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Habemus Obama
Eterno candidato ao Nobel, Philip Roth fala de "Fantasma Sai de Cena", que está sendo lançado no Brasil, de eleições nos EUA e diz que "as telas derrotaram as páginas"
Em 20 anos, ler será hobby de uma minoria; alguns criarão cachorros ou peixes tropicais, e outros lerão
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JESÚS RUIZ MANTILLA
A linguagem é a caixa
de ferramentas comum a todos, da
qual cada um tira o
que precisa. Mas
sempre há algo que diferencia
uns de outros. No caso de Philip Roth, esse diferencial é a
raiva. Esse talvez seja o traço
que melhor define a obra de
um dos escritores vivos que
mais marcou seus contemporâneos nas últimas décadas.
Mas não se trata de uma raiva estéril ou cega. É uma raiva
que contribui, que constrói,
que nos ajuda a viver.
Em seus romances não há
muita esperança: "Será que não
quero que a tenham?", ele próprio comenta, sentado na pequena sala de reuniões da
agência do homem conhecido
como Chacal, que administra a
carreira literária de Roth a partir de um escritório na rua 57,
em Nova York. É um lugar frio,
onde nem o fato de o aquecimento estar ligado à toda consegue fazer o gelo desgrudar
das paredes.
Apenas Philip Roth consegue
fazê-lo, com sua voz um tanto
quanto rouca devido à passagem dos anos -ele já chegou
aos 75.
Há dentro desse desespero
uma vitalidade, uma voz, que se
nega a render-se. É o que ocorre quando se lê "Fantasma Sai
de Cena" ("Exit Ghost", Cia.
das Letras, trad. Paulo
Henriques Britto, 282 págs., R$
42), em que Roth traz de volta
Nathan Zuckerman, um de
seus alter egos mais importantes, como também o foram o
professor David Kepesh e o célebre protagonista do hilário
"O Complexo de Portnoy".
Em seu novo livro, Roth persegue o fantasma de um escritor morto a quem quer dedicar
uma biografia que vai escancarar aspectos escabrosos de sua
vida. Se se tratasse de Roth, isso não seria necessário.
O autor de "Pastoral Americana" compartilhou sua vida
com seus leitores, passo a passo. Desde a infância em Weequahic (bairro histórico da perigosa Newark, em Nova Jersey) até a velhice, vivida entre
Nova York e a casa de campo
em Connecticut, este autor
fundamental, eterno candidato
ao Prêmio Nobel, não deixou
ninguém indiferente.
Nem seus compadres da comunidade judaica, que mais de
uma vez se enfureceram com a
visão crua e impiedosa que
mostra de seu próprio mundo,
nem os cristãos, que em seus livros são obrigados a suportar
desde a blasfêmia até o disparo
constante de uma munição distante da moral e dos costumes
decentes dos mais retrógrados.
Pois seus romances, a não ser
que ele faça ficção política, como em "Complô Contra a
América", jogam no campo da
realidade.
E, se "Casei com um Comunista" foi o romance da era
McCarthy, e "A Marca Humana", a obra-prima da era Clinton, "Fantasma Sai de Cena"
surge com a ambição de ser um
afresco da intra-história da era
Bush -"o pior presidente que
este país já teve", diz Roth.
PERGUNTA - Percebe-se que o sr. é
um escritor que se preocupa com
seus leitores. Tem leitores bons, fiéis
-embora, em "Fantasma Sai de Cena", se queixe de que eles já não
existem. Onde eles estão?
PHILIP ROTH - Onde? Olhando
para as telas de seus computadores, as telas da televisão, dos
cinemas, dos DVDs. Distraídos
por formatos mais divertidos.
As telas nos derrotaram.
PERGUNTA - Como os escritores podem combater essa concorrência
acirrada das telas?
ROTH - Não sei. Não me coloco
essa pergunta seriamente. Apenas posso lhe dizer o que aconteceu: que as telas venceram a
batalha contra as páginas.
PERGUNTA - O sr. não acredita no
tão alardeado "Kindle", o livro eletrônico que acaba de sair nos EUA?
ROTH - Ainda não o vi, mas duvido que tome o lugar de um
objeto como o livro. A solução
não é transpor livros para telas
eletrônicas. Não é isso.
O problema é que o hábito da
leitura desapareceu. Como se,
para ler, precisássemos de uma
antena, e ela tivesse sido cortada. O sinal não chega mais. A
concentração, a solidão, a imaginação que o hábito da leitura
exige... Perdemos a guerra.
Dentro de 20 anos, a leitura será algo restrito a uma seita.
PERGUNTA - E os leitores são raros,
assim como espectros?
