São Paulo, domingo, 08 de junho de 2008

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Aventuras de um camaleão

A partir da história de uma personagem picaresca, "Traição", de Ronaldo Vainfas, retrata o contraste religioso e cultural do Brasil holandês

ANTONIO RISÉRIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O novo livro do historiador Ronaldo Vainfas, "Traição -Um Jesuíta a Serviço do Brasil Holandês Processado pela Inquisição", traz um título confuso e pouco atraente. Mas a obra é clara, e sua matéria fascina. Vainfas trata da "guerra do açúcar" entre o Portugal católico e a Holanda calvinista, mas tal como ela se inscreve e se expressa como "guerra civil" no interior barroco do coração de uma só pessoa: o mameluco paulista Manoel de Moraes, exímio nos jogos da traição.
Ou, ainda, na alma barroca de um homem-jogador que fez da traição -prática e simbólica- seu modo de vida. Os tempos do Brasil holandês -sob os signos de Vrijburg [Friburgo] e Guararapes- deixaram registros de e sobre um extenso elenco de personagens. Riqueza documental, sim, de Gaspar Barléu a Johannes Gregorius Aldenburgk.
Mas, também, esplendor literário, com Antonio Vieira, entre a "Carta Ânua" e os sermões ousados, onde chega a destratar Deus, falando feito Moisés de um novo povo eleito, o lusitano. A posteridade não foi menos pródiga em dádivas textuais.
Em biografias, narrativas, leituras historiográficas, políticas ou econômicas. E, ainda, em personagens históricos, fictícios ou histórico-fictícios transfigurados em criações textuais recentes.
Exemplos disso são o coronel Artichewski, no "Catatau" de Paulo Leminski (que imagina Descartes fumando maconha no jardim botânico de Nassau) e do soldado Zernicke se revirando em caboclo Sinique, nas mãos do João Ubaldo de "Viva o Povo Brasileiro" [Objetiva/ Alfaguara].
A essa constelação vem se somar -mais inteiro e nitidamente agora, com o livro de Ronaldo Vainfas- o tratante Manoel de Moraes, que certamente teria merecido versos de Gregório de Mattos, se o Boca do Inferno o tivesse conhecido.
E Vainfas -que já nos deu trabalhos de relevo, como "A Heresia dos Índios - Catolicismo e Rebeldia no Brasil Colonial" [Cia. das Letras], tratando o "catolicismo tupinambá" do índio Antonio e sua Santidade de Jaguaripe, no Recôncavo Baiano da década de 1580 (pouco antes do nascimento de Manoel de Moraes)-, nos conduz também aqui, campos de uma outra e diversa peripécia herética, com clareza, conhecimento e sensibilidade.

Soldados e putas
Nascido nos campos de Piratininga, Manoel seguiu para o colégio dos jesuítas na Bahia e, dali, para missionar em terras pernambucanas. Veio a invasão holandesa.
Manoel virou "capitão do gentio", comandando índios e seduzindo índias. Foi preso. Bandeou-se para o lado holandês, em meio a soldados e putas, na noite do Recife. Converteu-se ao calvinismo. Entre Amsterdã e Leiden, casou-se duas vezes, fazendo filhos flamengos. Acusado de traição e heresia, foi queimado em efígie pela Inquisição.
Partiu então para o jogo duplo, engabelando lusos e batavos. Com dinheiro holandês, reinstalou-se em Pernambuco. Acumulou bens. Elegeu uma feitora negra para controlar seus escravos: a angolana Beatriz, sua amante.
Regressou ao catolicismo em Recife, talvez a única cidade do mundo, na época, com templos calvinistas, igrejas católicas e uma sinagoga funcionando publicamente.
Mas sobreveio a guerra contra os invasores. Manoel, de novo, trocou de lado. Tornou-se capelão das tropas luso-brasileiras. Mas acabou preso em Lisboa, para explicar sua guinada calvinista ao Santo Ofício. Foi condenado. Velho, na miséria, morreu sem deixar rastro. Mas a trama se deu com traumas e dramas. Manoel atravessou tormentos pesados. Era, mesmo, homem dilemático.
Um oportunista dilacerado, poço de contradições inflamadas, carregando consigo capas e estratos de cinismo e culpa. Ou realizando, nos movimentos de sua própria vida, o jogo de antíteses do barroco.
Entremeia-se ainda, nesse rosário de aventuras, uma vida letrada, com passagem pela Universidade de Leiden, desovando aqui e ali alguma produção intelectual, como a "Historia Brasiliensis" (Manoel se expressava em português, tupi e latim), que alcançou chamar para si a atenção de eruditos europeus do século 17 -a exemplo de Hugo Grotius, o teórico do "direito natural", passo para a afirmação da cultura laica no século seguinte.

Vida na encruzilhada
Manoel viveu, assim, na encruzilhada, em zona de fronteira, saltando espalhafatosamente de uma margem para outra, entre enganos, auto-enganos e heresias.
Fez comércio e contrabando não somente de negros e pau-brasil, mas também de idéias e signos. Existiu, em suma, para a vertigem de suas apostas, não para a calmaria ou a lealdade.
Como o próprio Vainfas resume, já quase ao final de "Traição", Manoel de Moraes viveu jogando o jogo do camaleão: transitou por vários mundos, serviu a muitos senhores, traiu todos eles.


ANTONIO RISÉRIO é antropólogo, autor de "A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros" (Editora 34), entre outros livros.

TRAIÇÃO - UM JESUÍTA A SERVIÇO DO BRASIL HOLANDÊS PROCESSADO PELA INQUISIÇÃO
Autor:
Ronaldo Vainfas
Editora: Companhia das Letras (tel. 0/ xx/11/ 3707-3500)
Quanto: R$ 47 (392 págs.)


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