São Paulo, domingo, 08 de junho de 2008

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+ sociedade

Habemus Obama

Eterno candidato ao Nobel, Philip Roth fala de "Fantasma Sai de Cena", que está sendo lançado no Brasil, de eleições nos EUA e diz que "as telas derrotaram as páginas"


Em 20 anos, ler será hobby de uma minoria; alguns criarão cachorros ou peixes tropicais, e outros lerão

JESÚS RUIZ MANTILLA

A linguagem é a caixa de ferramentas comum a todos, da qual cada um tira o que precisa. Mas sempre há algo que diferencia uns de outros. No caso de Philip Roth, esse diferencial é a raiva. Esse talvez seja o traço que melhor define a obra de um dos escritores vivos que mais marcou seus contemporâneos nas últimas décadas. Mas não se trata de uma raiva estéril ou cega. É uma raiva que contribui, que constrói, que nos ajuda a viver.
Em seus romances não há muita esperança: "Será que não quero que a tenham?", ele próprio comenta, sentado na pequena sala de reuniões da agência do homem conhecido como Chacal, que administra a carreira literária de Roth a partir de um escritório na rua 57, em Nova York. É um lugar frio, onde nem o fato de o aquecimento estar ligado à toda consegue fazer o gelo desgrudar das paredes.
Apenas Philip Roth consegue fazê-lo, com sua voz um tanto quanto rouca devido à passagem dos anos -ele já chegou aos 75.
Há dentro desse desespero uma vitalidade, uma voz, que se nega a render-se. É o que ocorre quando se lê "Fantasma Sai de Cena" ("Exit Ghost", Cia. das Letras, trad. Paulo Henriques Britto, 282 págs., R$ 42), em que Roth traz de volta Nathan Zuckerman, um de seus alter egos mais importantes, como também o foram o professor David Kepesh e o célebre protagonista do hilário "O Complexo de Portnoy".
Em seu novo livro, Roth persegue o fantasma de um escritor morto a quem quer dedicar uma biografia que vai escancarar aspectos escabrosos de sua vida. Se se tratasse de Roth, isso não seria necessário. O autor de "Pastoral Americana" compartilhou sua vida com seus leitores, passo a passo. Desde a infância em Weequahic (bairro histórico da perigosa Newark, em Nova Jersey) até a velhice, vivida entre Nova York e a casa de campo em Connecticut, este autor fundamental, eterno candidato ao Prêmio Nobel, não deixou ninguém indiferente.
Nem seus compadres da comunidade judaica, que mais de uma vez se enfureceram com a visão crua e impiedosa que mostra de seu próprio mundo, nem os cristãos, que em seus livros são obrigados a suportar desde a blasfêmia até o disparo constante de uma munição distante da moral e dos costumes decentes dos mais retrógrados.
Pois seus romances, a não ser que ele faça ficção política, como em "Complô Contra a América", jogam no campo da realidade.
E, se "Casei com um Comunista" foi o romance da era McCarthy, e "A Marca Humana", a obra-prima da era Clinton, "Fantasma Sai de Cena" surge com a ambição de ser um afresco da intra-história da era Bush -"o pior presidente que este país já teve", diz Roth.  

PERGUNTA - Percebe-se que o sr. é um escritor que se preocupa com seus leitores. Tem leitores bons, fiéis -embora, em "Fantasma Sai de Cena", se queixe de que eles já não existem. Onde eles estão?
PHILIP ROTH
- Onde? Olhando para as telas de seus computadores, as telas da televisão, dos cinemas, dos DVDs. Distraídos por formatos mais divertidos. As telas nos derrotaram.

PERGUNTA - Como os escritores podem combater essa concorrência acirrada das telas?
ROTH
- Não sei. Não me coloco essa pergunta seriamente. Apenas posso lhe dizer o que aconteceu: que as telas venceram a batalha contra as páginas.

PERGUNTA - O sr. não acredita no tão alardeado "Kindle", o livro eletrônico que acaba de sair nos EUA?
ROTH
- Ainda não o vi, mas duvido que tome o lugar de um objeto como o livro. A solução não é transpor livros para telas eletrônicas. Não é isso. O problema é que o hábito da leitura desapareceu. Como se, para ler, precisássemos de uma antena, e ela tivesse sido cortada. O sinal não chega mais. A concentração, a solidão, a imaginação que o hábito da leitura exige... Perdemos a guerra. Dentro de 20 anos, a leitura será algo restrito a uma seita.

