São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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Um país em obras

Edição revista do clássico "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido, e novo estudo de Silviano Santiago repõem em debate a noção de identidade nacional

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há alguns anos, na fantasia das comemorações dos 500 anos de descobrimento do Brasil, uma das raras coisas boas foi a edição da obra "Intérpretes do Brasil" [ed. Nova Aguilar], coleção de 13 livros organizada por Silviano Santiago.
Hoje, duas reedições e um livro de ensaio, justamente de Santiago, aparecem como que a completar esse desejo de "re-especular" sobre o Brasil, seu "sentido" (ou a falta dele) e sua cultura. É sintomático que isso ocorra agora, quando também se comemoram os 70 anos de um dos mais importantes textos sobre o país, "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda.
A primeira reedição é a do livro de Stefan Zweig, "Brasil, Um País do Futuro". Tudo já se disse deste livro -de paródia do ufanismo nacional a retrato otimista da modernização- publicado em vários países e em muitas edições.
Escrito por um exilado do nazismo, judeu e escritor de prestígio, apareceu em 1941, em plena ditadura do Estado Novo, como se fora um extemporâneo livro de viagem ou uma atualização do reacionarismo ufanista do conde Afonso Celso.
O fato de seu autor e sua mulher se suicidarem aqui mesmo, meses depois da edição da obra, só tornou sua recepção ainda mais polêmica e dramática. Sérgio Buarque, na mesma época em que Zweig pensava sua exaltação do Brasil que se modernizava, escreveu que a elite brasileira desde sempre se esforçou em criar "asas para não ver o espetáculo detestável que o país" oferece.
Zweig fez o caminho contrário, e, mesmo sem ignorar o "espetáculo detestável", elaborou uma ode à face espetacular e à superfície colorida do desenvolvimentismo. Mas, se em Zweig vemos apenas a superfície desse processo e dessa tentativa de "redescoberta", sua mais fantástica criação cultural se dará em 1959, quando Antonio Candido publicará aquele que é o mais importante e profundo livro escrito na segunda metade do século 20 sobre o Brasil, "Formação da Literatura Brasileira", agora felizmente reeditado e com revisão do próprio autor [o livro chega às livrarias entre o final de outubro e o começo de novembro].
Para compor a obra, Antonio Candido reuniu a experiência intelectual acumulada nas ciências sociais modernas do Brasil. Até hoje, em nenhum outro livro, a relação dialética entre obra e história no contexto dependente ou "pós-colonial" foi tão bem trabalhada.

Enorme cartografia
Aqui, se trata de compreender a forma do conteúdo e o conteúdo da forma dentro de uma constelação que exige do ensaísta a capacidade de "sair" do texto para perceber e recolher as correspondências soltas e fragmentadas no tecido social. O livro é uma enorme cartografia, e suas inovações ainda estão sendo estabelecidas -algumas já são clássicas, como os conceitos de "sistema literário" e de "formação".
Um outro crítico literário e cultural que maneja todo esse arsenal de problemas, mas em linha teórica completamente distinta, é Silviano Santiago. De sua prolífica produção, o último rebento é este estudo comparativo entre "Raízes do Brasil" e o clássico ensaio de Octavio Paz sobre a cultura mexicana e latino-americana "Labirintos da Solidão".
Em um texto comparativo geralmente se esperam clareza nas comparações e distinções e voltas e reviravoltas que não se esgotem nos paralelismos. Esta última expectativa é plenamente satisfeita no ensaio. Já aquela que se refere à clareza, nem tanto. De um lado, demanda um leitor afeito, devoto mesmo, da fraseologia (ou da ideologia) desconstrutivista.
De outro, a prosa ensaística de Santiago é tão engenhosa quanto tem acabamento frouxo. Sua fórmula mistura o "léxico" derridiano com um certo jeito de prosa quase coloquial.
É como se essa "escritura" fosse desconstruída de "nascença". Enquanto lia, me lembrava de uma resenha do colunista da Folha Marcelo Coelho sobre outro livro do autor, na qual o resenhista falava de "desajeitamento sintático" ou "fraseologia atravancada". Isso também está neste livro, que curiosamente explora muito bem o conceito de "desleixo" de Sérgio Buarque.
Logo na primeira página -ao explicar em nota a maneira como trabalhará as diferentes edições dos livros que irá analisar- diz, em uma inflexão estritamente atualizada com os tempos pós-modernos: "Estaremos trabalhando com a versão revista...". É do pós-modernismo, de suas idéias, especialmente em sua vertente norte-americana, que este livro parte.
A idéia simples, e brilhante, de comparar dois clássicos modernos de interpretação da realidade da América Latina é pautada na "releitura" desses clássicos com as lentes da conceituação pós-moderna, como a nos mostrar que esses modernos já eram pós-modernos sem saber, ambos marcados, como seu comentador, pela idéia da "diferença".
Em uma análise admirável da figura do "pachuco", mexicano "típico" que só o é por estar fora, como trabalhador explorado em território norte-americano, conclui que o ponto de vista "dos de baixo", criado por Octavio Paz, é precursor das teorias do pós-colonialismo.
A máquina diferenciadora de Santiago destaca tipos ideais, contrasta figuras de formação local, mas de bases transnacionais (o "europeu desterrado" de Sérgio e o "pachuco" de Paz), tudo pautado em "experiência da leitura" ou em "invenções hermenêuticas".
Se em Antonio Candido tudo se abre, explica e relaciona, orientando o caminho para uma interpretação e uma intervenção política, em Silviano Santiago os contrastes se esfacelam em uma miríade de possibilidades na qual a idéia de "nação", de política ou mesmo de "América" só podem ser operacionalizadas como particularidades, como "grupos", comunidades ou "leituras".
Aqui não há "dialética", mas o conceito derridiano de "indecidível", aquilo que não se resolve em um plano mais alto.
Suspendendo a historicidade sintética, como em Antonio Candido, Santiago dá sua versão do fim da história. FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea da USP. É autor, com Polyana Canhête, de "Bienais de São Paulo - Da Era do Museu à Era dos Curadores" (Boitempo).


FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA
Autor: Antonio Candido
Editora: Ouro sobre Azul (tel. 0/xx/ 21/ 2502-0883)
Quanto: R$ 80 (800 págs.)

BRASIL, UM PAÍS DO FUTURO
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Kristina Michahelles
Editora: L&PM (tel. 0/xx/51/3225-5777)
Quanto: R$ 16 (262 págs.)

AS RAÍZES E O LABIRINTO DA AMÉRICA LATINA
Autor: Silviano Santiago
Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/3525-2000)
Quanto: R$ 31 (256 págs.)



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