São Paulo, domingo, 08 de julho de 2007

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+ Sociedade

Aventuras de heróis anônimos

A historiadora americana Natalie Davis explica como modificou o foco da sua disciplina ao reconstruir a vida de pessoas comuns

OLIVIER CHRISTIN

Em 1995, para grande surpresa de seus editores em Harvard, Natalie Zemon Davis iniciou sua história de três mulheres do século 17 (uma judia, uma católica e uma protestante) por um estranho diálogo com as protagonistas.
Davis se dirigia diretamente à protestante Maria Sibylla Merian, à católica Marie de l"Incarnation e à judia Glikl bas Judah Leib, as três atônitas diante do que a escritora havia feito de suas vidas, para dizer: "Sou a autora e vou explicar".
A resposta que recebia era em forma de desafio -"vai ser difícil". Mais adiante no livro, Maria de l'Incarnation expõe ainda mais as questões de escrita de história que o trabalho de Natalie Zemon Davis propõe, e as formas s específicas que a narrativa de destinos individuais assumem em seu trabalho, afirmando: "Tenho a impressão, senhora historiadora, de que é a senhora que procura histórias".

Passaporte confiscado
Davis talvez jamais se tenha exposto tanto quanto nessa acusação brincalhona que uma de suas personagens faz contra ela -a de que ela cria histórias, procura aventuras, persegue "sob variados céus" alguns indivíduos a um só tempo banais e repletos de recursos.
Porque essa especialista nos séculos 16 e 17 e veterana professora da Universidade Princeton com certeza pode ser classificada como aventureira.
Nascida em 1928, descendente de uma família de imigrantes judeus que preservaram as memórias de seu passado, primeira mulher de sua família a concluir os estudos superiores, pioneira na conquista feminina de posições acadêmicas nos EUA, militante feminista e pacifista que foi vítima, com seu marido, da caça às bruxas da era de McCarthy, sua vida nunca deixou de informar e nutrir suas escolhas intelectuais.
"Meus primeiros trabalhos tomavam por base as interrogações clássicas da história social", recorda. Tratavam de grupos, especialmente operários gráficos, das relações de classe, das relações entre inovações econômicas do mundo moderno (as impressoras de alta velocidade), formas de protesto social (greves, organizações de ajuda mútua entre trabalhadores) e a revolução religiosa (a Reforma protestante).
Mas ela acrescenta que, em meio a esses objetos de pesquisa herdados em parte de sua leitura de Max Weber ou Henri Hauser, já surgia o interesse em se tornar "mais próxima das sociedades e comunidades do passado e, talvez, mais próxima das pessoas que as compunham".
Novos protagonistas históricos começaram a emergir da pena da historiadora, por muitos anos proibida de consultar em pessoa os arquivos franceses devido ao confisco de seu passaporte pelo Serviço Federal de Investigações dos EUA, e obrigada a solicitar outros textos -conservados em bibliotecas norte-americanas-, a folhear sistematicamente obras impressas e a ler os folcloristas e os eruditos do século 19.

