São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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Etnografia em cacos

Peças que o autor de "Tristes Trópicos" recolheu nos anos 30 e que ficaram no Brasil estão deterioradas

GABRIELA LONGMAN
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, EM PARIS

Depois de cada uma de suas visitas ao Brasil nos anos 1930, Claude Lévi-Strauss era obrigado a dividir em dois o material etnográfico que havia coletado.
A legislação da época autorizava que metade das peças recolhidas fosse levada para a França para tornar-se material de estudo e pesquisa.
A segunda metade precisaria ficar no Brasil, a cargo das instituições científicas nacionais, a fim de enriquecer o patrimônio e o conhecimento do país.
A "partilha" dos objetos envolvia autorizações, carimbos e trâmites alfandegários. Entre 1935 e 1938 é sabido que a metade francesa -mais de 1.200 objetos de povos como bororos, nambiquaras, mundés, cadiuéus e tupis desembarcaram em Paris em duas levas, passando a integrar a antiga coleção do Musée de l'Homme.
Em 2006, o conjunto foi transferido para o recém-criado Musée du Quai Branly, edifício monumental construído à margem do Sena para abrigar a principal coleção de arte não europeia da França.

Na França, conservadas
Do conjunto trazido por Lévi-Strauss do Brasil, 14 peças estão atualmente em exibição ao grande público. O restante fica armazenado numa reserva técnica construída no subsolo do museu, com acesso restrito aos pesquisadores.
Inteiramente catalogada, a parte francesa da coleção Lévi-Strauss pode ser inteiramente consultada no site da instituição [www.quaibranly.fr].
Além dos objetos, estão disponíveis para consulta a coleção de fotos que o antropólogo doou ao museu em 2007: 224 tiragens que documentam as missões no Brasil, nos anos 1930, e na região de Chittagong (atual Bangladesh), em 1950.
O destino das peças que ficaram no Brasil foi diferente.
A princípio, foram divididas entre o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Museu Paulista e o antigo Museu Plínio Airosa, para serem posteriormente reunidas no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).
Com a passagem do tempo, porém, apenas uma pequena parte dos objetos ficou devidamente conservada e catalogada como sendo originária das missões de Lévi-Strauss.

Peças quebradas
"Ao longo dos anos, uma grande parte dessas peças quebrou ou se deteriorou de tal forma que não valia mais a pena ser conservada. Outras, muito provavelmente, estão ainda no acervo, mas perderam sua etiqueta de identificação e se misturaram com outras peças", explicou à Folha o antropólogo Luis Donisete Benzi Grupioni, do Instituto de Pesquisa e Formação em Educação Indígena (Iepé).
Em 2005, ano do Brasil na França, Grupioni foi um dos pesquisadores encarregados de reunir a coleção brasileira e a francesa para uma grande exposição -"Brésil Indigène", no Grand Palais, em Paris.
À época, ele contou com a ajuda do próprio Lévi-Strauss para identificar algumas peças não etiquetadas no Brasil.
Um prefácio escrito para o catálogo da exposição expressava a alegria de Lévi-Strauss em ver ali reunida uma parte dos objetos que foram separados pela partilha feita 70 anos antes.
Finalmente, as investigações de Grupioni sugerem que a partilha de objetos não teria sido feita conforme a lei (50% e 50%). A França teria saído favorecida, em especial na primeira remessa de objetos da primeira expedição, feita em 1936. O Brasil teria ficado com 328 artefatos, contra mais de 600 peças enviadas.

Desequilíbrio
"Isso se explica por duas razões", diz Grupioni. "Em primeiro lugar, pelo fato de a primeira expedição de Lévi-Strauss e [sua mulher] Dina não ter sido fiscalizada pelo Conselho de Fiscalização, como ocorreu com a segunda viagem. Depois, porque Mário de Andrade teria preferido ficar com os filmes em 16 mm feitos durante a viagem [hoje no Centro Cultural São Paulo]... Os filmes compensariam a quantidade de peças a mais que seguiu para a França."
Não há nenhuma previsão de que a coleção reunida no Quai Branly seja exposta no Brasil.


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