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Decisão vital
Julgamento sobre uso de células-tronco pelo Supremo Tribunal Federal embaralha
as esferas jurídica e política
Lula Marques - 29.mai.08/Folha Imagem
| Deficientes comemoram a aprovação do uso de células-tronco em pesquisas no país, em sessão no STF, em Brasília |
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Não há novidade nenhuma no fato de a
Suprema Corte terminar legislando. Essa é uma necessidade inscrita no corpo da
lei. Em direito, como em tantas
outras disciplinas, nunca a regra é completamente determinada a tal ponto que o caso apenas se ajustaria a ela mecanicamente. Julgar se uma ação é legal ou ilegal encontra um espaço aberto para a decisão do juiz.
O ato jurídico como tal não
consiste simplesmente em peneirar fatos para verificar quais
aqueles que ficam presos na
malha. O juiz também amolda
a transgressão segundo a tradição dos tribunais e os ditames
de sua própria consciência.
Não é estranhável, pois, que,
ao ser incitado a declarar inconstitucional o artigo nº 5 da
Lei de Biossegurança de 2005,
justamente aquele que trata da
pesquisa com células-tronco
embrionárias, cinco ministros
tentaram legislar, isto é, completar o sentido do artigo atribuindo-lhe um conteúdo que
não estava implícito nele.
Esse ponto de vista não prevaleceu, seis deles simplesmente votaram pela negativa
-e uma negação simples não
determina- , assegurando sem
mais a constitucionalidade do
artigo. Mas não é significativa a
diferença de um voto?
É no Supremo Tribunal Federal que o sistema jurídico se
cruza com o político. Se até
mesmo uma norma constitucional comporta indeterminações, para que ela possa ser
aplicada é preciso tomar certas
decisões que configurem seu
sentido.
Isso é feito principalmente
tendo a política do país como
pano de fundo, o tribunal quase
sempre resolvendo um impasse que o jogo político não pode
resolver. É de esperar ainda
que o tribunal legisle muito
mais quando as instituições do
Poder Legislativo se travam, se
atolam em picuinhas e se esgotam em investigações policiais
inconclusas, como está acontecendo atualmente.
Floreios bizantinos
Tendo a oportunidade de discutir e decidir sobre uma questão de alta relevância e de grande apelo midiático, o tribunal
se esbaldou.
Foram necessários três dias
para que os ministros lessem
seus longos discursos, recheados de direito, filosofia, teologia, ciência etc., as teses carregadas de floreios bizantinos.
(Dizem que, no momento em
que os turcos tomaram Constantinopla (Bizâncio), em 1453,
os intelectuais da cidade disputavam sobre o sexo dos anjos e
se perguntavam quantos anjos
poderiam se apoiar na ponta de
uma agulha.)
Muitos ministros não deixaram por menos, só que, em vez
de anjos, falaram de células, da
fertilização e, sobretudo, da Vida (com V bem maiúsculo), como se uma decisão jurídica fosse capaz de elucidar todos os
mistérios da existência.
Parece-me evidente que esse
palavrório era jogo para a platéia. Desde que as sessões do
STF passaram a ser televisionadas, alguns ministros viraram pop stars, aproveitando
ainda do jogo de cena para
transmitir seus recados.
A discussão sobre a vida tem
servido de pano de fundo para
que se decida que tipo de controle social queremos ter sobre
o ciclo vital humano, diante das
enormes possibilidades de manipulação abertas pela biologia
contemporânea.
E todos sabemos que, por
trás desse novo panorama, reside a velha questão do aborto.
Quem admite matar uma célula
fecundada não terminará aceitando a morte de um feto de
três meses?
Quase todos os ministros
dialogaram principalmente
com a comunidade científica e
com a Igreja Católica, mas poucos queriam se indispor com
elas. E, para que a questão de
fundo -como controlar socialmente a vida?- não aparecesse
na sua dureza, valeram os ornamentos bizantinos.
Era impossível, entretanto,
evitar a questão do controle e,
sobretudo, que tipo de controle
devemos exercer sobre os excessos dos cientistas e a ganância dos laboratórios.
Há anos que os cientistas se
preocupam com esse problema, e não é à toa que se tem ampliado a discussão sobre as relações entre ética e ciência.
No entanto, se quanto mais
se discutem esses problemas,
maiores são as divergências,
considerando ainda que a ciência não pode parar nem deixar
espaço para cientistas malucos,
uma solução prática precisou
ser inventada e implementada.
Formou-se assim uma enorme rede de comitês de bioética,
todos inscritos no Ministério
da Saúde.
Ora, a característica notável
desses comitês é que não dão
margem para discussões acadêmicas, mas firmam decisões
que resultam de um acordo entre seus membros, sendo eles
representantes das mais diversas correntes de pensamento.
A decisão é coletiva sem que
necessariamente o caso seja
apresentado diante de uma regra definida. Em vez da vontade
geral, funciona a boa vontade
em assumir riscos e garantir o
máximo de transparência nas
decisões tomadas.
Deixando de lado o palavrório dos três dias de discussão,
logo se percebe que o STF se dividiu em dois partidos.
Códigos de ética
De um lado, aqueles que simplesmente declararam a constitucionalidade do artigo nº 5,
mantendo-se assim no estrito
campo do direito formal, mas
deixando transparecer sua boa
vontade em relação ao controle
já exercido pelos cientistas.
De outro, colocaram-se
aqueles que tentavam arrochar
esse controle, subordinando-o
a instituições puramente burocráticas. Aventou-se mesmo
um controle centralizado, cada
pesquisador sendo obrigado a
obter nele uma licença, o que
obviamente implicava admitir
a pesquisa em princípio para
inviabilizá-la no fato.
O resultado foi muito interessante. Ao derrotar os ministros legisladores, os vencedores
terminaram por reconhecer a
validade dos comitês de ética,
por conseguinte de uma prática
ética que se situa além das disputas teóricas.
O que vale para esses comitês
é a decisão institucionalizada,
que, se por certo é influenciada
pela disputa sobre os valores
éticos, vai além deles na medida em que transpassa sua irremediável diversidade.
Notável é que também na administração da Justiça aparecem momentos decisionistas,
como o tribunal de júri. Este
supõe que jurados chegam à
"verdade", embora os advogados nem sempre ajam moralmente. Mas a prática do comitê
de ética não é uma maneira de
revelar que os códigos de ética
contemporâneos valem menos
pelo que eles codificam e muito
mais pelo tipo de sociabilidade
moral que produzem? Não é o
fim da moral determinante?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .
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