São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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Grande homem, grande pensador

Manuela Carneiro da Cunha rebate o obituário publicado pelo "New York Times", que chamou o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, morto no dia 1º, de "pedante"

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há pelo menos 20 anos me pedem para deixar escrito e preparado um obituário de Claude Lévi-Strauss e há 20 anos tenho recusado.
Hoje [quarta-feira, 4/11] li o obituário dele publicado no "New York Times" e fiquei indignada com sua lista de inanidades: quase todas as leituras equivocadas de sua obra estão lá, quase todas as distorções do seu pensamento e do seu estilo também, quase todos os preconceitos de quem não se deu ao prazer de o ler.
Achei que pelo menos no Brasil, se não nos EUA, tínhamos o dever de assinalar a grandeza desse homem.
Lévi-Strauss não foi só um antropólogo -o maior dos antropólogos, como bem disse Steve Hugh Jones, professor na Universidade de Cambridge, no ano passado-, ele foi um pensador originalíssimo e um escritor admirável.
Um homem sintonizado com a ciência e a arte, cujos interesses iam da matemática à cosmologia, às ciências da vida, à filosofia, à música.
Descrito como cerebral por quem não vê mais longe do que o próprio nariz, ao contrário Lévi-Strauss tinha uma sensibilidade rara para o mundo material.
As descrições que faz em "Tristes Trópicos" [Cia. das Letras], a minúcia com que conhece bichos, plantas e constelações e os faz figurar nas suas análises de mitologia, sua recuperação da lógica do sensível no livro "O Pensamento Selvagem" [Papirus], tudo isso atesta, para quem o sabe ler, a convergência rara da inteligência e da sensibilidade.

Respeito imediato
Lévi-Strauss, contrariamente ao que estupidamente se publicou no "New York Times", era tudo menos pedante.
Tinha um pensamento límpido, sintético, e plena consciência das implicações do que estava afirmando.
Tinha também o dom extraordinário de falar exatamente como escrevia. Era como se sua prosa elegante fosse o fruto espontâneo de seu pensamento. Impunha um respeito imediato.
Por mais que ele sempre tivesse sido amigável comigo, por mais que me tivesse apoiado, escrito e encorajado, nunca deixei de ficar intimidada na sua presença.
Ainda no "New York Times", se faz referência à famosa frase que abre "Tristes Trópicos" -"Odeio viagens e exploradores"- para apoiar as críticas absurdas de que Lévi-Strauss não tinha apreço pela etnografia e pelo trabalho de campo.
Difícil ter maior apreço do que ele, que, contrariamente a Edmund Leach, que o difundiu na Inglaterra (sem jamais o ter bem compreendido), nunca autorizou a análise de mitos sem o conhecimento profundo da etnografia e do ambiente.
Era, sem dúvida, e confessadamente, um cientista que gostava de seu gabinete -gabinete [em Paris] que aliás conservou e frequentou quase até o fim e que, após a mudança de endereço do Laboratório de Antropologia Social para a antiga Escola Politécnica, tinha-se tornado um ninho de águia dominando o Laboratório.
Mas as viagens que fez no Brasil dos anos 1930 foram excepcionais não somente pela sua dificuldade e extensão mas também pelas análises que geraram. Recolocando a frase de "Tristes Trópicos" em seu contexto, e vendo o uso que ele faz dos cronistas do Brasil do século 16, entende-se do que ele está falando. Basta ler.
A voga do estruturalismo nos anos 1960 foi um desserviço para Lévi-Strauss.
Se por um lado o tornou mundialmente famoso, também o assimilou de modo espúrio a outros autores como Althusser e Lacan- com quem não tinha, na realidade, afinidade intelectual.
De Lacan, seu amigo pessoal, ele dizia que nunca o tinha entendido. E não há nada mais diferente de Lévi-Strauss do que Althusser. E, sobretudo, exatamente porque foi moda, foi substituída por outras modas que lhe sucederam.

Ambientalismo
Talvez por isso, Lévi-Strauss dizia que tinha vivido demais, que tinha presenciado seu próprio esquecimento. Mas viveu afinal o bastante para perceber que seu pensamento estava sendo redescoberto, dessa vez por filósofos ainda mais do que por antropólogos.
Reparem que escrever, no auge de sua glória, os quatro volumes das (grandes) "Mitológicas" [Cosac Naify] foi uma empresa espantosa.
Ele já tinha dado o programa e os alicerces da obra em artigos e um livro. Mas resolveu empreender sozinho e com meios artesanais a análise detalhada de centenas de mitos das Américas, reconstituir -usando a própria prodigiosa intuição- as lógicas que presidem esse conjunto e usar declaradamente seu próprio pensamento como revelador do pensamento ameríndio e do pensamento mítico em geral.
Um grande homem.
Um homem também à frente de seu tempo, precursor do ambientalismo e da defesa dos direitos dos animais.

Defesa dos animais
Lévi-Strauss não proclamou só a unidade dos mecanismos do pensamento na espécie humana, ele também denunciou a crueldade absurda de um mundo ordenado para servir a humanidade e destruído a seu bel-prazer.
Dito claramente: Lévi-Strauss foi um grande homem e um grande pensador, e as futuras gerações terão ainda o prazer de o descobrir.


MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga, professora aposentada da Universidade de Chicago (EUA) e autora de "Cultura com Aspas" (ed. Cosac Naify), entre outros livros.

Leia a tradução do obituário do jornal "New York Times"
www.folha.com.br/093092


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