São Paulo, domingo, 08 de junho de 2008

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+ cinema

Massa falida

O filósofo Alain Finkielkraut ataca "Entre as Paredes", filme vencedor do Festival de Cannes, e rebate papel social da arte

ALAIN FINKIELKRAUT

Para François Bégaudeau, autor de "Entre les Murs" [Entre as Paredes, ed. Verticales, França] e ator principal do filme que se baseou em seu livro, a Palma de Ouro no Festival de Cannes é um verdadeiro conto de fadas.
Sua alegria, compartilhada pelo diretor Laurent Cantet e os alunos do colégio Françoise-Dolto, que interpretam a si mesmos, dá gosto de ver. Podemos lhe perdoar até seu momento de vaidade: como manter a cabeça fria em uma ocasião tão inesperada e tão excepcional?
O triunfo de Bégaudeau não é modesto, vá lá. Mas por que seria acrimonioso? Por que essa desforra dos professores que não compartilham seus métodos nem seus objetivos nem seu otimismo?
Por que ser tão mau jogador, quando se ganhou a batalha, e encarniçar-se contra os últimos recalcitrantes, quando se tem aos pés o presidente da República e os ministros da Cultura e da Educação? E por que é preciso que o "Le Monde" alimente essa estranha agrura, traçando a comparação com os "fundamentalistas da escola republicana", que pregam "a abordagem exclusiva da língua francesa por meio dos grandes textos"?

Fixação e viagem
É fundamentalista a leitura de "Em Busca do Tempo Perdido" [de Proust], de "Berenice" [de Racine] ou de "Lírios do Vale" [de Balzac]? É fundamentalista a experiência de coisas belas, o amplo leque dos sentimentos e o tremor literário do sentido?
O fundamentalismo é arrogante, categórico e binário, enquanto a literatura problematiza tudo o que toca. O fundamentalismo é uma fixação; a literatura, uma viagem sem fim. Poderemos julgar o filme de Cantet quando for lançado.
Talvez fiquemos interessados ou mesmo cativados por essa crônica de um ano escolar em uma classe de quarto ano por meio das tensões, dos dramas, problemas e imprevistos. Mas, se é verdade que, depois de ter se dedicado em vão a corrigir a sintaxe vacilante de adolescentes que se queixam de terem sido "insultados de prostitutas", o professor acaba utilizando certas expressões da linguagem dos alunos, "mais eficaz que a sua", então não teremos motivo para nos alegrar.
Pois a civilização não exige que a língua seja eficaz, direta, que permita a cada um dizer sem desvios o que lhe vai na alma ou nas tripas. A civilização reclama o escrúpulo, a precisão, o matiz e a delicadeza. É exatamente a razão pela qual o aprendizado da língua, até data recente, passava pelos grandes textos.
Também antigamente se respirava nas obras literárias ou cinematográficas um ar diferente do ar dos tempos. Sean Penn, o presidente do júri, acertou os ponteiros ao declarar, na cerimônia de abertura do festival e sob os aplausos de uma imprensa entusiástica, que só chamariam sua atenção os filmes realizados por cineastas engajados, conscientes do mundo que os cerca. "Sarabanda", "Fanny e Alexandre", "E la Nave Va", favor abster-se. O mundo interior, a exploração da existência, as feridas da alma estão fora do tema.
Como se a submissão da cultura à ação política e às urgências ou aos dogmas do dia não tivesse sido uma das grandes tristezas do século 20, agora cabe aos cineastas revelar que George W. Bush é atroz, que o planeta está quente demais, que as discriminações continuam vigentes e que a mestiçagem é o futuro do homem.
A arte deve ser contestadora, isto é, traduzir em imagens o que é repetido em todo lugar, ao longo do tempo. Big Brother morreu, mas, levada por um desejo de publicidade decididamente insaciável, a ideologia reina e cuida para que nossa vida inteira transcorra entre as paredes do social.


ALAIN FINKIELKRAUT é filósofo francês. A íntegra deste texto saiu no "Le Monde". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves .


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