isso não pode ser deixado à parte da discussão.

FOLHA - A sra. fala do êxito de uma história mais comercial, que lota exposições temáticas ou que se presta a servir de cenário de best-sellers. Acha que isso se deve ao distanciamento que a universidade tem da sociedade?
Sarlo
- Os historiadores acadêmicos têm dificuldade para escrever uma história que seja ativa na esfera pública. É um problema que deveriam discutir.
As pessoas precisam dar sentido ao passado e, se a história acadêmica não lhes proporciona isso, eles recorrem à história feita por jornalistas, a narrações maniqueístas, onde toda sua complexidade desaparece.
Sei que é muito difícil atingir uma história que responda bem, ao mesmo tempo, ao método e à esfera pública.
Mas aí está o desafio. O pior que pode acontecer aos historiadores acadêmicos é encerrarem-se em um invejoso ressentimento quanto ao êxito das fórmulas populares da história.
Isso é admitir o fracasso antes de colocar questões formais e de escritura que são fundamentais.

FOLHA - A sra. observa que essa chamada "história pop" se atreve a oferecer explicações, enquanto a história acadêmica apenas levanta dúvidas. Acha que a universidade será forçada a uma mudança por conta desse tipo de pressão? Isso flexibilizaria o rigor nas pesquisas?
Sarlo
- A universidade forma historiadores acadêmicos. Seria um engano se deixasse de fazê-lo e todo mundo competisse pelo espaço e a glória nos jornais.
Mas a esfera pública necessita de intelectuais, aqueles que, além de possuir destrezas disciplinares específicas, sejam capazes de estabelecer uma relação cultural com a sociedade em que vivem -e que faz com que eles próprios sejam possíveis, por meio de recursos comuns públicos que suportam a instituição na qual se formam.

FOLHA - A sra. diz que foi na literatura, em obras como as de Juan José Saer [1937-2005], que a sra. reconheceu, de forma mais viva, o que viveu nos anos da ditadura. Por quê?
Sarlo
- A literatura sempre me pareceu o discurso mais intenso. Isso não tem a ver só com a década de 70 mas com qualquer momento do passado. Distingo literatura e história, não estabeleço um sistema de hierarquias em relação à verdade.
Mas é inegável que a literatura oferece uma experiência formal que hoje a história não oferece, diferentemente do que acontecia com a história do século 19.
A história popular ou jornalística está mais preocupada com o relato do que a acadêmica.
A história se profissionalizou e foi perdendo a relação com a língua e com os modos de narrar. Poucos historiadores contemporâneos serão lidos como se lê Michelet [1798-1874].


Tempo Passado - Cultura da Memória e Guinada Subjetiva
Autor:
Beatriz Sarlo
Tradução: Rosa Freire d"Aguiar
Editora: Ed. UFMG/Companhia das Letras (tel. 0/xx/11/3707-3500)
Quanto: R$ 33,50 (136 págs.)



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