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O ESCRITOR CIBERPUNK BRUCE STERLING FALA SOBRE O PAPEL DE JÚLIO VERNE, CUJO
CENTENÁRIO DE MORTE OCORREU NESTE ANO, COMO CRIADOR DA FICÇÃO CIENTÍFICA
O PAI DA MATÉRIA
ALEXANDRE MATIAS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Bruce Sterling animou-se para conversar sobre Júlio Verne. Um dos pais do último
grande cânone da ficção
científica no século passado, o chamado "ciberpunk", Sterling não é só
um dos inúmeros frutos da árvore
genealógica que o escritor francês,
autor de livros como "20 Mil Léguas
Submarinas" e "Cinco Semanas
num Balão", plantou no final dos
1800. Mais que isso, Sterling é um
entusiasta fervoroso do papel de
Verne como pai da matéria.
"Quando Júlio Verne inventou a
ficção científica", disse Sterling em
sua palestra no sexto Simpósio Internacional de Arte Eletrônica, em
19/9/95, em Montreal (Canadá), "ele
descobriu quase acidentalmente que
a França do século 19 era um grande
mercado para tecno-romances. Ele
encontrou e alimentou o enorme
apetite cultural da época por tecnologias futuristas, como o balão de ar
quente, o submarino elétrico, o navio de guerra equipado com aeronaves, o canhão lunar".
"Hoje, no fim do século 20", continuou, "eu sinto um grande sentido
de solidariedade para com meu ancestral espiritual quando falamos de
assuntos como realidade virtual, telepresença e vínculos diretos entre
nosso cérebro e o computador".
Autor de livros como "Piratas de
Dados" (Aleph) e "Tomorrow Now"
(Random House), Sterling, tecnófilo
e enciclopédico, briga para que um
autor francês seja considerado o pai
de um gênero cujas grandes obras
foram escritas em inglês.
Verne, cuja morte completou cem
anos no último dia 24 de março, foi
celebrado por Sterling nos prefácios
que este escreveu para novas edições
de "Volta ao Mundo em 80 Dias"
("Around the World in 80 Days",
Random House, 2003) e "A Ilha Misteriosa" ("The Mysterious Island",
New Amer Library Classics, 2004) e
no já clássico ensaio "Midnight on
the Rue Jules Verne", em que repassa a biografia do francês de forma a
enaltecê-lo.
Folha - Qual é a principal contribuição de Júlio Verne nestes cem anos
após sua morte?
Bruce Sterling - Ele inventou um
novo tipo de romance, que tornou-se tão conhecido e lucrativo a ponto
de pavimentar o caminho para um
gênero inteiro que existe até hoje.
Folha - Pode-se dizer que Verne era
um escritor de literatura fantástica
que gostava de tecnologia?
Sterling - Acho mais apropriado
dizer que ele escrevia sobre tecnologia, ainda que se permitisse algum
exercício de literatura fantástica.
Folha - Suas idéias ajudaram no desenvolvimento da ciência e da tecnologia que vieram depois da publicação de seus livros ou ele apenas estava a par do que acontecia na época?
Sterling - Verne tinha conexões
muito boas com o mundo científico,
especialmente geógrafos e exploradores. Ele pôde tornar públicas muitas tecnologias ainda incipientes, como a energia elétrica, que eram apenas curiosidades de laboratório em
sua época. Muitos de seus jovens leitores ficaram tão intrigados por seus
livros que se profissionalizaram em
campos técnicos -dessa forma, ele
também agia como recrutador de
profissionais técnicos.
Folha - Não é interessante o fato de
o principal escritor da Revolução Industrial ser francês?
Sterling - Não, de forma nenhuma.
A França era um centro de poder
científico e industrial com alcance
global. Se a França não tivesse saído
tão ferida das guerras da Europa
continental, provavelmente estaríamos falando em francês agora.
