São Paulo, domingo, 08 de julho de 2007

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Satã vai ao divã

"Você termina por levar consigo aquele personagem do palco, torna-se o personagem, vive por meio dele"

BARBARA ELLEN

Em uma tarde agradável de domingo, estou em um elegante hotel de Londres conversando sobre envelhecimento com o "Príncipe das Trevas".
Ozzy Osbourne, que ganhou fama como vocalista do Black Sabbath e abriu caminho para o heavy metal, ao longo do caminho tentou estrangular a mulher, terminou por abandonar as drogas e diz não gostar de morcegos.
O vocalista fará 60 anos no final do ano que vem e não se incomoda com isso. Não muito.
"Havia aquela história de que Ozzy Osbourne se recusa a envelhecer", diz Ozzy, se inclinando em minha direção no sofá aconchegante que ele ocupa. "Mas não tenho escolha. Já não tenho 21 anos". Em sua cabeça, que idade tem? "Cerca de três minutos depois que minha mãe transou com meu pai." Quanto tempo durou sua adolescência? "Deve acabar por volta de 2083, calculo."
Para ele, essa é a essência do rock. "Quantos outros empregos você conhece em que as pessoas dizem que o dia vai ser ótimo porque o sujeito está completamente descontrolado?"
Ozzy sorri ao evocar as lembranças. "Eu era o cara que os pais adoravam odiar. Diziam que era melhor trancar filhas, cachorros, morcegos, porque Ozzy Osbourne estava chegando à cidade." E agora? "Agora eu não bebo mais, não uso mais drogas, não fumo mais cigarros. Sou só um tedioso astro do rock de meia-idade."
E o rótulo "Príncipe das Trevas", o que ele acha disso hoje em dia? Ozzy dá de ombros. "Melhor do que ser chamado de bundão."
Nossa conversa tinha por tema o mais recente álbum de Osbourne, "Black Rain" [Chuva Negra, que está saindo no Brasil pela SonyBMG]. Os fãs podem estar seguros de que o estilo é puro Príncipe das Trevas -riffs acelerados, ruidosos, guitarras capazes de limpar os dentes do demônio, refrões que causam vibrações alarmantes nos ossos.
E tudo isso com o uivo niilista que é a marca registrada de Ozzy.
Como no caso da maioria dos trabalhos de Osbourne, há algo de adoravelmente adolescente em "Black Rain", apesar de o disco tratar de alguns temas surpreendentemente adultos.
No momento, porém, o que me preocupa mais é descobrir com que Ozzy vou cruzar a porta.
O drogado maluco e tarado por "groupies" da era do Black Sabbath? O drogado igualmente maluco e tarado por "groupies" da era de sua carreira solo, famoso por arrancar a cabeça de um morcego com uma mordida, em pleno palco? O Ozzy que retomou sua carreira com o Ozzfest (festival de heavy metal lançado por Osbourne em 1996, quando o festival itinerante Lollapalooza se recusou a admiti-lo como parte de sua turnê)? O Ozzy que passou cinco dias se embriagando de vodca e depois tentou estrangular a mulher, Sharon, jurada no programa "X Factor"? Ou o Ozzy que ganhou lugar no Hall da Fama, tem uma estrela na calçada do Hollywood Boulevard, foi convidado a visitar a Casa Branca e se tornou uma espécie de tesouro internacional?

