São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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A reinvenção da história


Com o monumental "Declínio e Queda do Império Romano", o inglês Edward Gibbon fez a síntese entre a narrativa filosófica e a erudição dos "antiquários" do século 18


Evaldo Cabral de Mello

Num ensaio escrito nos anos 50, Arnaldo Momigliano sustentou que a renovação trazida pela história da decadência e queda do Império Romano, de Edward Gibbon (1737-94), consistira em realizar a síntese entre, de um lado, a erudição historiográfica dos chamados "antiquários", ou investigadores das "curiosidades históricas" locais ou nacionais, herdeiros do humanismo da Renascença; e, de outro, a narrativa "filosófica" que surgira nos séculos 18 nos livros de história de Hume e de Voltaire. A afirmação do grande historiógrafo italiano é o ponto de partida do recente livro de J.G.A. Pocock [historiador neozelandês] intitulado "Barbarismo e Religião". O autor notabilizou-se pela inflexão que impôs à história do pensamento político desde a publicação em 1957 do trabalho em que investigou exaustivamente as origens seiscentistas da concepção "whig" de uma Constituição inglesa que os liberais imaginavam haver condicionado, desde o fundo da Idade Média, o desenvolvimento das instituições políticas da Inglaterra. Em livros posteriores, como "Virtude, Comércio e História" e, sobretudo, "O Momento Maquiaveliano", o autor voltaria a utilizar o método que pode ser caracterizado sumariamente como o abandono da exposição dos sistemas de idéias políticas pelo estudo das linguagens políticas, o que permite deselitizar uma disciplina até então limitada à reconstituição de genealogias intelectuais ou ao exame de influências mentais. No seu último livro, Pocock reconstitui o percurso que levou Gibbon à redação de "Declínio e Queda do Império Romano" (em edição condensada pela Cia. das Letras). Como não se trata neste artigo de recensear "Barbarismo e Religião", o que outros já terão feito com maior competência, tratarei apenas de chamar a atenção do leitor para a originalidade, na época, da experiência historiográfica de Gibbon. Na primeira metade do século 17, "antiquários" e historiadores representavam duas tribos que se ignoravam. Uns estocavam informações sobre o passado da sua cidade ou da sua região, mais raramente do seu país; os outros narravam as vicissitudes dos reinos e as atribulações dos monarcas, até que Voltaire descobriu "a história filosófica", que centralizou o interesse historiográfico no estudo dos costumes. Escusado aduzir que já então os historiadores olhavam com vago desprezo os esforços dos antiquários, como os de hoje ainda fazem com os cronistas que, na obscuridade da província, catam e preservam os vestígios do passado local. Gibbon foi o primeiro historiador que reconheceu e explorou o veio da contribuição antiquarista para o estudo da história.

Crítica cerrada
Para tanto, ele teve a seu favor o fato de haver abandonado a filosofia pela história, que, ademais, cultivou inicialmente por meio da monotonia e despretensão do antiquarianismo erudito. Antes mesmo de haver conhecido a obra dos antiquários que pululavam na Europa desde o advento do humanismo (ninguém menos que Petrarca fora um deles), Gibbon encetou seu percurso intelectual pela crítica cerrada à concepção historiográfica dos enciclopedistas, em especial de D'Alembert [1717-83", que, embora reconhecesse a especificidade do conhecimento histórico, o reduzia à tarefa subalterna de acumular informação, preparando a matéria-prima para uso da filosofia, operando no pressuposto que conferia à história um papel paralelo ao da mecânica relativamente à física, na comparação de Isaiah Berlin [1909-97", da mesma maneira pela qual os sociólogos, economistas e cientistas políticos de hoje esperam que a história faça o mesmo para eles. No "Discurso Preliminar à Enciclopédia", D'Alembert formulara um sistema de divisão do trabalho intelectual mediante o qual uma tríade de faculdades, a razão, a imaginação e a memória, condicionaria respectivamente a filosofia, as artes e a história. Aos vinte e poucos anos, com seu "Ensaio sobre o Estudo da Literatura", Gibbon fez sua primeira incursão intelectual atacando precisamente a concepção de D'Alembert. Parecia-lhe arbitrário o confinamento da história à memória, já que ela empregava também os dons da razão e da imaginação. O "Ensaio" de Gibbon não teve repercussão, mas, como assinala Pocock, "seu inexperiente autor tinha exprimido percepções mais importantes do que sua capacidade imediata de projetá-las em público". Sob esse aspecto, a posição do futuro autor do "Declínio e Queda" só poderia ser plenamente compreendida pela versão historiográfica do romantismo. Não há dúvida, porém, de que sua crítica a D'Alembert constituiu o primeiro passo no trajeto que o levará muitos anos depois a encetar a redação do "Declínio e Queda". A mistura revolucionária de erudição, "filosofia" e narrativa que Gibbon realizou na sua obra clássica corresponderá exatamente à concepção defendida no "Ensaio", segundo a qual a história é obra igualmente lógica e imaginativa (se coloquei acima a palavra "filosofia" entre aspas foi para alertar o leitor para a circunstância de que a "história filosófica" do século 18 era assim chamada devido à sua busca por uma explicação abrangente e inteligível do seu objeto de estudo, algo como o "sentido" da experiência humana que ela explorara. Hoje a chamaríamos, entre outras designações, de "história interpretativa", "explicativa", "compreensiva" etc.).

