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Um país em obras
Edição revista
do clássico "Formação da Literatura Brasileira", de Antonio Candido, e novo estudo de Silviano Santiago repõem em debate a noção de identidade nacional
FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há alguns anos, na
fantasia das comemorações dos 500
anos de descobrimento do Brasil,
uma das raras coisas boas foi a
edição da obra "Intérpretes do
Brasil" [ed. Nova Aguilar], coleção de 13 livros organizada por
Silviano Santiago.
Hoje, duas reedições e um livro de ensaio, justamente de
Santiago, aparecem como que a
completar esse desejo de "re-especular" sobre o Brasil, seu
"sentido" (ou a falta dele) e sua
cultura. É sintomático que isso
ocorra agora, quando também
se comemoram os 70 anos de
um dos mais importantes textos sobre o país, "Raízes do
Brasil", de Sérgio Buarque de
Holanda.
A primeira reedição é a do livro de Stefan Zweig, "Brasil,
Um País do Futuro". Tudo já se
disse deste livro -de paródia
do ufanismo nacional a retrato
otimista da modernização-
publicado em vários países e
em muitas edições.
Escrito por um exilado do
nazismo, judeu e escritor de
prestígio, apareceu em 1941,
em plena ditadura do Estado
Novo, como se fora um extemporâneo livro de viagem ou
uma atualização do reacionarismo ufanista do conde Afonso Celso.
O fato de seu autor e sua mulher se suicidarem aqui mesmo, meses depois da edição da
obra, só tornou sua recepção
ainda mais polêmica e dramática. Sérgio Buarque, na mesma
época em que Zweig pensava
sua exaltação do Brasil que se
modernizava, escreveu que a
elite brasileira desde sempre se
esforçou em criar "asas para
não ver o espetáculo detestável
que o país" oferece.
Zweig fez o caminho contrário, e, mesmo sem ignorar o
"espetáculo detestável", elaborou uma ode à face espetacular
e à superfície colorida do desenvolvimentismo.
Mas, se em Zweig vemos apenas a superfície desse processo
e dessa tentativa de "redescoberta", sua mais fantástica criação cultural se dará em 1959,
quando Antonio Candido publicará aquele que é o mais importante e profundo livro escrito na segunda metade do século 20 sobre o Brasil, "Formação da Literatura Brasileira",
agora felizmente reeditado e
com revisão do próprio autor
[o livro chega às livrarias entre
o final de outubro e o começo
de novembro].
Para compor a obra, Antonio
Candido reuniu a experiência
intelectual acumulada nas
ciências sociais modernas do
Brasil. Até hoje, em nenhum
outro livro, a relação dialética
entre obra e história no contexto dependente ou "pós-colonial" foi tão bem trabalhada.
Enorme cartografia
Aqui, se trata de compreender a forma do conteúdo e o
conteúdo da forma dentro de
uma constelação que exige do
ensaísta a capacidade de "sair"
do texto para perceber e recolher as correspondências soltas
e fragmentadas no tecido social. O livro é uma enorme cartografia, e suas inovações ainda
estão sendo estabelecidas -algumas já são clássicas, como os
conceitos de "sistema literário"
e de "formação".
Um outro crítico literário e
cultural que maneja todo esse
arsenal de problemas, mas em
linha teórica completamente
distinta, é Silviano Santiago. De
sua prolífica produção, o último rebento é este estudo comparativo entre "Raízes do Brasil" e o clássico ensaio de Octavio Paz sobre a cultura mexicana e latino-americana "Labirintos da Solidão".
Em um texto comparativo
geralmente se esperam clareza
nas comparações e distinções e
voltas e reviravoltas que não se
esgotem nos paralelismos. Esta
última expectativa é plenamente satisfeita no ensaio. Já
aquela que se refere à clareza,
nem tanto. De um lado, demanda um leitor afeito, devoto mesmo, da fraseologia (ou da ideologia) desconstrutivista.
De outro, a prosa ensaística
de Santiago é tão engenhosa
quanto tem acabamento frouxo. Sua fórmula mistura o "léxico" derridiano com um certo
jeito de prosa quase coloquial.
É como se essa "escritura" fosse desconstruída de "nascença". Enquanto lia, me lembrava
de uma resenha do colunista da
Folha Marcelo Coelho sobre
outro livro do autor, na qual o
resenhista falava de "desajeitamento sintático" ou "fraseologia atravancada". Isso também
está neste livro, que curiosamente explora muito bem o
conceito de "desleixo" de Sérgio Buarque.
Logo na primeira página -ao
explicar em nota a maneira como trabalhará as diferentes
edições dos livros que irá analisar- diz, em uma inflexão estritamente atualizada com os
tempos pós-modernos: "Estaremos trabalhando com a versão revista...". É do pós-modernismo, de suas idéias, especialmente em sua vertente norte-americana, que este livro parte.
A idéia simples, e brilhante,
de comparar dois clássicos modernos de interpretação da realidade da América Latina é pautada na "releitura" desses clássicos com as lentes da conceituação pós-moderna, como a
nos mostrar que esses modernos já eram pós-modernos sem
saber, ambos marcados, como
seu comentador, pela idéia da
"diferença".
Em uma análise admirável da
figura do "pachuco", mexicano
"típico" que só o é por estar fora, como trabalhador explorado em território norte-americano, conclui que o ponto de
vista "dos de baixo", criado por
Octavio Paz, é precursor das
teorias do pós-colonialismo.
A máquina diferenciadora de
Santiago destaca tipos ideais,
contrasta figuras de formação
local, mas de bases transnacionais (o "europeu desterrado"
de Sérgio e o "pachuco" de Paz),
tudo pautado em "experiência
da leitura" ou em "invenções
hermenêuticas".
Se em Antonio Candido tudo
se abre, explica e relaciona,
orientando o caminho para
uma interpretação e uma intervenção política, em Silviano
Santiago os contrastes se esfacelam em uma miríade de possibilidades na qual a idéia de
"nação", de política ou mesmo
de "América" só podem ser
operacionalizadas como particularidades, como "grupos",
comunidades ou "leituras".
Aqui não há "dialética", mas
o conceito derridiano de "indecidível", aquilo que não se resolve em um plano mais alto.
Suspendendo a historicidade
sintética, como em Antonio
Candido, Santiago dá sua versão do fim da história.
FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea da
USP. É autor, com Polyana Canhête, de "Bienais de São Paulo - Da Era do Museu à Era dos
Curadores" (Boitempo).
FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA
Autor: Antonio Candido
Editora: Ouro sobre Azul (tel. 0/xx/
21/ 2502-0883)
Quanto: R$ 80 (800 págs.)
BRASIL, UM PAÍS DO FUTURO
Autor: Stefan Zweig
Tradução: Kristina Michahelles
Editora: L&PM (tel. 0/xx/51/3225-5777)
Quanto: R$ 16 (262 págs.)
AS RAÍZES E O LABIRINTO
DA AMÉRICA LATINA
Autor: Silviano Santiago
Editora: Rocco (tel. 0/xx/21/3525-2000)
Quanto: R$ 31 (256 págs.)
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