Vida íntima
Ou talvez seja o Ozzy de "The Osbournes", o infame programa da MTV que acompanhava a vida de sua família em Beverly Hills e revitalizou a marca Ozzy, embora também tenha feito com que os Osbourne ganhassem o apelido "família monstro do rock" e fossem definidos como "a família mais disfuncional dos EUA".
No programa, boa parte da diversão era acompanhar o Príncipe das Trevas caminhando sem rumo, em um roupão de banho, com a cara amarfanhada e o cabelo encardido. O astro do rock acabado em sua mais exemplar encarnação.
Mas não é esse o Ozzy que entra na sala, diz um "alô" amistoso em seu alegre sotaque britânico e começa a me contar sobre a festa de aniversário de Elton John e Sam Taylor-Wood a que ele e Sharon compareceram na noite anterior.
Ele já não gosta muito desses eventos ("não tenho porra nenhuma para dizer"), mas diz que ficou emocionado por estar em uma sala "com todos aqueles superastros, Paul McCartney e a família, todo mundo". Era uma festa a fantasia. Qual era a fantasia de Ozzy? "Eu mesmo."
Ozzy me olha com firmeza por trás de seus característicos óculos de lentes azuladas, ostentando jóias nos braços e tatuagens pelo corpo todo.
Ele já é avô, graças aos filhos de seu primeiro casamento ("não sou um avô Príncipe das Trevas. Eles me chamam de vovô Ozzy").
Mas a única indicação real dos excessos que praticou com as drogas é um bizarro ruído que ele emite ao começar e encerrar suas sentenças, uma espécie de ronco, como se ele tivesse acabado de despertar de um sono profundo ou tivesse acabado de receber uma injeção que vai provocar esse tipo de sono.
"Black Rain" contém uma balada que parece ser um tributo à luta de Sharon contra o câncer de colo de útero.
Outras faixas parecem surpreendentemente politizadas.
Há canções chamadas "God Bless the Almighty Dollar" [Deus Abençoe o Todo-Poderoso Dólar] e "Civilise the Universe" [Civilize o Universo], e a canção-título, que cita a "chuva negra" que caiu depois do bombardeio nuclear a Hiroshima, parece tratar do Iraque, com uma letra que diz "os políticos me confundem/ veja o número de mortos subir/ por que as crianças estão marchando para o deserto para morrer?".
Ozzy se opõe à guerra? "A questão é, antes, que não compreendo a guerra", afirma. "Se você está de um lado e eu do outro, e você e eu terminamos mortos, nós dois perdemos. Eu imaginava que as pessoas tivessem aprendido, que a humanidade tivesse aprendido."
Ele faz um gesto com a mão, como que empurrando o assunto para longe. "Mas não vou me transformar num desses ecologistas escrotos que circulam com cartazes pedindo o fim da guerra. Não é a minha cara."
Nos últimos dois anos, faz questão, quando está nos EUA, de visitar soldados feridos no Iraque. "Você vê esses caras no hospital, e é horrível. Sem braços, sem pernas, sem olhos. Melhor que tivessem morrido."
Acredita que seja dever do artista comentar sobre a era que vive? Ele dá de ombros e resmunga alguma coisa como "os artistas devem fazer o que quiserem".
"Black Rain" não é só o primeiro álbum de estúdio de Ozzy em seis anos como o primeiro em toda a sua carreira que ele gravou completamente sóbrio.
"Eu costumava acreditar que bebidas e drogas ajudavam a criar o clima para uma canção. Maior bobagem."
Ozzy, que faz terapia e participa de grupos de apoio para dependentes de álcool, está sóbrio há dois anos ("mais ou menos") e só usa medicamentos "oficiais".
Isso envolve pílulas para sua doença (não mal de Parkinson, ao contrário do que afirmam algumas reportagens, mas síndrome parkinsoniana, que causa os tremores de que ele sofre), pílulas para combater os efeitos colaterais das primeiras e ainda mais pílulas para combater os efeitos colaterais do segundo grupo de medicamentos.
Ele espera largar esses remédios todos, também. "É difícil lembrar de tudo -você termina enlouquecendo!"
Depois de tudo que ele passou, qual é a sua opinião sobre essa recente sobriedade -acha que vai durar? Ozzy diz, solenemente, que "no momento, não quero usar nada; amanhã, quem sabe, mas não por enquanto". Depois, com um brilho sacana no olhar protegido pelas lentes azuladas, emenda: "Mas quando acontecer, você será a primeira a saber".

Dislexia na infância
John Michael Osbourne nasceu em 1948, o quarto dos seis filhos do operário Jack e de Lillian, que trabalhava no comércio de automóveis.
O casal vivia em Aston, em Birmingham, e Ozzy sempre diz que suas primeiras lembranças envolvem medo. "Nunca me senti confortável comigo mesmo. Por algum motivo, sou uma alma assustada." Por que vivia assustado? "Não sei, mas já gastei uma montanha de dinheiro tentando descobrir."
Continua a ser aquela criança assustada? "Você está ficando igualzinha ao meu terapeuta", resmunga.
A escola foi um fracasso completo (acredita-se, hoje, que Ozzy sofresse de síndrome de déficit de atenção e dislexia, dois males que não foram diagnosticados).
Na adolescência, tinha pensamentos mórbidos sobre se enforcar, assassinar sua mãe e incendiar sua irmã.
Também esfaqueava os gatos do bairro, e seu primeiro emprego foi em um matadouro.
Pergunto-lhe se percebe que, ao menos em teoria, apresentava o clássico perfil psicológico de um futuro assassino serial. "Tem razão", diz, parecendo chocado. "Nunca tinha pensado nisso."
Uma coisa que adorava era música. Continua a se lembrar vividamente dos dias em que ficava sentado na soleira da porta em sua casa, pensando sobre os Beatles.
"Eu passava horas sonhando de olhos abertos -não seria ótimo se Paul McCartney se casasse com minha irmã?", pergunta.
"Você sabe, quando aparece uma canção no rádio e você se lembra da menina com que saía ou algo assim. A canção faz com que você recorde o cheiro, a aura, de uma era. Isso foi uma parte muito esclarecedora de minha vida, e os Beatles tiveram um grande papel nisso. Eles colocaram meus sonhos em movimento".
Ozzy sorri, com um ar meditativo. "E, como pulei disso para o Black Sabbath, não faço idéia".