O trunfo do historiador
A crítica a D'Alembert habilitou Gibbon a atinar com certas características da atividade historiográfica que hoje são moeda corrente, como ao afirmar que o historiador possui um trunfo a que não podem aspirar nem o filósofo nem o poeta, ou seja, a capacidade de contemplar o passado com os olhos dos que o haviam vivido, mercê da familiaridade que só a convivência dos textos e de outros vestígios pode produzir, algo como a impressão que já Tito Lívio registrara ao confessar que, ao narrar as velharias do passado romano, "eu me torno, não sei como, contemporâneo delas".
Outro aspecto surpreendente do ensaio de juventude de Gibbon é a crítica que formula acerca da idéia de causalidade. Não se trata, à maneira do que havia feito Vico (cuja "Ciência Nova" Gibbon aparentemente não conheceu), de distinguir o mundo da natureza e o mundo da história, bem como as modalidades de explicação próprias a cada um deles, mas de lembrar o que qualquer filosofia atual do conhecimento científico não tem dificuldade em admitir, isto é, que "nos acontecimentos particulares, o procedimento da natureza é muito diferente do dos filósofos", de vez que "nela há poucos efeitos que sejam simples para que possam dever sua origem a uma única causa", ao passo que "nossos sábios se apegam ordinariamente a uma causa não somente universal, mas única".
Se isso ocorria no reino da natureza, o reino da história tinha de ser necessariamente mais complexo, ao compreender igualmente a atuação dos agentes históricos, indivíduos, classes, grupos sociais, os quais são movidos por propósitos.
Daí sua rejeição da monocausalidade também em história: "Por pouco complicada que uma ação nos pareça, admitamos as causas gerais, sem rejeitar a intenção e o acaso", fórmula que Dilthey [Wilhelm Dilthey (1833-1911), filósofo e historiador da cultura" repetiria quase "ipsis litteris" um século e meio depois. Essa compreensão aguda e precoce do que devia ser a prática historiográfica evitou que Gibbon derivasse para uma história iluminista do gênero cultivado por Voltaire, misto de superficialidade e intuições geniais. Mas a crítica da concepção enciclopedista da história (concepção em que se pode enxergar, como sugeriu Pocock, a revanche da "gens de lettres" contra a erudição ligada à "noblesse de robe") não afastou Gibbon de uma visão iluminista da história, levando-o antes a aprofundá-la e enriquecê-la. À "Encyclopédie" ele prefere, uma vez redigido o "Ensaio", o manuseio dos densos volumes das "Memórias", da Académie des Inscriptions et Belles Lettres, de Paris, em cuja aquisição gastou a fortuna de 20 libras. A Académie era precisamente uma dessas entidades culturais a que o enciclopedismo votara o mais solene desprezo, reputando-a o "sanctum santorum" do espírito antiquário, à maneira pela qual em nossos dias o historiador universitário tende a olhar o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro ou nossos institutos históricos de província. É certo que, como seus precursores, os frades mauristas e bolandistas, a Académie encarnava a reação ao pirronismo de Descartes e de Bayle, para quem a história não era conhecimento rigoroso e muito menos sério, na melhor das hipóteses um passatempo de indivíduos acaudalados e curiosos, embora não se possa negar que muitos dos trabalhos divulgados nas "Memórias" da academia tivessem escopo mais vasto que o dos antiquários, a ponto de algumas vezes reivindicarem uma "história do espírito e dos vários sistemas que produziu" e até mesmo afirmando que "a história dum povo consiste menos na narrativa do que ele fez do que na descrição do que ele foi", pressentindo Burckhardt e Huizinga muito antes que eles aparecessem. Pela altura da sua estada em Paris em 1763, Gibbon, como o poeta português, ainda não sabia por onde ia, apenas que não iria pelo caminho dos enciclopedistas. Graças a sua viagem a Lausanne e a Roma é que descobrirá finalmente sua vocação. Significativamente, o "Declínio e Queda" não foi originalmente concebido como um livro de história "filosófica", o que virá também a ser, mas como uma obra de antiquário no sentido estrito da expressão. Gibbon projetou no começo um "recueil géographique" da Itália antiga que visava apenas a reconstituir a topografia e a arqueologia do país e, em especial, de Roma, com ênfase, segundo as palavras do autor, nos "costumes e usos", "toda essa história interessante que fica escondida debaixo da história ordinária", o que ainda estava de acordo com o gosto antiquarista já contaminado pela leitura de Montesquieu e Voltaire. A chegada a Roma e a visão das suas ruínas o induzirá a transformar seu "recueil" na história do declínio e da queda, não do Império, mas tão-somente da urbe imperial, acrescentando à dimensão erudita a técnica narrativa e interpretativa a que se prestava idealmente a história da República e da capital do Império. Desnecessário assinalar que na cabeça de Gibbon as coisas não se passaram tão linearmente assim. Antes da viagem a Roma, ele cogitara escrever uma narrativa de tipo clássica, a história da liberdade da Suíça, mas só no seu regresso de Lausanne à Inglaterra, a idéia de fundir erudição, narrativa e interpretação será instigada pela leitura de Gianone, Hume, Robertson e Ferguson, leitura que, por outro lado, o dissuadiu da pretensão, que lhe ocorrera de volta a Londres, de dedicar-se à história inglesa ou à britânica. Tratava-se dos primeiros historiadores iluministas a se ocuparem da formação da igreja romana, das invasões bárbaras e do desenvolvimento do feudalismo, de que os Estados europeus se haviam libertado a partir do Renascimento através do comércio e da ilustração. A história iluminista era assim também uma história salvacionista, embora a salvação estivesse neste mundo, não no outro. É curioso, aliás, observar que já então a atmosfera intelectual da Inglaterra, a despeito de haver sido sempre favorável à atividade historiográfica da mais alta qualidade, caracterizava-se por uma certa dificuldade em pensá-la em termos epistemológicos, inibição mental que ela só superaria na primeira metade do século 20, mercê de Collingwood e de Oakshott.