PERGUNTA - E os leitores são raros, assim como espectros?
ROTH
- Não, não. Também não é isso. Ler será hobby de uma minoria. Alguns criarão cachorros ou peixes tropicais, e outros lerão. Como é o caso da leitura de poesia, hoje. Existem poetas, eles são publicados, mas os leitores de poesia são uma minoria. É isso o que vai acontecer.

PERGUNTA - Em seu novo livro, o sr. volta a colocar em campo seu alter ego Nathan Zuckerman. Ele passou anos longe de tudo, sozinho, no campo, trabalhando. O sr. também renunciou a muitas coisas na vida?
ROTH
- Zuckerman está aposentado, leva uma vida de recluso, lendo e escrevendo. Ele se afastou do mundo por várias razões. Deixou Nova York depois de receber ameaças e passou a gostar de viver no campo.

PERGUNTA - Essas ameaças são fortes. O sr. enfatiza isso. O racismo contra judeus nos EUA aumentou nos últimos anos?
ROTH
- Não. É uma constante.

PERGUNTA - Pouco tempo depois de retornar a Nova York, Zuckerman já quer ir embora.
ROTH
- Ele não suporta mais a cidade.

PERGUNTA - Muitas coisas o ameaçam -entre elas, a beleza.
ROTH
- Bem, ele se rende diante dela, mas ela também o assusta. Como o câncer do qual sofre, como o passado e a nostalgia dele.

PERGUNTA - Sempre acontece com seus personagens: essa força narrativa agarra o leitor pelo estômago, desde o início. O sr. faz isso de propósito? Começar mirando as entranhas mais que o cérebro?
ROTH
- Não sei que parte do corpo eu agarro. O que quero é ser direto e assinalar o caminho mais direto para o leitor mergulhar no livro. Meus começos são rápidos. A chave está em captar a atenção do leitor, para então desenvolver a profundidade.

PERGUNTA - O sr. coloca demais de si mesmo, de sua própria experiência. É uma tendência que vem penetrando na literatura contemporânea de todo lugar. Histórias com vozes poderosas.
ROTH
- Bem, é a voz que nos distingue uns dos outros. Não creio que seja um fenômeno dos últimos anos, e sim uma característica da própria literatura. A voz não é uma técnica. A voz é o que marca a diferença.

PERGUNTA - Como autor que reflete o tempo em que vive, se "A Marca Humana" foi seu livro da era Clinton, "Fantasma Sai de Cena" é o da era Bush. Como será o livro da América de Obama?
ROTH
- Quem sabe? Não podemos prever nada. Em nossas vidas, podemos programar os próximos quatro anos. Na política, os próximos quatro anos são um mistério. Quem poderia ter imaginado, pouco tempo atrás, o desastre em que se transformou o Iraque?

PERGUNTA - O que restará de George W. Bush?
ROTH
- Muito pouco. Muitos danos provocados. Levando-se em conta unicamente os números, ele levou o país à falência. Destruiu nossa reputação moral no mundo. Matou centenas de milhares de iraquianos sem motivo. Bush tem sido um desastre, o pior presidente de nossa história.

PERGUNTA - Talvez a reação contra a era Bush tenha suscitado essa necessidade tão radical de mudanças. É a primeira vez em que um negro [Barack Obama] e uma mulher [Hillary Clinton] disputam a Presidência, com chances de ganhar.
ROTH
- Essa avalanche de pessoas que querem votar nas primárias e de entusiasmo por seus respectivos candidatos é uma reação evidente à era de Bush. É a necessidade de fazer algo, de corrigir a situação.

PERGUNTA - Dez anos atrás, a candidatura de Obama teria sido ficção política.
ROTH
- Sem dúvida. Foi Bobby Kennedy, 40 anos atrás, quem disse que em 50 anos teríamos um presidente negro. Ele chegou mais ou menos perto. Uma das vantagens do modo como as primárias aconteceram é que fizeram nascer esperanças em todo o país com relação aos democratas. Convenceram muitas pessoas. Mas, se Obama vencer esta etapa, ainda terá que superar muitos preconceitos e barreiras na eleição final.

PERGUNTA - Ele está se convertendo num autêntico fenômeno de massas.
ROTH
- Ele é muito preparado, é brilhante. Tem um discurso articulado, possui essa energia contagiante, jovem e poderosa. Ele desperta muita esperança nas pessoas. Os democratas parecem estar encantados em poder votar em alguém assim. Quando eu era criança, recordo que elegemos para representante de classe o único garoto negro que havia na sala, e todos nós nos sentimos tão bem com nossas consciências...

PERGUNTA - Sua infância em Newark, Nova Jersey, esse território mítico...
ROTH
- Sim. Você conhece Newark?

PERGUNTA - Não, mas gostaria.
ROTH
- Então tome cuidado.

