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+ cinema
Massa falida
O filósofo Alain Finkielkraut ataca "Entre as Paredes", filme vencedor
do Festival de Cannes, e rebate papel social da arte
ALAIN FINKIELKRAUT
Para François Bégaudeau, autor de "Entre
les Murs" [Entre as
Paredes, ed. Verticales, França] e ator
principal do filme que se baseou em seu livro, a Palma de
Ouro no Festival de Cannes é
um verdadeiro conto de fadas.
Sua alegria, compartilhada pelo diretor Laurent Cantet e os
alunos do colégio Françoise-Dolto, que interpretam a si
mesmos, dá gosto de ver. Podemos lhe perdoar até seu momento de vaidade: como manter a cabeça fria em uma ocasião tão inesperada e tão excepcional?
O triunfo de Bégaudeau não
é modesto, vá lá. Mas por que
seria acrimonioso? Por que essa desforra dos professores que
não compartilham seus métodos nem seus objetivos nem
seu otimismo?
Por que ser tão mau jogador,
quando se ganhou a batalha, e
encarniçar-se contra os últimos recalcitrantes, quando se
tem aos pés o presidente da República e os ministros da Cultura e da Educação?
E por que é preciso que o "Le
Monde" alimente essa estranha agrura, traçando a comparação com os "fundamentalistas da escola republicana", que
pregam "a abordagem exclusiva da língua francesa por meio
dos grandes textos"?
Fixação e viagem
É fundamentalista a leitura
de "Em Busca do Tempo Perdido" [de Proust], de "Berenice"
[de Racine] ou de "Lírios do Vale" [de Balzac]? É fundamentalista a experiência de coisas belas, o amplo leque dos sentimentos e o tremor literário do
sentido?
O fundamentalismo é arrogante, categórico e binário, enquanto a literatura problematiza tudo o que toca. O fundamentalismo é uma fixação; a literatura, uma viagem sem fim.
Poderemos julgar o filme de
Cantet quando for lançado.
Talvez fiquemos interessados
ou mesmo cativados por essa
crônica de um ano escolar em
uma classe de quarto ano por
meio das tensões, dos dramas,
problemas e imprevistos.
Mas, se é verdade que, depois
de ter se dedicado em vão a corrigir a sintaxe vacilante de adolescentes que se queixam de terem sido "insultados de prostitutas", o professor acaba utilizando certas expressões da linguagem dos alunos, "mais eficaz que a sua", então não teremos motivo para nos alegrar.
Pois a civilização não exige
que a língua seja eficaz, direta,
que permita a cada um dizer
sem desvios o que lhe vai na alma ou nas tripas. A civilização
reclama o escrúpulo, a precisão, o matiz e a delicadeza.
É exatamente a razão pela
qual o aprendizado da língua,
até data recente, passava pelos
grandes textos.
Também antigamente se respirava nas obras literárias ou
cinematográficas um ar diferente do ar dos tempos.
Sean Penn, o presidente do
júri, acertou os ponteiros ao declarar, na cerimônia de abertura do festival e sob os aplausos
de uma imprensa entusiástica,
que só chamariam sua atenção
os filmes realizados por cineastas engajados, conscientes do
mundo que os cerca. "Sarabanda", "Fanny e Alexandre", "E la
Nave Va", favor abster-se. O
mundo interior, a exploração
da existência, as feridas da alma
estão fora do tema.
Como se a submissão da cultura à ação política e às urgências ou aos dogmas do dia não
tivesse sido uma das grandes
tristezas do século 20, agora cabe aos cineastas revelar que
George W. Bush é atroz, que o
planeta está quente demais,
que as discriminações continuam vigentes e que a mestiçagem é o futuro do homem.
A arte deve ser contestadora,
isto é, traduzir em imagens o
que é repetido em todo lugar,
ao longo do tempo. Big Brother
morreu, mas, levada por um desejo de publicidade decididamente insaciável, a ideologia
reina e cuida para que nossa vida inteira transcorra entre as
paredes do social.
ALAIN FINKIELKRAUT é filósofo francês.
A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .
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