Arquivos e escavações
Semelhante constatação pareceria confirmar a velha suspeita dos historiadores, suspeita que tanto irrita os filósofos, a de que a epistemologia é irrelevante para sua prática ou de que, ao menos, ela se adquire não nos manuais, mas "on the job", ou antes, nos arquivos e nas escavações. O inegável é que o quarteto, acima mencionado, de historiadores que influenciaram decisivamente a obra de Gibbon compunha-se de um napolitano -que, por conseguinte, trabalhava à sombra da árvore ramalhuda de Vico- e de três escoceses, entre os quais havia o caso excepcional de um filósofo (Hume) que transitara da filosofia para a história. Collingwood fará muito depois o mesmo caminho, com a diferença que de maneira mais tortuosa do que Hume. O autor da "Idéia da História" passou da filosofia à história da filosofia e desta à filosofia crítica da história, processo que ocorreu paralelamente ao cultivo permanente do seu latifúndio historiográfico, a presença romana na Grã-Bretanha, com a correspondente prática assídua da arqueologia. A experiência de Hume e de Collingwood indicaria que a história pode servir de cura ao desapontamento dos filósofos com os impasses da sua disciplina.
A respeito da história intelectual da Inglaterra, há outra circunstância igualmente paradoxal. Tanto a filosofia especulativa quanto a filosofia crítica da história preferiram nascer não na Inglaterra, mas no continente e, neste, nas suas áreas social e economicamente periféricas. Vico e Herder [Johann Gottfried von Herder, 1744-1803, filósofo alemão] não foram o produto de países que ingressavam triunfalmente na modernidade, mas, pelo contrário, de regiões que se refocilavam na tradição e na ordem, Nápoles e a Prússia. A filosofia especulativa só obteve seus títulos de nobreza na Inglaterra nos anos 30, com o aparecimento dos volumes iniciais do "Um Estudo da História" [ed. Martins Fontes], de Toynbee [1889-1975]. Quanto à filosofia crítica da história, somente também no mesmo período conseguiu romper a crosta empirista do ensino universitário inglês, graças à influência de autores continentais; e, novamente aqui, de pensadores alemães, como Dilthey, ou italianos, como Croce.
Na Oxford dos anos 30, Berlin só começou a se libertar da filosofia dos seus mestres no dia em que Collingwood emprestou-lhe um livro, aliás esguio: o ensaio em que Croce debulhava Vico. Nos EUA aconteceria o mesmo: a teoria de Hempel sobre o conhecimento histórico, resíduo atualizado do positivismo científico do século 19, só veio a ser descartada depois que nos anos 50 os americanos começaram a conhecer melhor o que se passara a escrever na Inglaterra ou que há muito se escrevia em latitudes européias mais baixas que as inglesas.

Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "Um Imenso Portugal" (ed. 34) e "O Negócio do Brasil" (ed. Topbooks). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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