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+ brasil 503 d.C.
O eros das diferenças
por Sergio Paulo Rouanet
A bela iniciativa de Anita Novinski
de criar um Laboratório de Estudos da Intolerância (LEI) inspira
algumas reflexões sobre esse tema, cada vez mais atual no Brasil e no
mundo, que vem sendo tratado com interesse crescente por organizações internacionais como a Unesco e por pensadores como John Rawls, morto recentemente, e Michael Walzer.
Muito sumariamente, a intolerância
pode ser definida como uma atitude de
ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos
específicos, à sua maneira de ser, a seu
estilo de vida e às suas crenças e convicções. Essa atitude genérica se atualiza em
manifestações múltiplas, de caráter religioso, nacional, racial, étnico e outros.
De modo geral, a intolerância religiosa
era desconhecida na Antiguidade clássica, politeísta e portanto hospitaleira aos
deuses de outras nações. A intolerância
só se tornou possível com o advento do
cristianismo, que afirmava a existência
de um só Deus e de uma só revelação para a humanidade inteira. As medidas de
intolerância ativa começaram no século
13, quando a Idade Média transformou-se numa sociedade fundada na rejeição e
exclusão, principalmente dos judeus e
dos heréticos. Foi naquele século que o
papa Gregório 9º criou um tribunal especial, confiado aos dominicanos e destinado, no início, a reprimir a heresia albigense. Foi o começo da Inquisição, logo
estendida ao resto da Cristandade. A
guerra contra os albigenses, ou cátaros,
seita maniqueísta implantada na França
meridional, foi ordenada pela papa Inocêncio 3º e tornou-se uma das mais bárbaras da história, levando à extinção
completa da religião.
No período moderno, caracterizado
pela formação e consolidação dos Estados nacionais, a intolerância religiosa assumiu formas especialmente virulentas,
porque se julgava que a solidez do poder
absoluto do rei dependia da aplicação do
princípio de que a religião do povo deveria ser a religião do príncipe. Desencadeadas por um massacre de protestantes
ocorrido em 1562, as guerras de religião
da França se caracterizaram por atrocidades sem precedentes, como a matança
de São Bartolomeu (25 de agosto de
1572), e só terminaram mais de 20 anos
depois, quando Henrique 4º assinou o
Edito de Nantes, concedendo liberdade
de culto aos protestantes (1598). Mas a
longa história da perseguição à religião
reformada ainda não havia terminado,
pois em 1685 Luís 14 revogou o Edito de
Nantes, o que levou à demolição dos
templos, à proibição das assembléias e à
emigração forçada de cerca de 300 mil
protestantes. Mas estes eram tão intolerantes quanto os católicos. O teólogo Michel Servet foi queimado vivo [em 1553]
em Genebra, por instigação de Calvino.
Os católicos foram perseguidos na Inglaterra e até o século 19 não gozavam de direitos políticos.
A intolerância religiosa parecia superada até recentemente, apesar de fatos isolados como o conflito entre católicos e
protestantes na Irlanda do Norte, no fundo muito mais uma luta nacional do que
uma verdadeira guerra religiosa.
E eis que a intolerância religiosa volta à
atualidade, sob a forma do fundamentalismo. O fundamentalismo está ocorrendo nas três grandes religiões monoteístas, como assinalei em artigo anterior
neste suplemento [19/05/2002]. Em todos os casos, ele transforma a religião, vítima tradicional da intolerância, em
principal agente da intolerância. Curiosamente, essa intolerância visa mais às
correntes moderadas e seculares dentro
do seu próprio campo que às religiões rivais. Na medida em que a intolerância se
caracteriza pela incapacidade de descentramento, de empatia com o ponto de
vista do outro, o fundamentalismo tem
sido um enorme obstáculo à paz mundial, pois inviabiliza qualquer processo
racional de negociação.
Fundamentalistas
Os impasses
políticos no Oriente Médio são em grande parte subprodutos da influência dos
grupos fundamentalistas em cada um
dos dois campos. É a intolerância que até
hoje leva certos grupos a pregarem a extinção do Estado de Israel. Os atentados
suicidas praticados por organizações como o Hamas e o Hizbollah, sacrificando
tanto a vida dos "mártires" fanatizados
quanto a de mulheres e crianças inocentes, ultrapassam a compreensão humana, pois não podem ser julgados segundo as categorias lógicas e éticas de seres
humanos normais. Por outro lado, o
fundamentalismo judaico tampouco
ajuda o processo de paz. Várias facções
fundamentalistas pretendem restaurar o
Estado de Israel tal como descrito na Bíblia -e tudo fizeram para sabotar os
acordos de Oslo. Mesmo os fundamentalistas não-violentos constituem uma
força negativa. Suas opiniões sobre os limites territoriais do Estado de Israel e a
questão correlativa da legitimidade das
colônias nos territórios ocupados têm
mais a ver com as promessas feitas por
Deus aos patriarcas que com as realidades contemporâneas do conflito com os
árabes. Em grande parte, é o peso eleitoral dos partidos religiosos ultra-ortodoxos que dificulta a formação de um governo estável de centro-esquerda, sem o
qual uma verdadeira negociação com os
palestinos não poderá ter êxito.
