São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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+história

A imperatriz tupiniquim

Reunindo estudos e 315 cartas, obra discute a época e o meio em que viveu a arquiduquesa Leopoldina, que teve grande papel na Independência do Brasil

JEAN MARCEL C. FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1820, a francesa Rose de Freycinet, mulher do capitão-de-fragata Louis de Freycinet, de passagem pelo Rio de Janeiro, teve a oportunidade de avistar aquela que seria, em breve, a primeira imperatriz do Brasil, a austríaca Carolina Josefa Leopoldina (1797-1826).
Rose, conhecedora dos requintes que cercavam a casa real dos habsburgos, surpreendeu-se com a sua representante no Brasil: "As maneiras da princesa real, a meu ver, em nada lembram a postura nobre e cerimoniosa que se cultiva na corte da Áustria; aqui, ao que parece, a princesa é descuidada tanto com seus trajes quanto com sua aparência".
De certo modo, a mulher de dom Pedro 1º passou para a posteridade, entre os brasileiros, um pouco com esta imagem: mulher apagada, dotada de nenhuma graça ou beleza, mal-amada -são conhecidos os muitos casos extraconjugais do marido- e, sobretudo, um pouco alheia a uma corte e a um país pelos quais parece nunca ter demonstrado nem amor nem simpatia.
Todavia essas são impressões difusas, pois, a bem da verdade, pouco se conhece sobre a vida dessa mulher, cujo destino se atrelou ao do Brasil quando este nascia como nação independente.

Obra coletiva
Tamanha lacuna acaba de ser em parte preenchida graças à excelente "Cartas de uma Imperatriz" [Estação Liberdade, org. Bettina Kann e Patrícia Souza Lima, trad. Tereza Maria Souza de Castro e Guilherme João de Freitas Teixeira, 496 págs., R$ 72], obra coletiva, resultado de uma minuciosa pesquisa de arquivos -apoiada pela iniciativa privada, e isso no Brasil não é de somenos-, que acaba de ser publicada.
O livro traz bem mais do que uma substantiva amostragem -315 cartas, selecionadas entre 850 pesquisadas- da correspondência da imperatriz entre os anos de 1808 e 1826. Dividido em três partes, oferece ao leitor -especialista ou não- uma minuciosa perspectiva de Leopoldina e de seu tempo.
A primeira parte traz cinco ensaios, todos de ótima qualidade, interessados em mapear para o leitor aspectos diversos do mundo em que viveu a imperatriz. São aspectos como a situação política do pequeno reino com o qual o seu país selaria uma aliança, a situação política de seu país numa Europa sob o impacto de Napoleão, as características de sua criação na corte dos habsburgos e a sua ativa participação no processo de independência do Brasil.
Especialmente instrutivos para o leitor que quer conhecer um pouco mais acerca da autora das tais cartas são os ensaios "Apontamentos sobre a Infância e a Juventude de Leopoldina", um ótimo estudo da historiadora Bettina Kann sobre as nuanças que cercavam a criação de uma criança da família real austríaca, e, sobretudo, "Leopoldina - Ensaio para um Perfil", da psicanalista Maria Rita Kehl.
Engana-se quem espera encontrar no estudo de Kehl uma daquelas maçantes "aplicações" do arcabouço da psicanálise a um "indefeso" personagem histórico. Trata-se, ao contrário, de uma análise sutil e muito bem construída das condutas e lugares sociais que Leopoldina -uma mulher criada para ser imperatriz- teve a seu dispor no início do século 19, na Europa e no Brasil.

Brusco amadurecimento
A segunda parte do livro traz um "caderno de ilustrações", com desenhos da época -inclusive uns traçados pela própria Leopoldina, reputada ótima desenhista-, e a terceira parte, as 315 cartas da imperatriz, selecionadas por Bettina Kann e Patrícia Souza Lima, divididas em três grupos: cartas austríacas (1808-17), cartas da travessia (1817) e cartas brasileiras (1817-26). O que, em linhas gerais, encontrará o leitor aí? Leopoldina, a sua "intimidade"? De certo modo, mas nem tanto, na medida em que as missivas seguem padrões rígidos -pertencer ao mundo cortesão impunha uma série de constrangimentos.
Malgrado tais limitações, ao menos dois aspectos saltam aos olhos do leitor dessa correspondência. Um é o brusco endurecimento e amadurecimento pessoal de Leopoldina em solo brasileiro. O outro é o enorme papel da primeira imperatriz do Brasil -uma culta e ponderada conservadora que se fez liberal- no processo de independência, processo conduzido, a seu ver, por um imperador inculto, despreparado para governar e deslumbrado com as novidades políticas que vinham da Europa.


JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).

NA INTERNET - Leia algumas das cartas da Imperatriz Leopoldina em www.folha.com.br/062772


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