Contra o "flower power"
Ozzy entrou para o Black Sabbath em 1969. No começo eles tocavam jazz e blues, mas se tornaram a primeira banda de "heavy metal" depois de tropeçarem na idéia de que seria interessante assustar as pessoas.
Uma coisa pela qual os primeiros discos do Black Sabbath levam crédito é por terem aniquilado o "flower power". "Nós morávamos em Birmingham", diz Ozzy. "Chovia sem parar. Não tínhamos dinheiro para comprar sapatos. E eu pensava que aquela merda ia durar o resto da minha vida. Aí, ligava o rádio e alguém vinha com (Ozzy canta) "if you go to San Francisco, be sure to wear a flower in your hair". Eu pensava que aquilo era a maior besteira, e a única flor que eu usaria estaria no meu túmulo."
Apesar de ter sido detonado ou ignorado pela maioria dos críticos (uma das notáveis exceções foi o norte-americano Lester Bangs), o Sabbath lançou nove álbuns nos anos 70, vendendo milhões de discos e invadindo o mercado norte-americano.
Canções como "Paranoid", "Iron Man" e "Into the Void" tinham algo a dizer aos jovens niilistas e desesperançados, e essa sensação ainda perdura.
Com a passagem do tempo, Ozzy aprecia a reavaliação crítica que o trabalho do Sabbath vem recebendo -a banda foi eleita para o Hall da Fama do rock.
"Nos anos 70, com o Sabbath, se eu tivesse uma bola de cristal que me dissesse que, 20 anos depois e no século seguinte, nós só receberíamos elogios, eu não teria acreditado. E, aliás, não acreditei por muito tempo. Achava que as pessoas estavam zombando."
E quanto a todas as controvérsias? Além dos excessos bem à maneira do "Spinal Tap" (riffs a trilhões de decibéis, cenários exagerados e cafonas para os shows), o Sabbath, no começo da carreira, fingia ser adepto do satanismo. "Nós cantávamos a respeito e nem imaginávamos que fosse verdade", diz Ozzy.
Ele também enfureceu o público norte-americano ao urinar, e de vestido. Depois, uma de suas canções, "Suicide Solution" [Solução Suicida], foi acusada de encorajar os ouvintes ao suicídio.
"Fui processado porque minhas músicas supostamente continham mensagens subliminares, frases que podiam ser ouvidas caso o disco fosse girado na direção oposta." Ozzy parece indignado. "Eu mal consigo gravar as coisas na ordem certa".
Ele balança a cabeça, com descrença. "Quero dizer, não seria muito bom para a minha carreira se todo mundo que compra meus discos se suicidasse, não é?"