Novos domínios
Sempre grupos, sempre histórias de luta, mas dessa vez não são os elementos tradicionais da história social que se tornaram temas merecedores de sua atenção. Mas, sim, mulheres protestantes, jovens celibatários e suas instituições peculiares, os pobres ou a iconoclastia e as práticas de contestação que são parte integral dos ritos de Carnaval.
Recusando o desprezo ao mundo e o radicalismo formal, Davis procurou, desde sempre, conjugar envolvimentos políticos e preocupações metodológicas.
Por exemplo, quando deu início a um diálogo com antropólogos e sociólogos como Lévi-Strauss, Mary Douglas, Clifford Geertz e, recentemente, Dipesh Chakrabarty, para trabalhos sobre o pensamento pós-colonial.
Seu "estilo", ela diz hoje, nunca foi o de retornar constantemente a um mesmo assunto, mas, sim, investir em novos domínios, como em sua "A History of Women in Western Europe" [História das Mulheres na Europa Ocidental] ou no estudo da escravatura, que ela invoca em especial em um trabalho chamado "Slaves on the Screen - Film and Historical Vision" [Escravos na Tela - Filme e Visão Histórica], publicado em 2000, ou ainda nos pedidos de perdão encaminhados por condenados ao rei.
Mas sempre preservou a vontade de escrever histórias comuns sobre pessoas comuns, que ela queria transformar em protagonistas e sujeitos históricos.
Com outros historiadores, Davis contribuiu de maneira decisiva para a transição de uma história social de classes e grupos a uma antropologia histórica atenta aos protagonistas individuais, sem abandonar suas ambições iniciais e sem alegar que a história social é impossível.
Embasando essa profunda renovação dos objetos de trabalho histórico, existem duas questões.
Verdadeiros sujeitos
Para começar, ela pretendia restituir aos indivíduos -que em geral passam sem distinção- o status de verdadeiros sujeitos históricos.
Cada qual em seu lugar, os modestos heróis sobre os quais ela pesquisou agem em seus universos. Mobilizam-se para proteger aquilo que acreditam que sejam seus interesses, para defender aquilo que têm como convicção -da mesma forma que Davis, eles ocasionalmente se provam capazes de "refazer o mundo".
Descrever o destino deles e o modo como eles o atingem não envolve, porém, renunciar a todas as formas passadas de escrita do passado, com a ilusão biográfica e a ilusão do sujeito sempre consciente daquilo que faz.
O que Davis pretende é demonstrar aquilo que um operário gráfico, um escravo do Suriname, uma mulher judia culta, um jovem muçulmano letrado capturado e conduzido a Roma podiam fazer de suas vidas e revelar o jogo complexo entre as forças do mundo e as aspirações dos homens.
Para isso, como diz Davis, "são meus personagens que precisam de mim".
Mas a segunda questão talvez seja ainda mais crucial, enfatiza a historiadora. "No reverso de todos os discursos que invocam identidades puras e enraizadas para todos em termos de nação, classe, religião ou sexo, desejo mostrar as identidades que são criadas, formadas, por inumeráveis negociações em razão de situações e de relações de força."
Ao tomar por objeto de pesquisa personagens que evoluem entre diferentes universos culturais ou que se vêem forçados a mudar de aparência, situação ou idioma pelos acontecimentos, a escrita da história pode enfim romper a posição central que os europeus conferem a eles mesmos em seus estudos históricos.
Ao narrar o destino agrilhoado de Jean Léon, o Africano, Davis pretende também denunciar a perigosa ilusão do "messianismo conservador de George W. Bush" e testemunhar, por intermédio de sua protagonista, "a possibilidade de comunicação e curiosidade em um mundo dividido pela violência".

Impostura no século 16
Com exceção deste último livro, seu interesse em abordar de preferência os atores comuns da história tem sua melhor expressão nas aventuras de Martin Guerre.
Esse caso de impostura, levado ao cinema por Daniel Vigne em 1982 em um projeto no qual Davis colaborou, se tornou célebre: no começo do século 16, em uma aldeia do sul da França, um homem conseguiu se fazer passar por um aldeão desaparecido há muitos anos, Martin Guerre, e tomar seu lugar.
Só o retorno do verdadeiro Martin Guerre revelou a trapaça.
Que o impostor, ao que indicam as fontes mais confiáveis, tenha contado com a cumplicidade da mulher de Guerre não diminui em nada seu desempenho.
Davis diz que o sucesso inicial da trapaça é um convite a considerar de modo menos nítido a imagem clássica de identidades sociais definidas e definitivas.
É claro que, na sociedade do século 16, as condições eram bastante diferentes, mas o papel do historiador, para aquela época como agora, tem de ser "buscar sempre as questões de fabricação do eu, de construção do íntimo, talvez mesmo de impostura", ou seja, reencontrar o espaço da negociação, do ilusionismo, da imaginação dos homens e mulheres do passado.
É um imenso desafio. Como relatar, na escrita da história erudita, a complexidade e a versatilidade dessas estratégias íntimas, principalmente quando é tão comum que faltem fontes?
Como localizar essa "construção do eu" que os protagonistas muitas vezes não têm interesse em revelar? As dificuldades que esse objetivo impõe ao trabalho do historiador explicam a importância que Davis confere ao cinema e à ficção literária.
"O cinema talvez seja um procedimento eficaz de escrutínio do passado", porque ele se baseia, exatamente, no desempenho de atores e apresenta as questões mais triviais, exatamente aquelas que os historiadores sabem ser as mais delicadas.
Como as pessoas se portavam, se falavam, se amavam, no século 16, em Roma, em Lyon ou em uma aldeia? Como se endereçavam a seus cônjuges, vizinhos ou escravos? Como escondiam o que eram ou aquilo em que acreditavam? É, ao propor essas questões, que Davis tem muito a dizer sobre o nosso mundo.

Este texto foi publicado no "Le Monde". Tradução de Paulo Migliacci.


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