São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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Revisão do mito

Editora conta como o antropólogo retificou uma informação imprecisa para a edição das "Mitológicas" no Brasil

ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO

A antropóloga Florencia Ferrari, 33, pode se gabar de haver corrigido Claude Lévi-Strauss. "Com perspicácia a sra. destacou uma incoerência em "Do Mel às Cinzas", e eu agradeço", escreveu à mão, em novembro de 2004, o pensador francês.
Editora da área de antropologia na Cosac Naify, Ferrari reconhece que isso é praxe no processo de traduzir e publicar um livro, mas essa correção, do segundo volume da tetralogia "Mitológicas", é especial.
"A [tradutora e professora da USP] Beatriz Perrone-Moisés também encontrou inconsistências. Mas, nesse caso, temos a carta alterando o original e, o mais interessante, mostrando sua maneira de pensar", diz.
Nesta entrevista à Folha, Ferrari fala do contato com Lévi-Strauss e do projeto em que trabalha com Eduardo Viveiros de Castro, um livro sobre o autor de "Tristes Trópicos" a ser lançado em agosto de 2010.

 

FOLHA - Como se envolveu com a edição dos livros de Lévi-Strauss?
FLORENCIA FERRARI -
Para os uspianos, ele é onipresente, e "estruturalismo" não é um palavrão, mas algo positivo.
Fiz um curso com a Beatriz Perrone-Moisés, lemos "O Cru e o Cozido". Surgiu a ideia, o livro estava fora de catálogo.
Cada volume levou um ano [o último volume da tetralogia está em produção]. As "Mitológicas" são muito idiossincráticas do ponto de vista editorial, porque têm muitíssimas referências internas.
Com a ideia de checar tudo, os 800 mitos presentes no texto, acabamos pegando alguns erros.

FOLHA - Ele mesmo respondeu as cartas. O contato não era feito por intermédio de um assessor?
FERRARI - É sabido que ele sempre respondia cartas. Tinha o cuidado de responder à mão, um apego à formalidade, à "politesse". "Sou um homem do século 19", ele afirmou no século 20. E chegou ao 21.

FOLHA - Só conversou com ele por correspondência?
FERRARI -
Eu o encontrei na França em 2004; tinha acabado de editar "O Cru e o Cozido".
Ele ainda frequentava o Laboratório [de Antropologia Social da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris]. No fundo da biblioteca, havia uma escada que levava a seu escritório, de onde podia ver os estudantes. Encontrei-o lá.
Estava já muito velhinho -96 anos-, tremia, mas, quando falava, era de uma vivacidade incrível. Eu disse a ele que tinha prestado doutorado em antropologia. "Aqui na França?", ele perguntou. Respondi que seria no Brasil. "Ah, bom. Porque na França a antropologia acabou. No Brasil ainda há tempo para se desenvolver."
Pouco antes ele havia dito à "Nouvel Observateur" que a antropologia hoje é Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro.

FOLHA - As cartas mostram o agradecimento de Lévi-Strauss por haver identificado uma lacuna em seu texto das "Mitológicas". Ele lhe pareceu uma pessoa fácil de lidar?
FERRARI -
Ele era muito cuidadoso, usava fichários para controlar a informação de tantos mitos. Trocou a história da abelha com a história do sapo.
Propus trocar a remissão. Ele respondeu: "Sua correção seria aceitável, mas prefiro me manter no fio do meu pensamento" [acrescentando à pág. 374 de "Do Mel às Cinzas" uma explicação da conexão entre aqueles mitos]...
Ou seja, aquilo ainda estava na cabeça dele.

FOLHA - A correção ficou sendo exclusiva da edição brasileira?
FERRARI -
Enviei a alteração para a Plon [a assessoria da editora francesa, em resposta a e-mail da Folha, afirmou que a alteração ainda não foi incorporada].

FOLHA - O que aprendeu lendo Lévi-Strauss e trabalhando com ele?
FERRARI -
Aprendi a "boa antropologia". Não seria possível fazer antropologia sem ter passado por isso. Aprender a seguir o pensamento do outro.


Veja as cartas de Claude Lévi-Strauss e sua tradução

Leia entrevista com o cineasta Jorge Bodanzky, codiretor de "A Propósito de "Tristes Trópicos'"

www.folha.com.br/0930917




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