São Paulo, domingo, 08 de novembro de 2009

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Bastarda gloriosa

PRODUTORA DE "METROPOLIS", "NOSFERATU", "O ANJO AZUL", DE FILMES NAZISTAS E DO NOVO TARANTINO, UFA SINTETIZA O APOGEU E O DECLÍNIO DO CINEMA ALEMÃO

LUCIANA COELHO
ENVIADA ESPECIAL A POTSDAM (ALEMANHA)

Catorze metros separam o teto do chão do Marlene Dietrich Halle, um galpão de paredes brancas e chão de madeira e cimento cinza em Potsdam.
Entre eles, habitam quase todos os fantasmas do cinema alemão -de Murnau a Riefenstahl, passando por Fritz Lang e Dietrich. E, agora, o do americano Quentin Tarantino.
O vazio atual não denuncia, mas os fantasmas da lendária UFA (Universum Film AG) estão além dos mais de 900 filmes produzidos nestes estúdios nas cercanias de Berlim. Eles ecoam com precisão a história alemã do último século e suas próprias assombrações.
Foi sob a mesma estrutura de metal que Fritz Lang filmou em 1927 "Metropolis", híbrido de ficção científica e análise sociológica que o consagrou.
Embaixo, entre tanto cinza, está o rastro do mais recente ocupante. "Vê as manchas vermelhas?", aponta num canto Eike Wolf, do departamento de divulgação. "Tarantino. Lavamos, mas volta", diz. "O pessoal já diz que é o fantasma dele."
Entre Lang e Tarantino, os estúdios da UFA fizeram nascer a maior diva do cinema alemão, filmaram e distribuíram peças de propaganda nazista e entretiveram duas gerações de crianças na Alemanha Oriental com filmes de fantasia.
Hoje, quer abrir o mercado local e produzir filmes tipo exportação.
Quando Josef von Sternberg revelou para o mundo a então quase desconhecida cantora de cabaré Marlene Dietrich em "O Anjo Azul", o estúdio ainda pertencia à UFA original, uma usina cinematográfica que só nos três anos entre os dois clássicos lançou 150 produções.

Vampiro lendário
Hoje a companhia, 939 filmes no currículo, virou duas empresas distintas que pouca semelhança guardam com a antecessora histórica, embora mantenham a proeminência no cenário cultural alemão.
A poucos quilômetros dali, a empresa que reteve a marca produz essencialmente novelas diurnas e séries em sets pequenos e estúdios alugados.
O glamour dos anos 1920 é apenas uma menção passageira em explanações sobre o mais lucrativo negócio da TV.
O Marlene Dietrich Halle, assim como todo o parque de filmagens em volta, são agora o Studio Babelsberg.
Apesar do nome, é ele -e concordam ambas as partes- que guarda o parentesco direto com a UFA do imaginário alemão e que continua sua perpétua reinvenção.
A história do estúdio começa em 1912, com a criação do Messter a partir da fusão de uma série de pequenas companhias. Em 1917, após uma injeção de capital de grandes bancos e empresas, surge a UFA.
Cinco anos depois, a nova companhia produziria seu primeiro clássico: "Nosferatu", de F.W. Murnau, que imprimiu a imagem de Max Schreck como o vampiro de incisivos (e não caninos!) pontiagudos na memória de gerações.
A fase áurea duraria até a crise de 1929 e do início dos anos 30 -então, tanto Lang quanto Dietrich já viviam nos EUA.
Em 1937, com a ascensão do nazismo, a produtora foi nacionalizada e virou um dos pontos de apoio do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, que tinha especial afeição pelo cinema. Tarantino se lembrou e estampou o logo da companhia na fictícia produção que ilustra seu filme.
Tamanha carga levaria os aliados a cogitarem acabar com a UFA. A solução foi incorporar a produtora sob a Defa, o veículo de comunicação do regime socialista na recém-criada Alemanha Oriental. Sete anos depois a marca abraçaria o Babelsberg, cuja administração passara ao Exército soviético.
"Não podíamos falar sobre qualquer coisa. Tínhamos de tratar de assuntos que se ajustassem ao que queria o governo", lembra Angelika Müller, 54, ainda hoje no Babelsberg.
"Era problemático especialmente para os roteiristas. Por outro lado, tínhamos muito mais tempo para trabalhar em cada filme", conclui.

A serviço de Hollywood
Naquela época, reflexo da estrutura política, o estúdio tinha 2.500 funcionários para produzir cerca de 15 filmes por ano.
Hoje são menos de 90 empregados trabalhando ali -quando há um filme em curso, o número de pessoas direta e indiretamente envolvidas pode voltar aos 2.500. Nenhum roteirista tem contrato fixo.
O Babelsberg, com os estúdios da UFA, foi privatizado em 1992. Desde 2004 está sob a atual administração, cujo foco é o mercado internacional.
"Não há sensibilidade na Alemanha para tentar manter o estúdio vivo", reclama Carl Woebcken, o presidente do Babelsberg. "Queríamos fabricar sets, fazer grandes filmes, e é por isso que acabamos virando um fornecedor de Hollywood."
O estúdio voltou à rota das grandes produções em 2002, com "O Pianista", de Roman Polanski. O diretor, preso em Zurique, também lançará com eles "The Ghost" [O Fantasma].
O Babelsberg coassinou "Trama Internacional", "O Leitor" e o filme de Tarantino.
"Não foi fácil recuperar o terreno perdido", diz Woebcken. Ultimamente, o Babelsberg tem obtido boa parte de seu lucro -°3 milhões no ano passado, com a crise, e °6 milhões no anterior- fabricando sets, locando estúdios e fornecendo as milhares de peças de figurino que abarrotam um galpão.
Beneficiado por um esquema de subsídio oferecido pelo governo alemão desde 2007, para tornar o país atraente às produções, o herdeiro da UFA em tempos de crise se coloca também como um polo de empregos quando a indústria criativa se consolida como a principal (e talvez única) força da esvaziada economia de Berlim.
"É importante para quem sai das escolas de cinema daqui trabalhar nesses filmes, até para depois fazer melhores filmes alemães. Aqui há pequenos filmes demais e pouca chance de explorá-los no cinema", diz o executivo. "Temos de fazer menos filmes, e maiores."
A UFA, sob o nome que for, continua ecoando seu tempo.


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