UOL


São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ autores

Miguel Villagran - 27.jan.03/France Presse
O presidente Lula é recebido em Berlim por Johannes Rau, presidente da Alemanha


A nova esperança que vem da América do Sul

por Alain Touraine

O caráter maciço da vitória eleitoral do novo presidente reforça consideravelmente sua capacidade de ação; mas também lhe dá uma força inequívoca no plano internacional. É sobre esse ponto que se deve insistir hoje, pois nem os brasileiros nem os observadores estrangeiros, na minha opinião, têm plena consciência da extrema importância para o Brasil e para o mundo do que acaba de acontecer, isto é, o êxito espetacular da transição democrática que acaba de ocorrer em Brasília. Vemos por todo o mundo triunfar a guerra ou aumentarem os riscos de guerra, ressurgirem regimes populistas ou consolidarem-se regimes autoritários; também vemos em diversos pontos o caos dominar, e o futuro até de países importantes tornar-se incerto.

Dupla vitória
O Brasil é quase o único país onde a democracia obteve uma vitória que é na verdade uma dupla vitória: vitória das instituições democráticas e vitória do espírito de transformação social. O resultado dessa transição perfeitamente consumada é que o Brasil aparece hoje como um lugar de estabilidade e de progresso social e político em um mundo que parece dominado pelo medo da guerra, da violência e das crises. O Brasil torna-se assim, de repente, um dos elementos mais sólidos do sistema político internacional, ao mesmo tempo em que desenvolve sua produção interna, num momento em que o conjunto da América Latina, assim como o conjunto da África, mostra fraquezas tão grandes que podemos temer uma incapacidade duradoura do continente para resolver seus problemas internos e externos mais graves. E o próprio Brasil tem a mais urgente necessidade de utilizar o prestígio e a influência que acaba de adquirir, pois sua solidez depende em grande parte do futuro da Argentina e do papel positivo que o Brasil pode ter na recuperação desse país ameaçado pelos maiores perigos.

O futuro da Argentina
Lula afirmou que a recuperação da Argentina é uma prioridade sua. É uma declaração da maior importância, pois o futuro da Argentina está muito menos nas mãos das diversas forças políticas e sociais, que se desenvolvem em grande desordem, do que nas intenções a longo prazo dos grupos financeiros que se apóiam na longa tradição de internacionalização da economia argentina -que, de geração em geração, conduziu esse país a uma crise que parece insolúvel. Tanto a Argentina parece escrava das decisões tomadas pelos centros financeiros externos, quanto o Brasil é um país amplamente dono de seu futuro, pois desenvolveu novos ramos de sua economia, os Estados do interior manifestam um dinamismo econômico considerável e, enfim e principalmente, repito, o sucesso da transição democrática demonstra a maturidade desse país que depende de si mesmo em todos os campos, mais que de potências estrangeiras. Ninguém espera que o Brasil assuma a frente de uma coalizão nacionalista ou populista, mas podemos esperar que ele seja um exemplo e que também ajude diretamente os países que querem escapar da desorganização e da queda.


O Brasil se afirma como um dos países mais importantes do mundo neste início de século


De volta à realidade
Fomos de tal modo influenciados por todas as propagandas e as ideologias a serviço da globalização que acabamos perdendo de vista, em todo o mundo, as realidades mais elementares, a saber, que o sucesso econômico de um país depende de sua vontade de se gerir, isto é, de levar em consideração todas as dimensões, sociais, culturais e políticas, assim como econômicas, de sua atividade. O Brasil me parece hoje mais do que nunca senhor de si mesmo e de sua perspectiva de futuro, e utilizo propositalmente as expressões mais fortes para definir a situação do Brasil, de tal modo considero indispensável reconhecer a importância mundial do que acaba de ocorrer nesse país e como ele pode e deve representar um exemplo para o conjunto do mundo, o que não deixará de dar ao Brasil uma influência internacional que não pôde gozar até hoje, mesmo quando a mereceu.

Ações de longo prazo
Haverá dias e meses em que a ação do governo brasileiro deverá ser julgada por determinados atos, mas seria um erro de julgamento não se deter sobre o momento atual da história do Brasil, pois é quando ele se afirma incontestavelmente como um dos países mais importantes do mundo neste início de século. Podemos lamentar que tenha aumentado tão rapidamente a distância entre o Brasil e a maior parte dos países do continente, com a exceção do Chile, mas também se deve notar que os atuais sucessos do Brasil são o resultado de ações de longo prazo, tanto da criação de um partido moderno, o PT, quanto do combate ao analfabetismo ou aos piores aspectos da saúde pública.
É preciso que, em outros países, se renuncie aos discursos simplistas que insistiam nos elementos de fraqueza ou de crise do Brasil. Esses elementos não desapareceram, mas o que está mais claro hoje é a capacidade de o Brasil enfrentar seus problemas, propor soluções, ou seja, antes de tudo acabar com a separação entre as exigências da economia e as necessidades da sociedade, sobre a qual tantas vozes nos disseram que era a condição do sucesso, ao passo que só pode levar à catástrofe. Que meus leitores brasileiros permitam a um estrangeiro salientar, talvez com mais veemência do que eles mesmos gostariam, a força de seu país, a confiança que ele merece e as esperanças que desperta.

Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


Texto Anterior: ET+ cetera
Próximo Texto: + brasil 503 d.C. : O eros das diferenças
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.