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Ponto de Fuga
Insurreição permanente
Dois esqueletos, que são também escadas, se dobram em ângulos agoniados, incertos e perdidos no espaço que desmonta; não há dúvida: Silvano Lora é um imenso artista; é um maior de nosso tempo
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Numa ruazinha, no centro
histórico de Santo Domingo, República Dominicana, há uma porta aberta e
uma placa discreta em que se lê
"Taller Público Silvano Lora".
Taller é a palavra espanhola
para ateliê. Silvano Lora é um
artista. Nasceu em 1931, morreu
em 2003. Sempre teve convicções críticas e enérgicas. Mostrou suas obras em grandes exposições internacionais, entre
elas a Bienal de São Paulo de
1952.
Mas criou também a Bienal
Marginal, em Santo Domingo.
Para fugir das convenções, dos
curadores e do mercado internacional. Para pôr "em relevo a
capacidade criadora dos povos
que vivem em condição de pobreza", como escreveu. Criou
ainda o Museu Rural de Los
Rios, o Festival Internacional de
Cinema de Santo Domingo.
Todas essas qualidades vigorosas de empenho e de generosidade por si só não transformam
alguém em grande artista. No
entanto basta entrar nesse "Taller Público", recém-inaugurado
e mantido por uma fundação,
para sentir o impacto de seu gênio.
Há ali uma exposição, cujo título é "Esquemas Incorruptibles". Reúne obras que Lora
criou em seus últimos anos.
Elas se afirmam de imediato
pela formidável energia, cuja intensidade não exclui a sutileza.
Mais ainda, impõem-se pela originalidade radical e surpreendente, rara nos dias de hoje, em
que a arte se nutre tanto de artifícios efêmeros.
É injusto filiar Lora à "arte povera" [arte pobre, movimento
italiano dos anos 70] ou ao "nouveau réalisme" [novo realismo,
movimento francês dos anos
60], como fazem vários escritos
que se referem a ele.
Sua arte está muito além de
tudo isso, e sua dívida maior é
consigo mesma.
Heavy Metal
As obras apresentadas em
"Esquemas Incorruptibles" são
feitas de metal, folhas de embalagens que Lora pregou em painéis. Por vezes, ele as pinta; por
outras, deixa que o vermelho industrial de uma lata de tomates
ou o amarelo que anunciou algum azeite se manifestem.
Aqui e ali, um pedaço de madeira acrescenta sentido ao conjunto.
A execução é sólida, e rude o
acabamento. As formas insinuam significações expressivas.
Dispõem-se com um sentimento certeiro e instintivo.
Punições perversas, celas, pelourinhos, navios negreiros renascem em desmembramentos
que evitam qualquer simplificação militante. A expressão "realismo mágico", que se desgastou,
vem à mente, carregada de nova
força.
A palmeira brota no meio de
uma escada, abrindo suas folhagens que são como asas negras e
lustrosas. O homem esqueleto se
inscreve em arco numa espécie
de cogumelo atômico e vermelho, enquanto um estranho pássaro se lança num voo imóvel.
Um banjo projeta espirais e
raios. Dois esqueletos, que são
também escadas, se dobram em
ângulos agoniados, incertos e
perdidos no espaço que desmonta.
Não há dúvida. Silvano Lora é
um imenso artista. É um maior
de nosso tempo.
Penas
Com seu balanço suave e variado de vogais e consoantes, a
palavra "poetisa" soa tão bonito.
Foi posta fora de moda. Mulheres hoje são poetas: talvez
fosse melhor que os homens se
tornassem poetisos.
Poeta ou poetisa, Vanessa
Droz, de Porto Rico, tem um livro admirável: "Vícios de Anjos e
Outras Paixões Privadas". Fala-nos de voos impossíveis, do espírito que é aéreo, do corpo que é
pesado.
Amostra
Trechinho, ao acaso, de Vanessa Droz, em tentativa de tradução: "Que nuvem é esta, tão
baixa,/ ao rés do sonho/ que não
se habita nem se escuta/ que os
poetas circundam/ como se fosse excremento?/ Só os poetas
conseguem decolar/ um pouco
do solo e os vemos/ deambular,
abobados,/ como moscas arrastando os pés".
jorgecoli@uol.com.br
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