São Paulo, domingo, 08 de julho de 2007

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Ponto de Fuga

A ilusão da fronteira

O ministério criado por Sarkozy contrapõe os imigrantes à França e à sua "identidade nacional"; qual seria essa identidade?; se tomarmos como referência a filosofia das Luzes, expressiva de um pensamento que tende para o universal, ela é sua própria negação

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Dois prisioneiros franceses fogem durante a Primeira Guerra Mundial. Um se inquieta: "Ei! Diga, você tem certeza de que é a Suíça lá na frente, hein?". O outro responde: "Sem nenhuma dúvida". O primeiro insiste: "É tudo tão parecido!". Resposta definitiva: "Ah! O que você quer? A natureza não dá bola para isso. Fronteira é coisa que não se vê, é uma invenção dos homens".
Os dois correm dos soldados alemães que os perseguem, prestes a atirar. Mas o sargento interrompe: "Não atirem, já estão na Suíça!".
Assim se conclui "A Grande Ilusão" (1937), mítico filme de Jean Renoir [1894-1979]. O diretor sabe que nacionalismos e identidades são artifícios sustentados por convicções irracionais. Renoir aprendeu com a filosofia das Luzes, contribuição prodigiosa e capital da cultura francesa para todo o mundo, que a humanidade está acima das nações e das diferenças.
Da filosofia das Luzes brotou a revolução de 1789 e a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", em que se lê: "Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos". A liberdade, a igualdade, a fraternidade são naturais. As fronteiras, não.

Hoje
Eleito há pouco [em maio], o presidente dos franceses, Nicolas Sarkozy, congregou ministros e secretários de Estado de maneira hábil. Ele, que diz pertencer a uma "direita descomplexada", incorporou um bom número de mulheres, convidou vários políticos da esquerda.
Como secretária de Estado encarregada dos negócios exteriores e dos direitos do homem nomeou Rama Yade, muito jovem, muito bonita, negra, nascida no Senegal em 1976. Sua família é de religião muçulmana.
Fadela Amara, filha de humilde imigrante argelino, líder da associação feminista "Ni Putes Ni Soumises" (Nem Putas nem Submissas), assume, para surpresa e choque de muitas de suas companheiras, a secretaria de Estado encarregada da política da cidade.
Rachida Dati, também de modesta origem norte-africana, recebe, nada mais, nada menos, do que a pasta da Justiça. São nomeações simbólicas e estratégicas, quando se pensa na situação incandescente dos grandes subúrbios franceses.
Essa habilidade de Sarkozy, que a esquerda, quando estava no poder, não teve, parece demonstrar uma abertura sem preconceitos. Mas revela seus pés de barro por causa de um ministério crucial que o novo presidente inventou.
Proposto durante a campanha eleitoral, foi um dos trunfos que permitiram ao candidato chamar para si eleitores de extrema direita, vinculados a Le Pen [derrotado no primeiro turno da última eleição presidencial], alérgicos à presença dos imigrantes em território francês. Confiado a Brice Hortefeux, homem-forte do presidente, reúne, em sua denominação, as expressões "imigração" e "identidade nacional".

Funil
O novo ministério, criado por Sarkozy, contrapõe os imigrantes à França e à sua "identidade nacional". Qual seria essa identidade? Se tomarmos como referência a filosofia francesa das Luzes, expressiva de um pensamento que tende para o universal, ela é sua própria negação.
A primeira e admirável frase daquele grande manifesto não é "os franceses nascem e permanecem livres e iguais em direitos". Ela fala em "homens", sem diferenças entre si, quaisquer que sejam suas pátrias ou suas culturas.

Filtro
"Imigração" é uma palavra que se refere ao outro, ao diferente de nós. "Identidade nacional", por sua vez, é o "nós" que se põe como referência para o outro. Separa-as, em oposição, uma fronteira imaginária e irracional.

jorgecoli@uol.com.br


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