UOL


São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

Texto Anterior | Índice

Ponto de fuga

A música e o olhar

Jorge Coli
especial para a Folha

"Nelson Freire", filme de João Moreira Salles, trata de música. Não é um filme do silêncio, portanto. Mas é, de certo modo, um filme mudo. Tem o gosto dos intertítulos, que permitem uma intromissão discreta nas imagens, preparando o espectador, conduzindo um bom humor, sorridente e sem acidez. A montagem demonstra poder de comentário elíptico, justo, leve, divertido.
Isso não impede o olhar mais profundo, detectando relações, nem sempre alegres, para além das palavras. Quando elas surgem, quando são pronunciadas no filme, se revelam incapazes de dar conta das coisas. São toscas, ao tentarem exprimir densidades que a lente é mestra em captar. Assim, depois do recital, os admiradores querem agradecer ao pianista pela emoção intensa que sentiram. Meio sem jeito, as frases tendem a se repetir, às vezes gaguejadas, às vezes hiperbólicas, às vezes cômicas. Não importa: o que vemos, percebemos, intuímos, é a comoção habitando essas pessoas, aflorando naquilo que não conseguem dizer. Tudo se passa por trás das palavras, onde música e imagens se fundem.
Nelson Freire toca algumas peças curtas por inteiro; outras, mais longas, como um concerto de Rachmaninov ou de Brahms, surgem, no percurso do filme, por fragmentos. Não é a interpretação imortal do virtuose excelso, documentada para a eternidade, que interessa ali. Importa a fusão do pianista com a música. Um humanismo se tece entre som e imagem.

Outeiro - O tema de "Santa Cruz" (2000), outro filme de João Moreira Salles, tem como objeto a fé evangélica. O lugar é uma área de ocupação clandestina, na periferia do Rio de Janeiro. A graça, o riso estão ausentes desse meio muito pobre e muito sofrido. Mundo bem distante das esplêndidas salas de concerto, onde brilha o grande pianista. No entanto há um ponto comum que os une.
O diretor se mostra incapaz de maldades, de sensacionalismos, de presunção declamatória. Busca, nos dois casos, energias e convicções que elevam. Para os frequentadores da pequena igreja evangélica, Deus é o ponto central. Para o cineasta, o centro está antes na dose de humanidade positiva, capaz de resistir às infames condições de vida e atribuir um sentido às coisas. Essa energia é forte bastante para evitar a dissolução caótica, a entropia que corrói. A violência, mostrada num relance, permanece como o pressuposto invisível, o avesso ameaçador daquele esforço por alcançar uma vida mais harmoniosa. A miséria é denunciada de modo indireto, pelo ânimo dessa comunidade em arrancar-se de sua ação desagregadora.
O mesmo humanismo generoso, no filme sobre Nelson Freire, mostra o ato de fazer música como ascese que põe em xeque banalidade e indiferença, indicando caminhos para uma espiritualidade sonora.

Glórias - Não existe, de fato, distinção essencial, de natureza, entre o "documentário" e a "ficção" no cinema. Nos dois casos, se os resultados forem convincentes, o que se obtém é uma verdade construída pelo cineasta.
Edgar G. Ulmer, diretor de cinema nascido em Viena, foi um gênio dos filmes "B" em Hollywood, entre eles "O Homem do Planeta X". Ulmer fez também, em 1947, "Carnegie Hall" (em DVD pela Kino on Video), sobre a célebre sala de concertos de Nova York. Nele desfilam os nomes mais lendários da música do século 20, que tocam, cantam, regem e, às vezes, atuam, fazendo pontas numa trama fictícia um pouco perversa. Há um assombroso vigor expressionista. Ao interpretar a "Dança Ritual do Fogo", Rubinstein parece estar inserido num thriller de Hitchcock.

Ceras - Dentre os vários CDs que retomaram antigas gravações de Guiomar Novaes, todos esplêndidos e essenciais, talvez o mais comovente seja aquele publicado pela Music & Arts Programs of America, Inc., em 1991. Reúne todas as interpretações que a pianista fez para a RCA Victor, de 1919 a 1927. São registros muito antigos, portanto. Em meio aos chiados emerge a sonoridade luminosa, vazada em vibração juvenil.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Texto Anterior: + autores: A civilização dos pães de açúcar
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.