Paz mundial
O fundamentalismo
americano é tão ou mais grave que os outros, porque pode afetar a paz do mundo
inteiro, e não apenas a de uma região. A
direita religiosa mais obscurantista parece ter chegado à Casa Branca. Depois do
odioso atentado de 11 de setembro, os valores seculares que sempre caracterizaram a democracia americana foram
substituídos por um discurso bíblico
digno dos puritanos que chegaram à
América no Mayflower. Em vez de responder à loucura sagrada dos terroristas
com a linguagem secular do Iluminismo
americano, à luz do qual o atentado devia ter sido repudiado como um crime
contra o gênero humano, George W.
Bush preferiu recorrer a uma linguagem
igualmente sagrada, caracterizando-o,
de certo modo, como um crime contra
Deus. Daí expressões como "eixo do
mal" ou "justiça infinita", inventadas pelos "aiatolás" do Pentágono.
O nacionalismo tem sido historicamente uma das principais matrizes da
intolerância. Com o seu patriotismo helvético, Rousseau não hesitou em dizer
que odiar o estrangeiro era quase uma
obrigação cívica. Por sua própria natureza, o discurso do nacionalismo é dualista
-nós e eles, brasileiro e estrangeiro. O
primeiro pólo da dicotomia é sempre
exaltado, e o segundo é investido negativamente. Esse dualismo simplificador
alimenta todos os estereótipos. Erasmo
já havia lamentado a tendência a ver os
povos segundo clichês nacionais, atribuindo determinadas características de
personalidade a certos povos, o que dificultava o reconhecimento de todas as
nações como partes da grande nação do
gênero humano. Um dos maiores problemas do nacionalismo é que ele cria totalidades homogêneas, sem clivagens internas, esquecendo-se de que cada Estado-nação é composto de indivíduos, de
classes sociais, de estratos profissionais,
pessoas que poderiam aproximar-se,
além das fronteiras nacionais, mas estão
proibidas de fazê-lo em virtude do dualismo "nós-vocês".
O nacionalismo esteve em surdina durante o período da Guerra Fria, quando o
mundo estava, por assim dizer, dividido
em dois internacionalismos rivais. Hoje
em dia, duas tendências se confrontam.
Por um lado, o processo de globalização
está enfraquecendo o Estado nacional,
privando assim o nacionalismo de parte
do seu suporte material. Mas, por outro
lado, o nacionalismo ressurge, tanto na
potência hegemônica, que mais do que
nunca acredita no seu "manifest destiny"
de nação eleita, quanto na Europa, que se
revolta contra o unilateralismo americano, e em países como o Brasil, que se sente vulnerável a pressões econômicas externas. O futuro dirá qual das duas tendências vai prevalecer, mas é certo que
durante muito tempo o nacionalismo
continuará vivo como fonte de intolerância.
A intolerância racial foi uma das catástrofes do século 20. Uma de suas manifestações mais abomináveis foi o anti-semitismo, que gerou o caso Dreyfus, no
início do século, e levaria ao maior crime
da história, o extermínio de 6 milhões de
judeus pela Alemanha nazista. Houve
também um racismo antinegro, ostensivo nos EUA, disfarçado no Brasil. Nos
dois casos, a intolerância operou através
da estigmatização, da atribuição ao outro de estereótipos de opróbrio. Na
"Questão Judaica" (1946, ed. Ática), Sartre mostra como o anti-semita constrói o
judeu, dotando um homem sem nenhum atributo especial com inúmeras
especificidades negativas, que vão desde
a forma do nariz até a paixão imoderada
pelo entesouramento. Do mesmo modo
o racista de Alabama constrói o negro,
atribuindo-lhe características diferenciadoras mais ou menos imaginárias.
Qual a situação atual do racismo? Em
grande parte, seu lugar foi ocupado pela
intolerância étnica. O ódio de etnias
substituiu o ódio racial. Sérvios, bósnios,
croatas sofreram e praticaram a intolerância numa guerra imunda, em que os
únicos inocentes foram os homens, mulheres e crianças massacrados pelos
guerreiros da purificação étnica.
Mas ainda há focos de racismo clássico.
É possível que, por trás de muitas críticas, em si legítimas, ao governo Sharon,
se escondam motivações anti-semitas latentes. O racismo antinegro certamente
se tornou menos evidente nos Estados
Unidos, embora o "politicamente correto" esteja criando formas inversas de intolerância. No Brasil, as melhoras foram
marginais. O problema, entre nós, é o estado de pobreza em que vive a maioria
da população negra. Enquanto persistir
essa situação, os negros serão vítimas de
uma intolerância dupla, sobredeterminada, a que os atinge enquanto negros e
enquanto pobres.