Na época de Verne, a memória de
um conquistador mundial como
Napoleão ainda era muito recente,
enquanto os revezes assustadores da
guerra franco-prussiana, da Primeira e da Segunda guerras mundiais
ainda iriam acontecer no futuro. Os
franceses são um povo ótimo, mas
sua condição geográfica não foi justa
com eles.
Folha - O que você acha da obra de
Verne em termos literários?
Sterling - Bem, ele não é de forma
alguma um literato elegante, mas
acho que é melhor escritor de prosa
do que o que seus críticos dizem. Ele
é muito bom ao construir cenas dramáticas com reviravoltas surpreendentes. Mas sua grande virtude era
sua pesquisa meticulosa. Não consigo me lembrar de outro escritor de
histórias fantásticas que consiga se
equiparar a ele nesse quesito. Era capaz até de escrever enciclopédias, o
que, na verdade, também fez.
Folha - Qual era a importância política de um escritor de ficção científica
tão popular em sua época?
Sterling - Verne é um autor lembrado por todo o planeta e não há
dúvidas de seu orgulho de ser francês, mas poucos livros seus se passam na França. Ele era um escritor
europeu que não temia olhar para
além da fronteira. Se uma Europa
futura quiser assumir um papel de
líder global, ele pode ser um interessante exemplo a ser seguido.
Ele seria um exemplo ainda mais
interessante a ser seguido por novos
escritores de ficção científica que
tentem trabalhar com os grandes
poderes em desenvolvimento de
países emergentes, como Índia, China e Brasil. Imagine uma "Volta ao
Mundo em 80 Dias" moderna, em
que Aouda é o personagem principal e todo o livro seja indocêntrico.
Seria uma obra bem interessante.
Folha - Antes de ser publicado, Verne foi descartado por diferentes editores como sendo "científico demais".
Sterling - Escritores recebem críticas e são rejeitados pelas razões mais
improváveis. Acho que o verdadeiro
motivo pelo qual Verne era dispensado com freqüência é que ele simplesmente não era um praticante literato convencional. Ele nunca passou muito tempo discutindo romances com escritores; as raízes de sua literatura estão no teatro.
O status quo literário não é muito
agitado, mas, se você o ignorar, é
muito provável que eles lhe paguem
na mesma moeda. E eles não sabiam
o que fazer com Verne. Ele deixou
Paris, que era a capital da vida literária, para trabalhar em Amiens. Ele se
marginalizou por opção.
Folha - Mesmo contemporâneo de
autores como Alexandre Dumas e Victor Hugo, Verne é um dos autores
mais traduzido de todos os tempos.
Qual a razão de sua popularidade?
Sterling - Você deveria perguntar
porque Dumas e Hugo são menos
populares hoje em dia. E acho que é
porque suas obras estavam envolvidas com as tensões culturais de seus
tempos, que cada vez mais se tornam parecidos com artefatos do
passado. Verne tinha uma visão
mais remota e abstrata dos assuntos
da pauta de sua época, por isso seus
livros envelheceram melhor.
Folha - Ele pertence a uma geração
de escritores que viu o declínio da dominação mundial francesa e a ascensão do império britânico. Suas obras
refletem esta mudança de poder?
Sterling - Acho que a grande mudança no trabalho de Verne aconteceu logo após ele se tornar um político eleito. Uma vez que se tornou
uma autoridade local e se envolveu
com o governo de uma cidade, passou a entender que o mundo não dá
margem para super-heróis fantásticos como o Capitão Nemo. É quando seu trabalho torna-se mais quadrado e pessimista -como se alguém o levasse para trás das cortinas, onde ele pudesse ver as alavancas e as engrenagens. Isso pode ser
um pouco desapontador.
Folha - Quais são seus livros favoritos de Júlio Verne?
Sterling - "20 Mil Léguas Submarinas" é sua obra-prima. Mas meu livro preferido é "Paris no Século 20"
-uma obra de texto fragmentado,
mas é uma das visões mais impressionantes do futuro jamais imaginada por um romancista.
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