ROTH - Não, não. Também não
é isso. Ler será hobby de uma
minoria. Alguns criarão cachorros ou peixes tropicais, e
outros lerão. Como é o caso da
leitura de poesia, hoje. Existem
poetas, eles são publicados,
mas os leitores de poesia são
uma minoria. É isso o que vai
acontecer.
PERGUNTA - Em seu novo livro, o sr.
volta a colocar em campo seu alter
ego Nathan Zuckerman. Ele passou
anos longe de tudo, sozinho, no
campo, trabalhando. O sr. também
renunciou a muitas coisas na vida?
ROTH - Zuckerman está aposentado, leva uma vida de recluso, lendo e escrevendo. Ele
se afastou do mundo por várias
razões. Deixou Nova York depois de receber ameaças e passou a gostar de viver no campo.
PERGUNTA - Essas ameaças são fortes. O sr. enfatiza isso. O racismo
contra judeus nos EUA aumentou
nos últimos anos?
ROTH - Não. É uma constante.
PERGUNTA - Pouco tempo depois
de retornar a Nova York, Zuckerman
já quer ir embora.
ROTH - Ele não suporta mais a
cidade.
PERGUNTA - Muitas coisas o ameaçam -entre elas, a beleza.
ROTH - Bem, ele se rende diante dela, mas ela também o assusta. Como o câncer do qual
sofre, como o passado e a nostalgia dele.
PERGUNTA - Sempre acontece com
seus personagens: essa força narrativa agarra o leitor pelo estômago,
desde o início. O sr. faz isso de propósito? Começar mirando as entranhas mais que o cérebro?
ROTH - Não sei que parte do
corpo eu agarro. O que quero é
ser direto e assinalar o caminho
mais direto para o leitor mergulhar no livro.
Meus começos são rápidos. A
chave está em captar a atenção
do leitor, para então desenvolver a profundidade.
PERGUNTA - O sr. coloca demais de
si mesmo, de sua própria experiência. É uma tendência que vem penetrando na literatura contemporânea
de todo lugar. Histórias com vozes
poderosas.
ROTH - Bem, é a voz que nos
distingue uns dos outros. Não
creio que seja um fenômeno
dos últimos anos, e sim uma característica da própria literatura. A voz não é uma técnica. A
voz é o que marca a diferença.
PERGUNTA - Como autor que reflete o tempo em que vive, se "A Marca
Humana" foi seu livro da era Clinton, "Fantasma Sai de Cena" é o da
era Bush. Como será o livro da América de Obama?
ROTH - Quem sabe? Não podemos prever nada. Em nossas vidas, podemos programar os
próximos quatro anos. Na política, os próximos quatro anos
são um mistério. Quem poderia
ter imaginado, pouco tempo
atrás, o desastre em que se
transformou o Iraque?
PERGUNTA - O que restará de George W. Bush?
ROTH - Muito pouco. Muitos
danos provocados. Levando-se
em conta unicamente os números, ele levou o país à falência.
Destruiu nossa reputação moral no mundo. Matou centenas
de milhares de iraquianos sem
motivo. Bush tem sido um desastre, o pior presidente de
nossa história.
PERGUNTA - Talvez a reação contra
a era Bush tenha suscitado essa necessidade tão radical de mudanças.
É a primeira vez em que um negro
[Barack Obama] e uma mulher [Hillary Clinton] disputam a Presidência, com chances de ganhar.
ROTH - Essa avalanche de pessoas que querem votar nas primárias e de entusiasmo por
seus respectivos candidatos é
uma reação evidente à era de
Bush. É a necessidade de fazer
algo, de corrigir a situação.
PERGUNTA - Dez anos atrás, a candidatura de Obama teria sido ficção
política.
ROTH - Sem dúvida. Foi Bobby
Kennedy, 40 anos atrás, quem
disse que em 50 anos teríamos
um presidente negro. Ele chegou mais ou menos perto.
Uma das vantagens do modo
como as primárias aconteceram é que fizeram nascer esperanças em todo o país com relação aos democratas. Convenceram muitas pessoas.
Mas, se Obama vencer esta
etapa, ainda terá que superar
muitos preconceitos e barreiras na eleição final.
PERGUNTA - Ele está se convertendo num autêntico fenômeno de
massas.
ROTH - Ele é muito preparado,
é brilhante. Tem um discurso
articulado, possui essa energia
contagiante, jovem e poderosa.
Ele desperta muita esperança
nas pessoas. Os democratas parecem estar encantados em poder votar em alguém assim.
Quando eu era criança, recordo que elegemos para representante de classe o único garoto negro que havia na sala, e todos nós nos sentimos tão bem
com nossas consciências...
PERGUNTA - Sua infância em Newark, Nova Jersey, esse território
mítico...
ROTH - Sim. Você conhece Newark?
PERGUNTA - Não, mas gostaria.
ROTH - Então tome cuidado.
