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No coração das trevas
Roteirista de Fellini e Antonioni, Ennio Flaiano mergulha na África em "Tempo
de Matar"
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
O italiano Ennio
Flaiano (1910-72)
é pouco conhecido
do leitor brasileiro, mas foi roteirista de filmes como "Oito e
Meio", de Federico Fellini, e "A
Noite", de Michelangelo Antonioni. Como escritor, sua obra
mais importante é o romance
"Tempo de Matar". Publicado
com sucesso na Itália (1947), o
livro agora chega ao Brasil com
quase seis décadas de atraso.
Valeu a pena esperar. "Tempo de Matar" é uma narrativa
moderna e envolvente, que se
serve da experiência pessoal do
autor como subtenente na
campanha italiana da Etiópia,
em 1935-36, para questionar as
relações do homem europeu
com a África e, de passagem,
alargar as fronteiras do neo-realismo literário então dominante na Itália.
O entrecho é enganosamente
simples: um tenente italiano se
aproveita de uma dor de dentes
para conseguir uma licença e
escapar por uns dias da vida
modorrenta da sua base militar
na Etiópia ocupada pela Itália
fascista. A caminho da cidade,
entretanto, o caminhão em que
viaja tomba na estrada e ele
busca um atalho para a aldeia
mais próxima.
A partir desse primeiro acidente, desencadeia-se uma sucessão de acasos e equívocos
que afundarão o tenente cada
vez mais numa África miserável, incompreensível e ameaçadora, onde pululam feras, emboscadas e doenças tropicais.
Procedimento lúdico
A narrativa em primeira pessoa mimetiza aparentemente o
destino errático do protagonista, mas aos poucos o leitor percebe que o que parecia digressão ou conversa jogada fora assume um papel essencial na
construção do drama.
A todo momento somos levados a rever passagens anteriores do relato com outros olhos.
Esse procedimento lúdico e, no
limite, metalingüístico, é reforçado com audacioso requinte
no último capítulo, intitulado
"Pontos Obscuros", no qual um
personagem secundário questiona o protagonista a propósito da coerência e do sentido de
suas aventuras e desventuras.
Narrador não confiável, progressão não linear, auto-ironia
-em todos esses pontos o romance de Flaiano se distancia
do neo-realismo de Pavese e
Pratolini então em voga.
A matéria autobiográfica e a
observação direta servem aqui
apenas como elemento deflagrador de uma dupla e simultânea reflexão: sobre o papel
transformador da memória e
da imaginação (não raro delirante ou paranóica) na construção do real e sobre o lugar da
África no imaginário europeu.
Desse último ponto de vista,
"Tempo de Matar" pode ser visto talvez como uma versão latina (vale dizer, mais tragicômica
do que propriamente trágica)
de "O Coração das Trevas", de
Joseph Conrad.
Fronteira ética
O inferno africano de Flaiano
é pintado com outras tintas.
Mas permanece válida a idéia
de que, ao se embrenhar no
"continente negro", o homem
europeu cruza uma espécie de
fronteira ética. "A África é o porão das porcarias, um lugar para espreguiçar a consciência",
diz o protagonista a certa altura, entre a ironia e o cinismo.
É como se, no continente
africano, o europeu despisse a
fina capa de civilização que o
cobre e deixasse vir à tona sua
natureza ainda bárbara.
Na África de "Tempo de Matar" tudo é incerto: um vulto no
rio pode ser uma pedra ou um
crocodilo, uma mancha na pele
pode ser lepra ou uma simples
alergia, uma sombra na mata
esconde todos os perigos e fantasmas. Flaiano brinca com essas incertezas numa narrativa
plena de uma espécie de sabedoria desencantada. Pensando
bem, não foi à toa que Fellini e
Antonioni o procuraram para
escrever seus melhores filmes.
TEMPO DE MATAR
Autor: Ennio Flaiano
Tradução: Celso Cruz
Editora: Berlendis & Vertecchia (tel.
0/ xx/11/3085-9583)
Quanto: R$ 44 (304 págs.)
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