São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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Ponto de fuga

Belas trapaças

Jorge Coli
especial para a Folha

Na mostra sobre Botticelli e Filippino Lippi, que ocorre em Florença, no palácio Strozzi, e que registra, enquanto escrevo, um imponente sucesso de público, encontra-se exposto, na minha opinião, um falso -e talvez dois." A mostra em questão foi comentada nesta coluna, domingo passado. É uma esplêndida manifestação de arte. Mas teria incluído dois falsos, segundo Giorgio Bonsanti, especialista indiscutível, professor em instituições internacionais de primeiro plano, diretor do Museu do convento de São Marcos, em Florença. Comandou, entre outras, a restauração dos afrescos de Fra Angelico naquele mosteiro, e a do "Tondo Doni", de Michelangelo, na Galeria degli Uffizzi.
A frase citada abre o ensaio "Como Se Reconhece um Falso", no catálogo, sério e rigoroso, de uma outra exposição, apresentada em Siena: "Falsi d'Autore", falsos de autor. Reúne obras que vão do século 13 ao 15 e que possuem o ponto comum de terem sido feitas, todas, do final do século 19 a meados do século 20. Muitas, compradas por importantes museus e colecionadores, enganaram peritos renomados.
A exposição se organiza à volta de uma personalidade maior, Icilio Federico Joni, falsário de Siena, e agrega obras de seus contemporâneos, também fantásticos trapaceiros. Em 1927, o insigne historiador da arte Pope-Hennessy descobria e caía de joelhos diante de um relevo em mármore firmado por Donatello, que um antiquário de Londres adquirira por milhões. É, de fato, deslumbrante. Meses depois, o verdadeiro autor, Alceo Dossena, denunciava o engano, porque ele próprio recebera uma quantia ínfima no negócio.

Trama - Há cem anos, a Itália, e Siena sobretudo, alimentava grande parte do mercado antiquário: as artes da Idade Média e do primeiro Renascimento estavam então na moda. Restauradores completavam generosamente obras fragmentárias. Executavam cópias de quadros sob encomenda, criavam estátuas à maneira antiga para ornar fachadas e jardins.
Que muitas fossem apresentadas como originais autênticos era um passo, irresistível pelo lucro que proporcionavam. As redes cúmplices dos marchands, hábeis em iludir amadores e peritos, ampliavam-se. No mundo turvo do mercado artístico, a fé desses atribuidores nem sempre é sincera. O mais célebre de todos, Bernard Berenson, comprou, em 1899, velhas e venerandas pinturas. Descobriu depois que eram recentes, obra do falsário Joni. Isso não impediu que Berenson as leiloasse, em Londres, como legítimas.

Marca - Giorgio Bonsanti ensina, no catálogo da mostra "Falsi d'Autore", que os anos ajudam a desvendar falcatruas. "Sabemos hoje que o falsário é filho do tempo, que o seu patrimônio iconográfico se formou portanto a partir da reserva de imagens de que dispunha (...) A "contemporaneidade" de um falso dura 20 ou 30 anos, depois é ultrapassada." A leitura de uma obra é feita sempre com os olhos de agora, e o falsário não escapa disso; ou seja, fornece o objeto artístico de um passado tal como nós o vemos e sentimos hoje.
Bonsanti explicita: "Percebemos (...) um perfil de moça que gostaria de se situar entre Botticelli e Ghirlandaio, mas que, na realidade, lembra Deanna Durbin ou Shirley Temple". Um Vermeer feito por Van Megeren em 1937 era autêntico. Hoje, parece um Vermeer de 1937, levemente art déco. Existem porém outros falsos, mais duros de roer. Sem dúvida, muitos são ignorados e ainda enganam nos principais museus do mundo. Que um ou dois pseudo-Botticellis se insinuem numa grande mostra internacional não é de espantar: certos falsários são autênticos gênios.

Retrato - Mary Logan Berenson, esposa do célebre perito, conta, em seu diário, datado de Siena, 4/10/1899: "Descobrimos nosso falsário [Joni], mas foi coisa bastante simples, porque "ele" é um bando buliçoso de jovens, primos e amigos, que fazem esses trabalhos em conjunto, um desenha, outro passa a tinta, outro acrescenta sujeira, outro faz as molduras, e meninos com um cachorrão montam guarda às pinturas, expostas ao sol para "envelhecerem". (...) Não escondem nada".


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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