São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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A rainha vigiada

Divulgação
Kirsten Dunst no recente "Maria Antonieta", de Sofia Coppola


Estudo e antologia publicados na França desvendam a correspondência de Maria Antonieta, que seria deposta pela Revolução Francesa, em 1789

VINCENT ROY
Viena, igreja dos Agostinhos, 19 de abril de 1770. Uma jovem arquiduquesa de Habsburgo-Lorena se casa por procuração com o príncipe herdeiro da França, o futuro rei Luís 16. A noiva veste manto de prata. O papel de seu futuro marido é representado por seu irmão.
Dois dias depois, Maria Antonia Johanna Josepha, 14 anos, deixa a Áustria para ser enviada à França, "vendida por uma dinastia", numa ilhota do rio Reno considerado uma fronteira simbólica.
Ela se despede de seu séquito e de seu cão, traja um vestido francês e recebe os cumprimentos das autoridades. Aquela que, daquele momento em diante, passará a ser chamada de Maria Antonieta se hospeda no palácio episcopal de Estrasburgo antes de tomar o caminho de Versalhes.
No dia 21 de abril, sua mãe, a imperatriz Maria Teresa, lhe entrega instruções, "um regulamento a ser lido todos os meses". Uma das recomendações: "Nunca leias nenhum livro, mesmo indiferente, sem ter previamente pedido a aprovação de seu confessor. Isso se torna ainda mais necessário na França, já que ali se publicam incessantemente livros repletos de erudição e agrado, mas entre os quais, sob esse manto respeitável, existem os que são perniciosos em relação à religião e aos costumes".

"Vida patética"
A França é um reino onde "se pensa perigosamente". Filósofos abalam os princípios da monarquia absoluta, e libertinos fazem a apologia da liberdade.
Em suma, a mãe da futura rainha da França quer proteger, guiar, controlar e manipular sua filha, que é uma peça-chave na política externa dos habsburgos. Mas como fazê-lo à distância? Enviando mentores a Versalhes e mantendo uma correspondência constante e secreta com a rainha.
Segue-se uma troca de correspondências que dura dez anos, até a morte da imperatriz. Essa correspondência "traça o romance verdadeiro da vida patética da rainha", diz a historiadora Evelyne Lever, organizadora de "Marie-Antoinette - La Naissance d'une Reine" [Maria Antonieta - O Nascimento de uma Rainha, Cartas Escolhidas (1770-1780), ed. Points, 284 págs., 7, R$ 19].
Quanto às eminências pardas que aconselham e espionam "a austríaca", elas continuam a repassar informações a Maria Teresa, e tão bem que esta, somando suas informações, toma conhecimento de tudo o que é tramado em Versalhes.
"Entre as monarcas da época, talvez seja Maria Teresa a que melhor ilustra essa gestão dos espaços público e privado por meio de cartas", destaca Catriona Seth no prefácio de sua antologia notável dedicada a Maria Antonieta ["Marie-Antoinette - Anthologie et Dictionnaire", Antologia e Dicionário, editora Robert Laffont, 960 págs., 29, R$ 80].
As cartas que as duas mulheres escrevem uma à outra revelam a extraordinária submissão -ou, então, o "desejo de submissão", como explica Lever- da rainha à velha soberana "jupiteriana".
Não tendo encontrado em Versalhes uma família unida e afetuosa, semelhante à que deixara, Maria Antonieta teme ainda mais se ver privada do amor de Maria Teresa.
Assim, obedece cuidadosamente a todas as recomendações desta: "Afinal, a imperatriz sabe bem que eu farei tudo o que ela quiser".

Lados opostos
Quando Maria Antonieta decide ignorar Madame du Barry, a amante oficial de Luís 16 ("a criatura mais ridícula e impertinente que seria imaginável", escreve), ela é rapidamente chamada à ordem. Até a chegada de Luís 16 ao trono, ela teme a ira de sua mãe com a insegurança de uma menininha atirada no desconhecido. Ela cede às recomendações de Mercy-Argenteau, que "pensa em bom francês, como bom alemão", e paga salários aos informantes.
Maria Antonieta é a perdedora nesses arranjos: desconhece as manobras de Vermond e Mercy, seus "anjos tutelares" que não têm o poder de normalizar sua vida conjugal difícil.
Com a morte de Luís 15, em 1774, Maria Antonieta passa a viver segundo suas próprias preferências. Ela se dissipa, porque está "decepcionada e desencantada". Ela esconde de sua mãe "as futilidades que a ocupam", seus penteados extravagantes, seu guarda-roupa, suas saídas noturnas, seu pendor pelo jogo, sua paixão pelos diamantes, sua inclinação pelos duques de Coigny e de Lauzun.
Duas cartas da rainha endereçadas ao conde de Rosenberg não poderiam deixar de intrigar. Em uma, Maria Antonieta fala de Luís 16 com muito pouco-caso, e, na outra, ela deixa escapar que manipulou seu "pobre homem" para que este "lhe arranje o horário mais cômodo" para que ela possa ir ver o duque de Choiseul. E acrescenta: "Creio que, neste momento, abusei o suficiente do direito de mulher".
Surpreendente rainha da França, que demonstra dois lados opostos: o de pequena rainha enternecida e o de mulher liberta, "no clima do século".
Este texto saiu no "Le Monde".
Tradução de Clara Allain.


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