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Grande homem, grande pensador
Manuela Carneiro da Cunha rebate
o obituário publicado pelo "New York Times", que chamou o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss,
morto no dia 1º, de "pedante"
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Há pelo menos 20
anos me pedem
para deixar escrito
e preparado um
obituário de Claude Lévi-Strauss e há 20 anos tenho recusado.
Hoje [quarta-feira, 4/11] li o
obituário dele publicado no
"New York Times" e fiquei indignada com sua lista de inanidades: quase todas as leituras
equivocadas de sua obra estão
lá, quase todas as distorções do
seu pensamento e do seu estilo
também, quase todos os preconceitos de quem não se deu
ao prazer de o ler.
Achei que pelo menos no
Brasil, se não nos EUA, tínhamos o dever de assinalar a
grandeza desse homem.
Lévi-Strauss não foi só um
antropólogo -o maior dos antropólogos, como bem disse
Steve Hugh Jones, professor na
Universidade de Cambridge,
no ano passado-, ele foi um
pensador originalíssimo e um
escritor admirável.
Um homem sintonizado com
a ciência e a arte, cujos interesses iam da matemática à cosmologia, às ciências da vida, à
filosofia, à música.
Descrito como cerebral por
quem não vê mais longe do que
o próprio nariz, ao contrário
Lévi-Strauss tinha uma sensibilidade rara para o mundo
material.
As descrições que faz em
"Tristes Trópicos" [Cia. das Letras], a minúcia com que conhece bichos, plantas e constelações e os faz figurar nas suas
análises de mitologia, sua recuperação da lógica do sensível
no livro "O Pensamento Selvagem" [Papirus], tudo isso atesta, para quem o sabe ler, a convergência rara da inteligência e
da sensibilidade.
Respeito imediato
Lévi-Strauss, contrariamente ao que estupidamente se publicou no "New York Times",
era tudo menos pedante.
Tinha um pensamento límpido, sintético, e plena consciência das implicações do que
estava afirmando.
Tinha também o dom extraordinário de falar exatamente como escrevia. Era como se sua prosa elegante fosse
o fruto espontâneo de seu pensamento. Impunha um respeito imediato.
Por mais que ele sempre tivesse sido amigável comigo,
por mais que me tivesse apoiado, escrito e encorajado, nunca
deixei de ficar intimidada na
sua presença.
Ainda no "New York Times",
se faz referência à famosa frase
que abre "Tristes Trópicos"
-"Odeio viagens e exploradores"- para apoiar as críticas
absurdas de que Lévi-Strauss
não tinha apreço pela etnografia e pelo trabalho de campo.
Difícil ter maior apreço do
que ele, que, contrariamente a
Edmund Leach, que o difundiu
na Inglaterra (sem jamais o ter
bem compreendido), nunca autorizou a análise de mitos sem o
conhecimento profundo da etnografia e do ambiente.
Era, sem dúvida, e confessadamente, um cientista que gostava de seu gabinete -gabinete
[em Paris] que aliás conservou
e frequentou quase até o fim e
que, após a mudança de endereço do Laboratório de Antropologia Social para a antiga Escola Politécnica, tinha-se tornado um ninho de águia dominando o Laboratório.
Mas as viagens que fez no
Brasil dos anos 1930 foram excepcionais não somente pela
sua dificuldade e extensão mas
também pelas análises que geraram. Recolocando a frase de
"Tristes Trópicos" em seu contexto, e vendo o uso que ele faz
dos cronistas do Brasil do século 16, entende-se do que ele está
falando. Basta ler.
A voga do estruturalismo nos
anos 1960 foi um desserviço para Lévi-Strauss.
Se por um lado o tornou
mundialmente famoso, também o assimilou de modo espúrio a outros autores como Althusser e Lacan- com quem
não tinha, na realidade, afinidade intelectual.
De Lacan, seu amigo pessoal,
ele dizia que nunca o tinha entendido. E não há nada mais diferente de Lévi-Strauss do que
Althusser. E, sobretudo, exatamente porque foi moda, foi
substituída por outras modas
que lhe sucederam.
Ambientalismo
Talvez por isso, Lévi-Strauss
dizia que tinha vivido demais,
que tinha presenciado seu próprio esquecimento. Mas viveu
afinal o bastante para perceber
que seu pensamento estava
sendo redescoberto, dessa vez
por filósofos ainda mais do que
por antropólogos.
Reparem que escrever, no
auge de sua glória, os quatro volumes das (grandes) "Mitológicas" [Cosac Naify] foi uma empresa espantosa.
Ele já tinha dado o programa
e os alicerces da obra em artigos e um livro. Mas resolveu
empreender sozinho e com
meios artesanais a análise detalhada de centenas de mitos das
Américas, reconstituir -usando a própria prodigiosa intuição- as lógicas que presidem
esse conjunto e usar declaradamente seu próprio pensamento
como revelador do pensamento ameríndio e do pensamento
mítico em geral.
Um grande homem.
Um homem também à frente
de seu tempo, precursor do ambientalismo e da defesa dos direitos dos animais.
Defesa dos animais
Lévi-Strauss não proclamou
só a unidade dos mecanismos
do pensamento na espécie humana, ele também denunciou a
crueldade absurda de um mundo ordenado para servir a humanidade e destruído a seu bel-prazer.
Dito claramente: Lévi-Strauss foi um grande homem e
um grande pensador, e as futuras gerações terão ainda o prazer de o descobrir.
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é antropóloga, professora aposentada da Universidade de
Chicago (EUA) e autora de "Cultura com Aspas"
(ed. Cosac Naify), entre outros livros.
Leia a tradução do
obituário do jornal
"New York Times"
www.folha.com.br/093092
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