PERGUNTA - Verdade? O sr. vai muito para lá?
ROTH - Não, não vou com freqüência. Dou uma volta por lá
de vez em quando, sobretudo se
vou escrever sobre o que acontece no bairro. Vou lá para rever velhos amigos, mas é preciso ter cuidado quando se vai a
Newark. Há traficantes, drogas.
PERGUNTA - É mais um cenário de
"Família Soprano" que dos romances de Philip Roth?
ROTH - A "Família Soprano"
parece um conto para criancinhas, comparada ao que existe
de fato. É trágico. São perseguições com tiros, seqüestros, roubos de automóveis até mesmo
com crianças dentro deles. É o
pão nosso de cada dia. Por isso
eu o aconselho: não vá.
PERGUNTA - Onde o sr. vive hoje?
ROTH - Em minha casa em
Connecticut, embora eu passe
os invernos aqui, em Nova
York, porque não suporto o
frio. Estou ficando velho.
PERGUNTA - Enfrentar a velhice
-essa é sua obsessão em seus últimos romances e memórias. Não está sendo fácil?
ROTH - Escrevo sobre isso. O
exorcizo. Isso me faz bem. Envelhecer é uma mudança muito
dura na vida; não existe nada
comparável. Você não imagina
como é. Nem quando tem 30
anos, nem aos 40, nem aos 50.
O que não poderia passar por
sua cabeça é que o tempo acaba,
que você já não sabe quantos
anos lhe restam, se são cinco, se
são seis. Você sabe que já não
serão 20. Você chegou ao fundo. E depois, há as perdas. Um
amigo meu morreu ontem. Primeiro você perde seus avós; depois, seus pais. Agora perde
seus amigos. É muito duro.
Além disso tudo, quando o
tempo acaba, você vai perdendo suas faculdades. A memória
-a possibilidade de perder a
memória me apavora.
PERGUNTA - Ainda assim, em "Fantasma Sai de Cena", o sr. identifica
vantagens no envelhecimento...
ROTH - Vantagens? Não, em
meu livro não atribuo nenhuma vantagem à velhice.
PERGUNTA - Bem, quando o sr. diz
que as últimas grandes respostas esperam ao final.
ROTH - Ok, mas isso não é uma
vantagem. É a vida. Não se iluda
a esse respeito.
PERGUNTA - Por que não?
ROTH - Porque não quero que
tenha esperança nenhuma.
PERGUNTA - Ok, não terei. Tentarei,
mas não lendo seus livros, então.
Talvez não haja esperança nessa
maneira de encarar a velhice, mas o
sr. confere um sentido a ela.
ROTH - Isso, sim. Mas porque
não nos resta outra alternativa.
A velhice é o destino irrevogável de todos nós, exceto para
aqueles que não a alcançam.
Depois disso nos acontece a
morte. Você tem que se conformar com essa idéia.
Quando eu estava na casa
dos 30, eu refletia muito sobre
a morte. Até que um dia eu disse a mim mesmo: "Esqueça isso! Preocupe-se com isso quando você chegar aos 75!". Eu
achava que nunca chegaria.
Mas cheguei.
PERGUNTA - E o sexo? Como fica
para Philip Roth o sexo, esse motor
de toda sua literatura, na velhice?
ROTH - Bem, muitas pessoas
perdem o interesse pelo sexo.
Para outras, o sexo é tão interessante quanto sempre foi, e
ainda outros aceitam que estão
fora do jogo.
PERGUNTA - E o sr.?
ROTH - Eu? (riso). Eu sou daqueles que continuam a ter interesse por isso.
PERGUNTA - Os impulsos não desaparecem?
ROTH - Eles não têm por quê.
PERGUNTA - Como um escritor tão
explícito em relação ao sexo se
adapta num país como dirigentes
tão puritanos?
ROTH - Este país é muito grande e tem muitas faces. A face
puritana é uma, mas, se você
olhar para como as garotas se
vestem no verão, não definirá o
país como puritano. Os jovens
se iniciam no sexo aos 14 ou 15
anos, e a liberdade é enorme.
O puritanismo nos EUA é
uma ilusão de ótica. Este país é
tão hedonista quanto qualquer
outro no mundo.
PERGUNTA - Se o sexo define o
comportamento humano, um país
pode acabar sendo definido pelos
esportes. O sr. retrata os EUA também por meio do esporte.
ROTH - O esporte me interessa
como torcedor. Quando eu era
criança, gostava muito, jogava
beisebol constantemente. Em
"Pastoral Americana" há um
herói esportista. Em "O Grande Romance Americano" também falo de beisebol, mas o esporte não domina minha vida.
Mas não penso que possamos
definir um país pelo esporte.
A íntegra deste texto saiu no "El País".
Tradução de Clara Allain .
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