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Revisão do mito
Editora conta como o antropólogo retificou uma informação imprecisa
para a edição das "Mitológicas" no Brasil
ERNANE GUIMARÃES NETO
DA REDAÇÃO
A antropóloga Florencia Ferrari, 33,
pode se gabar de
haver corrigido
Claude Lévi-Strauss. "Com perspicácia a
sra. destacou uma incoerência
em "Do Mel às Cinzas", e eu
agradeço", escreveu à mão, em
novembro de 2004, o pensador
francês.
Editora da área de antropologia na Cosac Naify, Ferrari
reconhece que isso é praxe no
processo de traduzir e publicar
um livro, mas essa correção, do
segundo volume da tetralogia
"Mitológicas", é especial.
"A [tradutora e professora da
USP] Beatriz Perrone-Moisés
também encontrou inconsistências. Mas, nesse caso, temos
a carta alterando o original e, o
mais interessante, mostrando
sua maneira de pensar", diz.
Nesta entrevista à Folha,
Ferrari fala do contato com Lévi-Strauss e do projeto em que
trabalha com Eduardo Viveiros
de Castro, um livro sobre o autor de "Tristes Trópicos" a ser
lançado em agosto de 2010.
FOLHA - Como se envolveu com a
edição dos livros de Lévi-Strauss?
FLORENCIA FERRARI - Para os uspianos, ele é onipresente, e "estruturalismo" não é um palavrão, mas algo positivo.
Fiz um curso com a Beatriz
Perrone-Moisés, lemos "O Cru
e o Cozido". Surgiu a ideia, o livro estava fora de catálogo.
Cada volume levou um ano [o
último volume da tetralogia está em produção]. As "Mitológicas" são muito idiossincráticas
do ponto de vista editorial, porque têm muitíssimas referências internas.
Com a ideia de checar tudo,
os 800 mitos presentes no texto, acabamos pegando alguns
erros.
FOLHA - Ele mesmo respondeu as
cartas. O contato não era feito por
intermédio de um assessor?
FERRARI - É sabido que ele sempre respondia cartas. Tinha o
cuidado de responder à mão,
um apego à formalidade, à "politesse". "Sou um homem do século 19", ele afirmou no século
20. E chegou ao 21.
FOLHA - Só conversou com ele por
correspondência?
FERRARI - Eu o encontrei na
França em 2004; tinha acabado
de editar "O Cru e o Cozido".
Ele ainda frequentava o Laboratório [de Antropologia Social da Escola de Altos Estudos
em Ciências Sociais, em Paris].
No fundo da biblioteca, havia
uma escada que levava a seu escritório, de onde podia ver os
estudantes. Encontrei-o lá.
Estava já muito velhinho
-96 anos-, tremia, mas, quando falava, era de uma vivacidade incrível. Eu disse a ele que tinha prestado doutorado em antropologia. "Aqui na França?",
ele perguntou. Respondi que
seria no Brasil. "Ah, bom. Porque na França a antropologia
acabou. No Brasil ainda há tempo para se desenvolver."
Pouco antes ele havia dito à
"Nouvel Observateur" que a
antropologia hoje é Manuela
Carneiro da Cunha e Eduardo
Viveiros de Castro.
FOLHA - As cartas mostram o agradecimento de Lévi-Strauss por haver
identificado uma lacuna em seu texto das "Mitológicas". Ele lhe pareceu uma pessoa fácil de lidar?
FERRARI - Ele era muito cuidadoso, usava fichários para controlar a informação de tantos
mitos. Trocou a história da abelha com a história do sapo.
Propus trocar a remissão. Ele
respondeu: "Sua correção seria
aceitável, mas prefiro me manter no fio do meu pensamento"
[acrescentando à pág. 374 de
"Do Mel às Cinzas" uma explicação da conexão entre aqueles
mitos]...
Ou seja, aquilo ainda estava
na cabeça dele.
FOLHA - A correção ficou sendo exclusiva da edição brasileira?
FERRARI - Enviei a alteração para a Plon [a assessoria da editora francesa, em resposta a e-mail da Folha, afirmou que a
alteração ainda não foi incorporada].
FOLHA - O que aprendeu lendo Lévi-Strauss e trabalhando com ele?
FERRARI - Aprendi a "boa antropologia". Não seria possível fazer antropologia sem ter passado por isso. Aprender a seguir o
pensamento do outro.
Veja as cartas de Claude
Lévi-Strauss e sua
tradução
Leia entrevista com o
cineasta Jorge Bodanzky,
codiretor de "A Propósito
de "Tristes Trópicos'"
www.folha.com.br/0930917
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