São Paulo, domingo, 08 de maio de 2005

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O ESCRITOR CIBERPUNK BRUCE STERLING FALA SOBRE O PAPEL DE JÚLIO VERNE, CUJO CENTENÁRIO DE MORTE OCORREU NESTE ANO, COMO CRIADOR DA FICÇÃO CIENTÍFICA

O PAI DA MATÉRIA

ALEXANDRE MATIAS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA Bruce Sterling animou-se para conversar sobre Júlio Verne. Um dos pais do último grande cânone da ficção científica no século passado, o chamado "ciberpunk", Sterling não é só um dos inúmeros frutos da árvore genealógica que o escritor francês, autor de livros como "20 Mil Léguas Submarinas" e "Cinco Semanas num Balão", plantou no final dos 1800. Mais que isso, Sterling é um entusiasta fervoroso do papel de Verne como pai da matéria.
"Quando Júlio Verne inventou a ficção científica", disse Sterling em sua palestra no sexto Simpósio Internacional de Arte Eletrônica, em 19/9/95, em Montreal (Canadá), "ele descobriu quase acidentalmente que a França do século 19 era um grande mercado para tecno-romances. Ele encontrou e alimentou o enorme apetite cultural da época por tecnologias futuristas, como o balão de ar quente, o submarino elétrico, o navio de guerra equipado com aeronaves, o canhão lunar".
"Hoje, no fim do século 20", continuou, "eu sinto um grande sentido de solidariedade para com meu ancestral espiritual quando falamos de assuntos como realidade virtual, telepresença e vínculos diretos entre nosso cérebro e o computador".
Autor de livros como "Piratas de Dados" (Aleph) e "Tomorrow Now" (Random House), Sterling, tecnófilo e enciclopédico, briga para que um autor francês seja considerado o pai de um gênero cujas grandes obras foram escritas em inglês.
Verne, cuja morte completou cem anos no último dia 24 de março, foi celebrado por Sterling nos prefácios que este escreveu para novas edições de "Volta ao Mundo em 80 Dias" ("Around the World in 80 Days", Random House, 2003) e "A Ilha Misteriosa" ("The Mysterious Island", New Amer Library Classics, 2004) e no já clássico ensaio "Midnight on the Rue Jules Verne", em que repassa a biografia do francês de forma a enaltecê-lo.

 

Folha - Qual é a principal contribuição de Júlio Verne nestes cem anos após sua morte?
Bruce Sterling -
Ele inventou um novo tipo de romance, que tornou-se tão conhecido e lucrativo a ponto de pavimentar o caminho para um gênero inteiro que existe até hoje.


Folha - Pode-se dizer que Verne era um escritor de literatura fantástica que gostava de tecnologia?
Sterling -
Acho mais apropriado dizer que ele escrevia sobre tecnologia, ainda que se permitisse algum exercício de literatura fantástica.

Folha - Suas idéias ajudaram no desenvolvimento da ciência e da tecnologia que vieram depois da publicação de seus livros ou ele apenas estava a par do que acontecia na época?
Sterling -
Verne tinha conexões muito boas com o mundo científico, especialmente geógrafos e exploradores. Ele pôde tornar públicas muitas tecnologias ainda incipientes, como a energia elétrica, que eram apenas curiosidades de laboratório em sua época. Muitos de seus jovens leitores ficaram tão intrigados por seus livros que se profissionalizaram em campos técnicos -dessa forma, ele também agia como recrutador de profissionais técnicos.

Folha - Não é interessante o fato de o principal escritor da Revolução Industrial ser francês?
Sterling -
Não, de forma nenhuma. A França era um centro de poder científico e industrial com alcance global. Se a França não tivesse saído tão ferida das guerras da Europa continental, provavelmente estaríamos falando em francês agora.
Na época de Verne, a memória de um conquistador mundial como Napoleão ainda era muito recente, enquanto os revezes assustadores da guerra franco-prussiana, da Primeira e da Segunda guerras mundiais ainda iriam acontecer no futuro. Os franceses são um povo ótimo, mas sua condição geográfica não foi justa com eles.

Folha - O que você acha da obra de Verne em termos literários?
Sterling -
Bem, ele não é de forma alguma um literato elegante, mas acho que é melhor escritor de prosa do que o que seus críticos dizem. Ele é muito bom ao construir cenas dramáticas com reviravoltas surpreendentes. Mas sua grande virtude era sua pesquisa meticulosa. Não consigo me lembrar de outro escritor de histórias fantásticas que consiga se equiparar a ele nesse quesito. Era capaz até de escrever enciclopédias, o que, na verdade, também fez.

Folha - Qual era a importância política de um escritor de ficção científica tão popular em sua época?
Sterling -
Verne é um autor lembrado por todo o planeta e não há dúvidas de seu orgulho de ser francês, mas poucos livros seus se passam na França. Ele era um escritor europeu que não temia olhar para além da fronteira. Se uma Europa futura quiser assumir um papel de líder global, ele pode ser um interessante exemplo a ser seguido.
Ele seria um exemplo ainda mais interessante a ser seguido por novos escritores de ficção científica que tentem trabalhar com os grandes poderes em desenvolvimento de países emergentes, como Índia, China e Brasil. Imagine uma "Volta ao Mundo em 80 Dias" moderna, em que Aouda é o personagem principal e todo o livro seja indocêntrico. Seria uma obra bem interessante.

Folha - Antes de ser publicado, Verne foi descartado por diferentes editores como sendo "científico demais".
Sterling -
Escritores recebem críticas e são rejeitados pelas razões mais improváveis. Acho que o verdadeiro motivo pelo qual Verne era dispensado com freqüência é que ele simplesmente não era um praticante literato convencional. Ele nunca passou muito tempo discutindo romances com escritores; as raízes de sua literatura estão no teatro.
O status quo literário não é muito agitado, mas, se você o ignorar, é muito provável que eles lhe paguem na mesma moeda. E eles não sabiam o que fazer com Verne. Ele deixou Paris, que era a capital da vida literária, para trabalhar em Amiens. Ele se marginalizou por opção.

Folha - Mesmo contemporâneo de autores como Alexandre Dumas e Victor Hugo, Verne é um dos autores mais traduzido de todos os tempos. Qual a razão de sua popularidade?
Sterling -
Você deveria perguntar porque Dumas e Hugo são menos populares hoje em dia. E acho que é porque suas obras estavam envolvidas com as tensões culturais de seus tempos, que cada vez mais se tornam parecidos com artefatos do passado. Verne tinha uma visão mais remota e abstrata dos assuntos da pauta de sua época, por isso seus livros envelheceram melhor.

Folha - Ele pertence a uma geração de escritores que viu o declínio da dominação mundial francesa e a ascensão do império britânico. Suas obras refletem esta mudança de poder?
Sterling -
Acho que a grande mudança no trabalho de Verne aconteceu logo após ele se tornar um político eleito. Uma vez que se tornou uma autoridade local e se envolveu com o governo de uma cidade, passou a entender que o mundo não dá margem para super-heróis fantásticos como o Capitão Nemo. É quando seu trabalho torna-se mais quadrado e pessimista -como se alguém o levasse para trás das cortinas, onde ele pudesse ver as alavancas e as engrenagens. Isso pode ser um pouco desapontador.

Folha - Quais são seus livros favoritos de Júlio Verne?
Sterling -
"20 Mil Léguas Submarinas" é sua obra-prima. Mas meu livro preferido é "Paris no Século 20" -uma obra de texto fragmentado, mas é uma das visões mais impressionantes do futuro jamais imaginada por um romancista.


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