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Aventuras
de um camaleão
A partir da história de uma personagem picaresca, "Traição", de Ronaldo Vainfas, retrata
o contraste religioso e cultural do Brasil holandês
ANTONIO RISÉRIO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O novo livro do historiador Ronaldo
Vainfas, "Traição
-Um Jesuíta a Serviço do Brasil Holandês Processado pela Inquisição", traz um título confuso e
pouco atraente.
Mas a obra é clara, e sua matéria fascina. Vainfas trata da
"guerra do açúcar" entre o Portugal católico e a Holanda calvinista, mas tal como ela se inscreve e se expressa como
"guerra civil" no interior barroco do coração de uma só pessoa: o mameluco paulista Manoel de Moraes, exímio nos jogos da traição.
Ou, ainda, na alma barroca
de um homem-jogador que fez
da traição -prática e simbólica- seu modo de vida.
Os tempos do Brasil holandês -sob os signos de Vrijburg
[Friburgo] e Guararapes- deixaram registros de e sobre um
extenso elenco de personagens. Riqueza documental,
sim, de Gaspar Barléu a Johannes Gregorius Aldenburgk.
Mas, também, esplendor literário, com Antonio Vieira,
entre a "Carta Ânua" e os sermões ousados, onde chega a
destratar Deus, falando feito
Moisés de um novo povo eleito,
o lusitano.
A posteridade não foi menos
pródiga em dádivas textuais.
Em biografias, narrativas, leituras historiográficas, políticas
ou econômicas. E, ainda, em
personagens históricos, fictícios ou histórico-fictícios
transfigurados em criações
textuais recentes.
Exemplos disso são o coronel
Artichewski, no "Catatau" de
Paulo Leminski (que imagina
Descartes fumando maconha
no jardim botânico de Nassau)
e do soldado Zernicke se revirando em caboclo Sinique, nas
mãos do João Ubaldo de "Viva
o Povo Brasileiro" [Objetiva/
Alfaguara].
A essa constelação vem se somar -mais inteiro e nitidamente agora, com o livro de
Ronaldo Vainfas- o tratante
Manoel de Moraes, que certamente teria merecido versos de
Gregório de Mattos, se o Boca
do Inferno o tivesse conhecido.
E Vainfas -que já nos deu
trabalhos de relevo, como "A
Heresia dos Índios - Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial" [Cia. das Letras], tratando
o "catolicismo tupinambá" do
índio Antonio e sua Santidade
de Jaguaripe, no Recôncavo
Baiano da década de 1580 (pouco antes do nascimento de Manoel de Moraes)-, nos conduz
também aqui, campos de uma
outra e diversa peripécia herética, com clareza, conhecimento e sensibilidade.
Soldados e putas
Nascido nos campos de Piratininga, Manoel seguiu para o
colégio dos jesuítas na Bahia e,
dali, para missionar em terras
pernambucanas.
Veio a invasão holandesa.
Manoel virou "capitão do gentio", comandando índios e seduzindo índias.
Foi preso. Bandeou-se para o
lado holandês, em meio a soldados e putas, na noite do Recife.
Converteu-se ao calvinismo.
Entre Amsterdã e Leiden, casou-se duas vezes, fazendo filhos flamengos. Acusado de
traição e heresia, foi queimado
em efígie pela Inquisição.
Partiu então para o jogo duplo, engabelando lusos e batavos. Com dinheiro holandês,
reinstalou-se em Pernambuco.
Acumulou bens. Elegeu uma
feitora negra para controlar
seus escravos: a angolana Beatriz, sua amante.
Regressou ao catolicismo em
Recife, talvez a única cidade do
mundo, na época, com templos
calvinistas, igrejas católicas e
uma sinagoga funcionando publicamente.
Mas sobreveio a guerra contra os invasores. Manoel, de novo, trocou de lado. Tornou-se
capelão das tropas luso-brasileiras. Mas acabou preso em
Lisboa, para explicar sua guinada calvinista ao Santo Ofício.
Foi condenado. Velho, na miséria, morreu sem deixar rastro.
Mas a trama se deu com traumas e dramas. Manoel atravessou tormentos pesados. Era,
mesmo, homem dilemático.
Um oportunista dilacerado, poço de contradições inflamadas,
carregando consigo capas e estratos de cinismo e culpa. Ou
realizando, nos movimentos de
sua própria vida, o jogo de antíteses do barroco.
Entremeia-se ainda, nesse
rosário de aventuras, uma vida
letrada, com passagem pela
Universidade de Leiden, desovando aqui e ali alguma produção intelectual, como a "Historia Brasiliensis" (Manoel se expressava em português, tupi e
latim), que alcançou chamar
para si a atenção de eruditos
europeus do século 17 -a
exemplo de Hugo Grotius, o
teórico do "direito natural",
passo para a afirmação da cultura laica no século seguinte.
Vida na encruzilhada
Manoel viveu, assim, na encruzilhada, em zona de fronteira, saltando espalhafatosamente de uma margem para outra,
entre enganos, auto-enganos e
heresias.
Fez comércio e contrabando
não somente de negros e pau-brasil, mas também de idéias e
signos. Existiu, em suma, para a
vertigem de suas apostas, não
para a calmaria ou a lealdade.
Como o próprio Vainfas resume, já quase ao final de "Traição", Manoel de Moraes viveu
jogando o jogo do camaleão:
transitou por vários mundos,
serviu a muitos senhores, traiu
todos eles.
ANTONIO RISÉRIO é antropólogo, autor de "A
Utopia Brasileira e os Movimentos Negros"
(Editora 34), entre outros livros.
TRAIÇÃO - UM JESUÍTA
A SERVIÇO DO BRASIL
HOLANDÊS PROCESSADO
PELA INQUISIÇÃO
Autor: Ronaldo Vainfas
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/
xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 47 (392 págs.)
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