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Nas asas do tédio
DANIEL KALDER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Berlim hoje é celebrada por sua posição de vanguarda
na cultura e na
música, pelo design e pela arte vibrantes, e
também como um ponto de
encontro brusco e atraente
entre o oeste e o leste. Tudo
isso se justifica, mas para
mim Berlim também é fascinante como centro de algo
mais: o tédio revolucionário.
Permitam-me explicar. Há
20 anos, em Berlim, o muro
separava duas escolas distintas de tédio.
Do lado oriental existia a
variedade comunista, definida por grandes labirintos de
jaulas de concreto pré-fabricado para seres humanos, fábricas sujas despejando poluentes no ar e complexos
monumentais de museus e
teatros dedicados a uma visão sufocante da alta cultura.
Para os "ost-berliners",
apenas o terror induzido pela
Stasi e o consumo copioso de
álcool eram capazes de animar as coisas.
Burguesia mimada
Já o lado ocidental, por sua
vez, abrigava algo de diferente: o tédio do consumismo bovino do pós-guerra.
A melhor representação
disso era a famosa Kaufhaus
des Westens, a maior loja de
departamentos da Europa
[continental], que oferecia
muitas e muitas... coisas. Sim,
de fato: na KaDeWe havia
queijo. E carne. E roupas. Etc.
Apenas um punhado de filhos mimados da burguesia,
brincando de revolução, e a
maior população de drogados
da Europa serviam para animar um pouco as coisas.
Mas então o muro caiu e o
tédio do leste foi libertado para que pudesse se fundir com
o do oeste.
Isso também aconteceu em
outras partes da Europa
oriental, mas só em Berlim
havia duas escolas em tão
perfeito equilíbrio, interconectadas de forma tão íntima.
A apodrecida infraestrutura do comunismo se misturava aos chochos arranha-céus
novos em estilo pseudoamericano, na Potsdamer Platz.
A nostalgia do comunismo
e a globalização descontrolada se davam as mãos; e todos
marcharam unidos para um
admirável mundo novo de reciclagem, nudismo, música
tecno minimalista e a pornografia mais vil do planeta.
Quem fica na cidade por
tempo demais não demora a
desconfiar que até a cena de
arte "radical" é rigidamente
conformista e "segura".
Mas não pensem que estou
me queixando. Amo Berlim. É
um vislumbre do progresso
em vidro e concreto, no qual
os cientistas estão criando
uma visão utópica de um "tediofuturo" diversificado, mas
ordeiro, que um dia poderá
triunfar em toda a Europa.
DANIEL KALDER é escritor escocês, autor de
"Lost Cosmonaut" (ed. Faber and Faber), em
que apresenta o "Manifesto Antiturista" e relatos de visitas a ex-repúblicas soviéticas.
Tradução de Paulo Migliacci.
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