São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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No coração das trevas

Roteirista de Fellini e Antonioni, Ennio Flaiano mergulha na África em "Tempo de Matar"

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

O italiano Ennio Flaiano (1910-72) é pouco conhecido do leitor brasileiro, mas foi roteirista de filmes como "Oito e Meio", de Federico Fellini, e "A Noite", de Michelangelo Antonioni. Como escritor, sua obra mais importante é o romance "Tempo de Matar". Publicado com sucesso na Itália (1947), o livro agora chega ao Brasil com quase seis décadas de atraso.
Valeu a pena esperar. "Tempo de Matar" é uma narrativa moderna e envolvente, que se serve da experiência pessoal do autor como subtenente na campanha italiana da Etiópia, em 1935-36, para questionar as relações do homem europeu com a África e, de passagem, alargar as fronteiras do neo-realismo literário então dominante na Itália.
O entrecho é enganosamente simples: um tenente italiano se aproveita de uma dor de dentes para conseguir uma licença e escapar por uns dias da vida modorrenta da sua base militar na Etiópia ocupada pela Itália fascista. A caminho da cidade, entretanto, o caminhão em que viaja tomba na estrada e ele busca um atalho para a aldeia mais próxima.
A partir desse primeiro acidente, desencadeia-se uma sucessão de acasos e equívocos que afundarão o tenente cada vez mais numa África miserável, incompreensível e ameaçadora, onde pululam feras, emboscadas e doenças tropicais.

Procedimento lúdico
A narrativa em primeira pessoa mimetiza aparentemente o destino errático do protagonista, mas aos poucos o leitor percebe que o que parecia digressão ou conversa jogada fora assume um papel essencial na construção do drama.
A todo momento somos levados a rever passagens anteriores do relato com outros olhos. Esse procedimento lúdico e, no limite, metalingüístico, é reforçado com audacioso requinte no último capítulo, intitulado "Pontos Obscuros", no qual um personagem secundário questiona o protagonista a propósito da coerência e do sentido de suas aventuras e desventuras.
Narrador não confiável, progressão não linear, auto-ironia -em todos esses pontos o romance de Flaiano se distancia do neo-realismo de Pavese e Pratolini então em voga.
A matéria autobiográfica e a observação direta servem aqui apenas como elemento deflagrador de uma dupla e simultânea reflexão: sobre o papel transformador da memória e da imaginação (não raro delirante ou paranóica) na construção do real e sobre o lugar da África no imaginário europeu.
Desse último ponto de vista, "Tempo de Matar" pode ser visto talvez como uma versão latina (vale dizer, mais tragicômica do que propriamente trágica) de "O Coração das Trevas", de Joseph Conrad.

Fronteira ética
O inferno africano de Flaiano é pintado com outras tintas. Mas permanece válida a idéia de que, ao se embrenhar no "continente negro", o homem europeu cruza uma espécie de fronteira ética. "A África é o porão das porcarias, um lugar para espreguiçar a consciência", diz o protagonista a certa altura, entre a ironia e o cinismo.
É como se, no continente africano, o europeu despisse a fina capa de civilização que o cobre e deixasse vir à tona sua natureza ainda bárbara.
Na África de "Tempo de Matar" tudo é incerto: um vulto no rio pode ser uma pedra ou um crocodilo, uma mancha na pele pode ser lepra ou uma simples alergia, uma sombra na mata esconde todos os perigos e fantasmas. Flaiano brinca com essas incertezas numa narrativa plena de uma espécie de sabedoria desencantada. Pensando bem, não foi à toa que Fellini e Antonioni o procuraram para escrever seus melhores filmes.


TEMPO DE MATAR
Autor: Ennio Flaiano
Tradução: Celso Cruz
Editora: Berlendis & Vertecchia (tel. 0/ xx/11/3085-9583)
Quanto: R$ 44 (304 págs.)



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