São Paulo, domingo, 08 de dezembro de 2002

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"Um Olhar a Mais" analisa a onipotência da visibilidade no mundo contemporâneo e a transformação dos indivíduos em "televoyeurs"

Síndrome do olho gordo e do mau-olhado

Um Olhar a Mais
312 págs., R$ 33,00 de Antonio Quinet. Editora Jorge Zahar (r. México, 31, sobreloja, CEP 20031-144, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2240-0226).

Gilberto Vasconcellos
especial para a Folha

O psicanalista Antonio Quinet dá um banho de conhecimento na assimilação crítica da vida e obra de Jacques Lacan (1901-81), o célebre francês continuador de Sigmund Freud. Outra vez ainda Lacan na cultura brasileira. Este livro, "Um Olhar a Mais", não é apenas destinado aos especialistas da área "psi". Trata-se de uma reflexão sobre o olho e o olhar desde a caverna de Platão até a "Casa dos Artistas" e o "Big Brother Brasil". O lugar do ver e do ser visto, tal qual concebido por Freud e Lacan, além de Michel Foucault e o cinema de Wim Wenders, com o foco no "video ergo sum", ou seja: vejo, logo existo. A visibilidade é o imperativo do espetáculo. A necessidade de ser visto pelo outro. O minuto de fama. Eis o mandamento do gozo contemporâneo: sorria, você está sendo filmado. O índice de audiência requer o olho. O cidadão é um "televoyeur".

Clima pornô
O exibicionismo converte o horror em algo excitante. Ratinho. "Linha Direta". Talks shows. A intimidade em clima pornô. Tudo deve sair do armário para ser visto. Não há intimidade nem segredo. Tudo escancarado conforme o "espetáculo obsceno da banalidade".
O olho doente. Mas é o olho que elege os políticos. Este quadro cultural o autor denomina "sociedade escópica", da qual o Brasil não escapa. Padecemos do mal-olhar da civilização.
A sociedade escópica é aquela em que o olho videofinanceiro faz a lei e o Estado, de modo cada vez mais totalitário e panóptico: vigilância global. É o olho policial -"algemas eletrônicas, escuta ambiental"-, o olho domiciliar e punitivo que toma conta de tudo e para o qual não há esconderijo. O ideal de "transparência", supostamente de esquerda, acaba por reforçar o vigiar e o punir, contribuindo para a despolitização da sociedade. Escreve Antonio Quinet: "A transparência é o grande inimigo da política". Mostre-se. Seja uma celebridade. Exiba. A "vida se transforma numa novela. Filme ou novela, lá estão o olhar da câmera e do espectador fixado na tela, telinha ou telão".
O ponto alto deste livro para o entendimento da sociedade brasileira é a reflexão sobre a síndrome do mau-olhado -o olho gordo, o olho seca-pimenteira-, vinculada à inveja e ao ciúme. Assim funciona a dialética do mau-olhado: "O bem-visto é olhado pelo mal e o que é bem olhado é vítima do mau-olhado". Como dispositivo defensivo, usa-se de amuletos e das plantas "comigo-ninguém-pode" e "espada-de-são-jorge".
Embora em geral as mulheres sejam portadoras de mau-olhado, essa síndrome medra em sociedades dominadas pelo patronato personificado. Latifúndio. Máfia. Banditismo. É que em tais sociedades prolifera um sentimento generalizado da falta de ter ou de ser.
Mesmo o sujeito bem situado socialmente não pode gozar de seus bens diante do "olhar ávido". O olhar pidão dos pobres e miseráveis. De olho na substância do prato de comida. Estranha simbiose da fome com o olho gordo. A paranóica sociedade brasileira não consegue gozar em nenhum de seus escalões sociais: tanto faz em cima quanto embaixo.
O excelente livro de Antônio Quinet é a prova de que, por estas bandas, Lacan está sendo deglutido antropofagicamente, isto é, assimilado em razão do nosso espaço e do nosso tempo.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "Biomassa" (ed. Senac São Paulo), entre outros.


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