São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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+ cultura

O professor de história da Universidade de São Paulo explica como a distinção entre amadorismo e profissionalismo pressupõe o confronto de classes sociais

O processo civilizador do esporte - Flavio de Campos

Adriano Schwartz
especial para a Folha

Flavio de Campos é professor do departamento de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e um dos responsáveis pela disciplina de pós-graduação "História Sociocultural do Futebol - Impulso Lúdico, Composição e Significações". Autor da série didática "O Jogo da História" (ed. Moderna), ele discute na entrevista a seguir as mudanças por que passou a relação entre os esportes e as sociedades, principalmente nos últimos 200 anos, pois, como ele afirma, "no século 19, os esportes pressupunham o combate entre iguais. Eram disputas formais contra antagonistas considerados à altura em termos sociais".
 
Quais são os principais significados sociais da prática esportiva ao longo da história?
Em primeiro lugar, devemos diferenciar jogos de esportes. Acompanho os estudiosos que identificam uma transformação nas atividades lúdicas na passagem do século 18 para o 19. No processo de emergência da sociedade industrial, determinadas modalidades passaram a ser regulamentadas e padronizadas. Transcorreu o que Norbert Elias definiu como processo de esportivização, com regras mais rígidas que visavam a estabelecer certa igualdade de oportunidades aos concorrentes e maior controle sobre o limite da violência e o uso da força física.
Para Elias [1897-1990], tratava-se de um avanço no processo de civilização, comparável à "curialização" dos guerreiros medievais. Para Johan Huizinga [1872-1945, historiador holandês, autor do clássico "O Outono da Idade Média"], uma profanação, um desequilíbrio, pois o aparecimento do esporte teria significado a perda da espontaneidade e da liberdade do jogo. No momento do seu nascedouro, os esportes representaram, principalmente, a afirmação de um conjunto de práticas que se organizavam em escala mundial, mas vedado às classes subalternas por meio da defesa do amadorismo.

Além do condicionamento dos corpos e do aperfeiçoamento das atividades físicas, existe uma questão social vinculada ao surgimento dos esportes? Como isso irá se resolver posteriormente?
Sem dúvida. As fronteiras entre o amadorismo e o profissionalismo eram também divisas sociais. Se tomarmos os Jogos Olímpicos na era moderna, poderemos perceber que essa questão se arrastou desde a primeira edição, em 1896, atravessou toda a Guerra Fria e só se resolveu plenamente em Atlanta, em 1996. No século 19, os esportes pressupunham o combate entre iguais. Eram disputas formais contra antagonistas considerados à altura em termos sociais. Nas primeiras edições dos Jogos, o discurso oficial sustentava que o profissionalismo era o principal inimigo dos esportes.
No centenário dos Jogos da era moderna, significativamente, Atenas foi preterida por Atlanta, sede de poderosos patrocinadores dos Jogos, como a Coca-Cola e a rede CNN. Quatro anos antes, em Barcelona, havia sido permitida a presença de atletas profissionais em todas as modalidades. A bandeira do amadorismo não sobreviveu à nova ordem mundial. E o bilionário "dream team" [de basquete dos EUA] pôde se exibir nas quadras olímpicas.

Em que medida, historicamente, um acontecimento como os Jogos Olímpicos tem o poder de mobilizar as pessoas ou criar nelas percepções distintas dos fatos de sua época?
Os Jogos e os esportes criam realidades sedutoras. A rigor, apresentam tempos, espaços e valores específicos que não coincidem, necessariamente, com a vida cotidiana. Se por um lado provocam uma suspensão temporária da rotina social, de outro se tornam janelas reveladoras das características e tensões de uma dada sociedade num determinado momento histórico. Devemos afastar o risco de análises anacrônicas e comparações descabidas. Nesse sentido, os jogos e os esportes devem ser compreendidos nas suas articulações históricas, e não apenas pelos seus significados intrínsecos descolados do seu meio social.
Cada edição dos Jogos traz à tona um conjunto de tensões coletivas. Berlim, em 1936, com o regime nazista e as perspectivas de superioridade racial colocadas em disputa numa corrida de velocidade, vencida por um atleta negro. Tóquio, em 1964, e sua emocionante cerimônia de abertura, quando a pira olímpica foi acesa por um jovem sobrevivente do terror atômico de Hiroshima. México, em 1968, quando, a dez dias do início dos Jogos, cerca de 10 mil estudantes organizaram as suas barricadas, em sintonia com o que ocorria em outras partes do mundo. Os fantasmas dos atentados de Munique, em 1972, rondam agora Atenas, como um pesadelo para muitos que acreditam ou pretendem propalar uma era do terror.
As percepções a respeito deste nosso tempo podem ser distintas, mas todos ficarão atentos aos rumores de atentados na vila olímpica, à participação da pequena delegação da Palestina e a possíveis manifestações políticas antiglobalização.