Sexo e drogas
Ozzy diz agora que tudo que queria fazer era farrear no palco.
"Meu trabalho, se é que se pode empregar a expressão, era propiciar diversão à garotada." E havia também a diversão fora do palco, ou seja, sexo e drogas, o que Ozzy designa como "butim de guerra". Ele certa vez resumiu sua vida em turnê com a frase "um pacote de maconha, um grama de cocaína e todas as meninas que eu conseguisse comer".
Em retrospecto, o que o interessava mais, drogas ou mulheres? "As duas coisas. Mas, no fim, as mulheres corriam de mim, porque estava sempre chapado."
"No meu caso", diz Ozzy mais tarde, "quanto mais comprida a viagem de ônibus, pior eu ficava. Eu bebia até cair, cheirava cocaína, tomava LSD, qualquer coisa".
Não consigo imaginar como ele seria sob efeito do ácido. "Você não ia querer ver. Havia uns cavalos no campo, e eles conversavam comigo."
Mesmo quando o Sabbath se cansou de seus excessos e o demitiu, Ozzy, chocado e combalido, ainda assim não desistiu. Há histórias sobre sua carreira solo, como a de um tombo que ele tomou no chuveiro, quebrando a perna. Mas estava tão fora de si com as drogas que demorou dias a perceber o que acontecera.
Outra dessas lendas conta que ele cafungou uma fileira de formigas, em uma festa com a banda Mötley Crüe.
Mas foi o "incidente do morcego" que realmente conquistou lugar na imaginação do público.
Ozzy achou que o animal fosse um brinquedo de pelúcia, quando ele foi arremessado ao palco, e arrancou sua cabeça com uma mordida; terminou no hospital, tomando uma injeção para se prevenir contra a hidrofobia.
Ele sabia o que ele estava fazendo? "Bem, eu sabia, mas o maldito morcego, não."
E o incidente de 1989, quando perdeu completamente o controle e tentou estrangular Sharon?
Ela era sua mulher, mãe de seus filhos e também sua empresária, desde que o Sabbath o havia demitido, dez anos antes.
Agora Ozzy diz que se envergonha das coisas pelas quais fez que Sharon passasse. "Eu estava na terapia um dia e o analista disse que eu devia me imaginar como a pessoa sóbria e a minha mulher como alcoólatra e viciada em drogas, fodendo um monte de caras. "Ela está caída no chão, se mijou toda, destruiu a casa -o que você acha que você faria? Você agüentaria 25 anos?"." E eu respondi que não. Ele rebateu: "Bem, então aprenda a lição"."
A família Osbourne divide seu tempo entre o condado de Buckingham e Beverly Hills. Foi em casa, em Buckinghamshire, em 2003, que Ozzy sofreu seu horrível acidente de quadriciclo, que lhe causou ferimentos sérios e serviu como novo alerta.
"Acho que o acidente acionou o parafuso da sensatez na minha cabeça e eu comecei a pensar que depois daquilo viria a morte, a desgraça ou o divórcio."
Um ano antes, Sharon descobriu que tinha câncer no colo do útero, e isso o abalou.
O câncer de Sharon, bem como muitos outros aspectos da vida privada da família, terminou sendo registrado em "The Osbournes", um grande sucesso para a MTV em suas três temporadas (o programa terminou em 2005).
Hoje, Ozzy parece ter sentimentos contraditórios a respeito da experiência. "As pessoas achavam que aquilo tudo fosse roteirizado, mas não era. Eles ficavam lá, com cinco câmeras apontando para todo lado, esperando que alguém tropeçasse em um cocô de cachorro ou algo assim."
Embora ele acredite que o programa não tenha sido a causa dos problemas subseqüentes de seus filhos com as drogas (Kelly e Jack passaram por reabilitação), Ozzy suspeita que possa ter "agravado" a situação.

Ursinho de pelúcia
Qual foi o efeito de "The Osbournes" para Ozzy? Ele se irrita por ter deixado de ser o Príncipe das Trevas e se transformado no ursinho de pelúcia favorito dos EUA? Ozzy sorri com ironia.
"Um dia, meu filho e eu estávamos discutindo, e ele perguntou se me fazia diferença que as pessoas rissem de mim ou comigo. E eu disse que não fazia nenhuma, desde que elas rissem. Mas na verdade eu estava pensando que não gostaria de saber de verdade que estão rindo de mim."
Pouco antes de deixar o hotel, revela que, talvez porque nunca tenha aprendido a tocar um instrumento, sempre imaginou que parte de seu trabalho fosse agir como "o palhaço louco".
"Fazer coisas absurdas. Uma noite, em Hamburgo, pintei o rosto de púrpura e não percebi que era tinta indelével. Por isso, tive de andar pela cidade por três dias com a cara púrpura."
E tudo isso era divertido, diz. "Exceto que você termina por levar aquele personagem do palco com você e se torna o personagem, vive por intermédio do personagem." Certo.
Mas será que Ozzy realmente lamenta alguma coisa sobre os momentos mais alucinados de seu passado -as drogas, a loucura, o tumulto? "Todo mundo tem esqueletos no armário, coisas sobre as quais pensa que, se alguém descobrir, estamos ferrados."
Acredita em destino? "Sim." Em Deus? "Acredito em um poder superior." Como o budismo? "Não. Experimentei meditação transcendental uma vez, mas me entediei e fumei um baseado."
"É como eu disse um dia desses", ele continua. "Tudo que aconteceu foi uma viagem impressionante, para mim. Consigo me lembrar claramente do que sentia sentado à soleira da porta em Aston, sonhando ser um Beatle. E agora estou aqui, aos 58, e na festa de Elton."

A íntegra deste texto saiu no "Observer". Tradução de Paulo Migliacci.


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