São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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Ponto de Fuga

Insurreição permanente


Dois esqueletos, que são também escadas, se dobram em ângulos agoniados, incertos e perdidos no espaço que desmonta; não há dúvida: Silvano Lora é um imenso artista; é um maior de nosso tempo


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Numa ruazinha, no centro histórico de Santo Domingo, República Dominicana, há uma porta aberta e uma placa discreta em que se lê "Taller Público Silvano Lora".
Taller é a palavra espanhola para ateliê. Silvano Lora é um artista. Nasceu em 1931, morreu em 2003. Sempre teve convicções críticas e enérgicas. Mostrou suas obras em grandes exposições internacionais, entre elas a Bienal de São Paulo de 1952.
Mas criou também a Bienal Marginal, em Santo Domingo. Para fugir das convenções, dos curadores e do mercado internacional. Para pôr "em relevo a capacidade criadora dos povos que vivem em condição de pobreza", como escreveu. Criou ainda o Museu Rural de Los Rios, o Festival Internacional de Cinema de Santo Domingo.
Todas essas qualidades vigorosas de empenho e de generosidade por si só não transformam alguém em grande artista. No entanto basta entrar nesse "Taller Público", recém-inaugurado e mantido por uma fundação, para sentir o impacto de seu gênio.
Há ali uma exposição, cujo título é "Esquemas Incorruptibles". Reúne obras que Lora criou em seus últimos anos.
Elas se afirmam de imediato pela formidável energia, cuja intensidade não exclui a sutileza. Mais ainda, impõem-se pela originalidade radical e surpreendente, rara nos dias de hoje, em que a arte se nutre tanto de artifícios efêmeros.
É injusto filiar Lora à "arte povera" [arte pobre, movimento italiano dos anos 70] ou ao "nouveau réalisme" [novo realismo, movimento francês dos anos 60], como fazem vários escritos que se referem a ele.
Sua arte está muito além de tudo isso, e sua dívida maior é consigo mesma.

Heavy Metal
As obras apresentadas em "Esquemas Incorruptibles" são feitas de metal, folhas de embalagens que Lora pregou em painéis. Por vezes, ele as pinta; por outras, deixa que o vermelho industrial de uma lata de tomates ou o amarelo que anunciou algum azeite se manifestem.
Aqui e ali, um pedaço de madeira acrescenta sentido ao conjunto.
A execução é sólida, e rude o acabamento. As formas insinuam significações expressivas. Dispõem-se com um sentimento certeiro e instintivo.
Punições perversas, celas, pelourinhos, navios negreiros renascem em desmembramentos que evitam qualquer simplificação militante. A expressão "realismo mágico", que se desgastou, vem à mente, carregada de nova força.
A palmeira brota no meio de uma escada, abrindo suas folhagens que são como asas negras e lustrosas. O homem esqueleto se inscreve em arco numa espécie de cogumelo atômico e vermelho, enquanto um estranho pássaro se lança num voo imóvel. Um banjo projeta espirais e raios. Dois esqueletos, que são também escadas, se dobram em ângulos agoniados, incertos e perdidos no espaço que desmonta.
Não há dúvida. Silvano Lora é um imenso artista. É um maior de nosso tempo.

Penas
Com seu balanço suave e variado de vogais e consoantes, a palavra "poetisa" soa tão bonito.
Foi posta fora de moda. Mulheres hoje são poetas: talvez fosse melhor que os homens se tornassem poetisos.
Poeta ou poetisa, Vanessa Droz, de Porto Rico, tem um livro admirável: "Vícios de Anjos e Outras Paixões Privadas". Fala-nos de voos impossíveis, do espírito que é aéreo, do corpo que é pesado.

Amostra
Trechinho, ao acaso, de Vanessa Droz, em tentativa de tradução: "Que nuvem é esta, tão baixa,/ ao rés do sonho/ que não se habita nem se escuta/ que os poetas circundam/ como se fosse excremento?/ Só os poetas conseguem decolar/ um pouco do solo e os vemos/ deambular, abobados,/ como moscas arrastando os pés".


jorgecoli@uol.com.br

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