Até que ponto é válido comparar um jogo à guerra?
Evidentemente, depende do jogo. Aliás, a designação no singular pode dispor o problema em falso. É preciso apresentar os jogos numa perspectiva diversificada. Os jogos estabelecem entre si uma intrincada rede de parecenças e parentescos. Avançar sobre o território adversário, conquistar posições, inibir seus movimentos, arremessar uma bola e até golpeá-lo são lances de diversas modalidades lúdicas que lembram a guerra. Isso é válido, também, para modalidades disputadas por um número maior de concorrentes, como as corridas, as competições de tiro, as provas de atletismo e natação.
Nesses casos, indivíduos assumem o papel da representação de coletividades em disputa pelo melhor desempenho. Mas deve-se considerar que a característica de combate será acentuada de acordo com o grau das rivalidades sociais ou nacionais dos competidores.

Às vésperas do início de mais uma Olimpíada, gostaria que o sr. falasse brevemente sobre o impacto desse evento numa sociedade conturbada como a brasileira, do ponto de vista sociológico/antropológico.
Em primeiro lugar é importante destacar o fascínio e o poder de absorção dos Jogos Olímpicos (e também da Copa do Mundo de futebol) em milhões de homens e mulheres espalhados pelos quatro cantos do planeta.
Nenhum outro elemento cultural se equipara à capacidade de mobilização característica desses megaeventos esportivos. A sociedade brasileira não foge à regra nem à rede que dá sustentação e visibilidade a esses espetáculos. Dentre as muitas conturbações específicas do Brasil, salta aos olhos esse nacionalismo de ocasião, embalado pelas coberturas televisivas ufanistas que reforçam laços de coesão e unidade e que acabam por transbordar das praças esportivas.
É como se os esportes oferecessem a matéria-prima ou o combustível para expressões nacionalistas, paradoxalmente, num contexto de acelerada padronização cultural e comportamental. A "Pátria Olímpica" -como serão saudados os atletas- e a corrente de torcedores brasileiros -que formarão uma espécie de força psíquica propulsora- farão emergir recalques, projeções, estigmas (sobretudo com relação aos adversários) e compensações diante das vitórias e derrotas que se sucederão.

O esporte é uma questão importante academicamente? Se sim, está sendo tratado de modo devido?
Diante da dimensão social que os esportes e os jogos assumiram, seja na nossa sociedade contemporânea, seja em sociedades pré-industriais, parece evidente que se trata de uma questão de extraordinária importância para a pesquisa acadêmica. Uma chave interpretativa extremamente fecunda para a análise das mais diversas formações sociais. Particularmente, parece-me difícil compreender a sociedade brasileira negligenciando o papel desempenhado pelo futebol em suas mais diversas expressões ao longo dos últimos cem anos. Mas a questão dos jogos e dos esportes é um desafio acadêmico a ser enfrentado, porque ainda há uma certa resistência, uma certa desconfiança com relação à pertinência desse tipo de pesquisa, e muito que aperfeiçoar do ponto de vista metodológico.
Mesmo assim, é perceptível uma tendência crescente de cursos, teses, dissertações e projetos voltados a essa direção. Cabe aos pesquisadores ocuparem melhor o campo dos jogos.


Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo, no prelo).


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