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+história
A imperatriz tupiniquim
Reunindo estudos e 315 cartas, obra discute a época e o meio em que viveu a arquiduquesa Leopoldina, que teve grande papel na Independência do Brasil
JEAN MARCEL C. FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em 1820, a francesa Rose de Freycinet, mulher do capitão-de-fragata Louis de Freycinet, de passagem pelo Rio de Janeiro, teve a oportunidade de avistar aquela que
seria, em breve, a primeira imperatriz do Brasil, a austríaca
Carolina Josefa Leopoldina
(1797-1826).
Rose, conhecedora dos requintes que cercavam a casa
real dos habsburgos, surpreendeu-se com a sua representante no Brasil: "As maneiras da
princesa real, a meu ver, em nada lembram a postura nobre e
cerimoniosa que se cultiva na
corte da Áustria; aqui, ao que
parece, a princesa é descuidada
tanto com seus trajes quanto
com sua aparência".
De certo modo, a mulher de
dom Pedro 1º passou para a
posteridade, entre os brasileiros, um pouco com esta imagem: mulher apagada, dotada
de nenhuma graça ou beleza,
mal-amada -são conhecidos
os muitos casos extraconjugais
do marido- e, sobretudo, um
pouco alheia a uma corte e a
um país pelos quais parece
nunca ter demonstrado nem
amor nem simpatia.
Todavia essas são impressões difusas, pois, a bem da verdade, pouco se conhece sobre a
vida dessa mulher, cujo destino
se atrelou ao do Brasil quando
este nascia como nação independente.
Obra coletiva
Tamanha lacuna acaba de ser
em parte preenchida graças à
excelente "Cartas de uma Imperatriz" [Estação Liberdade,
org. Bettina Kann e Patrícia
Souza Lima, trad. Tereza Maria
Souza de Castro e Guilherme
João de Freitas Teixeira, 496
págs., R$ 72], obra coletiva, resultado de uma minuciosa pesquisa de arquivos -apoiada pela iniciativa privada, e isso no
Brasil não é de somenos-, que
acaba de ser publicada.
O livro traz bem mais do que
uma substantiva amostragem
-315 cartas, selecionadas entre
850 pesquisadas- da correspondência da imperatriz entre
os anos de 1808 e 1826. Dividido em três partes, oferece ao
leitor -especialista ou não-
uma minuciosa perspectiva de
Leopoldina e de seu tempo.
A primeira parte traz cinco
ensaios, todos de ótima qualidade, interessados em mapear
para o leitor aspectos diversos
do mundo em que viveu a imperatriz. São aspectos como a
situação política do pequeno
reino com o qual o seu país selaria uma aliança, a situação política de seu país numa Europa
sob o impacto de Napoleão, as
características de sua criação
na corte dos habsburgos e a sua
ativa participação no processo
de independência do Brasil.
Especialmente instrutivos
para o leitor que quer conhecer
um pouco mais acerca da autora das tais cartas são os ensaios
"Apontamentos sobre a Infância e a Juventude de Leopoldina", um ótimo estudo da historiadora Bettina Kann sobre as
nuanças que cercavam a criação de uma criança da família
real austríaca, e, sobretudo,
"Leopoldina - Ensaio para um
Perfil", da psicanalista Maria
Rita Kehl.
Engana-se quem espera encontrar no estudo de Kehl uma
daquelas maçantes "aplicações" do arcabouço da psicanálise a um "indefeso" personagem histórico. Trata-se, ao contrário, de uma análise sutil e
muito bem construída das condutas e lugares sociais que Leopoldina -uma mulher criada
para ser imperatriz- teve a seu
dispor no início do século 19, na
Europa e no Brasil.
Brusco amadurecimento
A segunda parte do livro traz
um "caderno de ilustrações",
com desenhos da época -inclusive uns traçados pela própria Leopoldina, reputada ótima desenhista-, e a terceira
parte, as 315 cartas da imperatriz, selecionadas por Bettina
Kann e Patrícia Souza Lima, divididas em três grupos: cartas
austríacas (1808-17), cartas da
travessia (1817) e cartas brasileiras (1817-26). O que, em linhas gerais, encontrará o leitor
aí? Leopoldina, a sua "intimidade"? De certo modo, mas
nem tanto, na medida em que
as missivas seguem padrões rígidos -pertencer ao mundo
cortesão impunha uma série de
constrangimentos.
Malgrado tais limitações, ao
menos dois aspectos saltam aos
olhos do leitor dessa correspondência. Um é o brusco endurecimento e amadurecimento pessoal de Leopoldina em
solo brasileiro. O outro é o
enorme papel da primeira imperatriz do Brasil -uma culta e
ponderada conservadora que
se fez liberal- no processo de
independência, processo conduzido, a seu ver, por um imperador inculto, despreparado
para governar e deslumbrado
com as novidades políticas que
vinham da Europa.
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e
Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).
NA INTERNET - Leia algumas das
cartas da Imperatriz Leopoldina em
www.folha.com.br/062772
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