PERGUNTA - Verdade? O sr. vai muito para lá?
ROTH
- Não, não vou com freqüência. Dou uma volta por lá de vez em quando, sobretudo se vou escrever sobre o que acontece no bairro. Vou lá para rever velhos amigos, mas é preciso ter cuidado quando se vai a Newark. Há traficantes, drogas.

PERGUNTA - É mais um cenário de "Família Soprano" que dos romances de Philip Roth?
ROTH
- A "Família Soprano" parece um conto para criancinhas, comparada ao que existe de fato. É trágico. São perseguições com tiros, seqüestros, roubos de automóveis até mesmo com crianças dentro deles. É o pão nosso de cada dia. Por isso eu o aconselho: não vá.

PERGUNTA - Onde o sr. vive hoje?
ROTH
- Em minha casa em Connecticut, embora eu passe os invernos aqui, em Nova York, porque não suporto o frio. Estou ficando velho.

PERGUNTA - Enfrentar a velhice -essa é sua obsessão em seus últimos romances e memórias. Não está sendo fácil?
ROTH
- Escrevo sobre isso. O exorcizo. Isso me faz bem. Envelhecer é uma mudança muito dura na vida; não existe nada comparável. Você não imagina como é. Nem quando tem 30 anos, nem aos 40, nem aos 50. O que não poderia passar por sua cabeça é que o tempo acaba, que você já não sabe quantos anos lhe restam, se são cinco, se são seis. Você sabe que já não serão 20. Você chegou ao fundo. E depois, há as perdas. Um amigo meu morreu ontem. Primeiro você perde seus avós; depois, seus pais. Agora perde seus amigos. É muito duro. Além disso tudo, quando o tempo acaba, você vai perdendo suas faculdades. A memória -a possibilidade de perder a memória me apavora.

PERGUNTA - Ainda assim, em "Fantasma Sai de Cena", o sr. identifica vantagens no envelhecimento...
ROTH
- Vantagens? Não, em meu livro não atribuo nenhuma vantagem à velhice.

PERGUNTA - Bem, quando o sr. diz que as últimas grandes respostas esperam ao final.
ROTH
- Ok, mas isso não é uma vantagem. É a vida. Não se iluda a esse respeito.

PERGUNTA - Por que não?
ROTH
- Porque não quero que tenha esperança nenhuma.

PERGUNTA - Ok, não terei. Tentarei, mas não lendo seus livros, então. Talvez não haja esperança nessa maneira de encarar a velhice, mas o sr. confere um sentido a ela.
ROTH
- Isso, sim. Mas porque não nos resta outra alternativa. A velhice é o destino irrevogável de todos nós, exceto para aqueles que não a alcançam. Depois disso nos acontece a morte. Você tem que se conformar com essa idéia. Quando eu estava na casa dos 30, eu refletia muito sobre a morte. Até que um dia eu disse a mim mesmo: "Esqueça isso! Preocupe-se com isso quando você chegar aos 75!". Eu achava que nunca chegaria. Mas cheguei.

PERGUNTA - E o sexo? Como fica para Philip Roth o sexo, esse motor de toda sua literatura, na velhice?
ROTH
- Bem, muitas pessoas perdem o interesse pelo sexo. Para outras, o sexo é tão interessante quanto sempre foi, e ainda outros aceitam que estão fora do jogo.

PERGUNTA - E o sr.?
ROTH
- Eu? (riso). Eu sou daqueles que continuam a ter interesse por isso.

PERGUNTA - Os impulsos não desaparecem?
ROTH
- Eles não têm por quê.

PERGUNTA - Como um escritor tão explícito em relação ao sexo se adapta num país como dirigentes tão puritanos?
ROTH
- Este país é muito grande e tem muitas faces. A face puritana é uma, mas, se você olhar para como as garotas se vestem no verão, não definirá o país como puritano. Os jovens se iniciam no sexo aos 14 ou 15 anos, e a liberdade é enorme. O puritanismo nos EUA é uma ilusão de ótica. Este país é tão hedonista quanto qualquer outro no mundo.

PERGUNTA - Se o sexo define o comportamento humano, um país pode acabar sendo definido pelos esportes. O sr. retrata os EUA também por meio do esporte.
ROTH
- O esporte me interessa como torcedor. Quando eu era criança, gostava muito, jogava beisebol constantemente. Em "Pastoral Americana" há um herói esportista. Em "O Grande Romance Americano" também falo de beisebol, mas o esporte não domina minha vida. Mas não penso que possamos definir um país pelo esporte.


A íntegra deste texto saiu no "El País". Tradução de Clara Allain .


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