A xenofobia existe desde a Antiguidade, mas ela assumiu formas mais graves
desde que aumentaram os fluxos migratórios de países do Terceiro Mundo para
a Europa e os Estados Unidos. Todos os
países europeus têm seus turcos, seus
vietnamitas, seus paquistaneses, seus senegaleses, seus jamaicanos. Todos esses
países, bem ou mal, transformaram-se
em países de imigração. A intolerância
contra esses "estrangeiros" é enorme e se
traduz muitas vezes em perigosos incidentes interculturais.
O sexismo, enfim, é também uma fonte
fértil de intolerância, como o é também a
discriminação contra os homossexuais.
Lista incompleta
Esta lista ainda está evidentemente incompleta, mas a falta
de espaço me obriga a passar ao tema seguinte. O que fazer para combater a intolerância, esse monstro de mil rostos e de
mil tentáculos? A resposta parece óbvia e
até ligeiramente acaciana: pelo menos
num primeiro momento é preciso recorrer ao antídoto desse veneno, a tolerância.
Esse termo não é isento de ambiguidade. É preciso conhecer os limites da tolerância. Podemos ser tolerantes com os
intolerantes? É um dos riscos da democracia. Podemos ser tolerantes com o intolerável? Seria a aceitação passiva do
inaceitável, como se a guerra no Oriente
Médio, a miséria dos países do Terceiro
Mundo e a violência urbana nas grandes
cidades brasileiras fossem fatalidades
que não nos dizem respeito.
É óbvio que um programa racional de
difusão da tolerância tem que responder
negativamente a essas duas perguntas,
no entendimento, entretanto, de que os
limites empíricos da tolerância só podem ser definidos, em cada caso concreto, pelas instâncias democráticas apropriadas.
A tolerância é um cessar-fogo na guerra das diferenças, mas ainda não é a paz
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Causas
Formular um programa para
a tolerância pressupõe conhecer as causas da intolerância. Quais são elas?
Uma delas se enraíza na própria natureza humana. Essa natureza existe, por
mais que um longo condicionamento
marxista tenha nos habituado a reduzi-la
ao "conjunto das relações sociais". Somos descendentes remotos de um australopiteco que há alguns milhões de
anos fazia parte de uma horda, em algum
lugar da África, e marcava com urina os
limites do seu território, para que ele não
fosse invadido pela horda rival. Essa herança ainda sobrevive em todos nós e
aparece sem nenhuma censura nas sociedades ditas primitivas, que reservam
para sua própria comunidade o atributo
de "homens", enquanto as demais são
constituídas por "não-homens". A essa
causa filogenética, hereditária, acrescenta-se uma causa ontogenética. Tendemos a nos identificar com o grupo a que
pertencemos, porque o investimos com
uma forte libido narcísica. Amamos o
grupo como amávamos a nós mesmos
na fase do narcisismo primário, na fase
em que éramos nosso único objeto de
amor. O grupo é a soma de todas as perfeições que o ego narcísico encontrava
em si mesmo. Em compensação, odiamos com uma violenta cólera narcisista
tudo o que está do lado de fora. Idealizamos nossos valores, nossos ideais, nossas
realizações -e depreciamos os do grupo
rival. Sobrevalorizamos nosso grupo -e
somos intolerantes com a alteridade.
Essas tendências são meras propensões, e não condicionamentos. Elas podem traduzir-se, contudo, em comportamentos objetivamente intolerantes se
forem reforçadas por fatores externos.
Entre estes, há fatores sociais, que incluem, do ponto de vista das classes baixas, a miséria, o desemprego, a ignorância, a perda de identidade resultante da
migração das áreas rurais para a cidade;
do ponto de vista das classes médias, a
insegurança econômica, o medo de pauperização, do "déclassement"; e, do ponto de vista da sociedade como um todo, o
bombardeio ideológico da indústria cultural e a erosão dos valores tradicionais
em consequência do processo de globalização. Assim, além das causas gerais de
intolerância há causas diferenciadas por
classes sociais. O fascismo soube mobilizar tanto os fantasmas proletários quanto os da pequena burguesia.
Vêm em seguida fatores políticos. O
Estado pode ser ele próprio intolerante,
como foi o caso do Estado francês na
época das guerras de religião, do Estado
alemão durante o nazismo, ou do Estado
soviético no período stalinista. E, mesmo
democrático, pode não estar preparado
para lidar com a questão das diferenças.
Esse inventário pode ser-nos útil, porque indica as áreas em que um programa
para a criação de uma cultura da tolerância deveria concentrar-se. Assim como
as tendências congênitas à intolerância
podem ser reforçadas por fatores sociais
e políticos, elas podem também ser neutralizadas por medidas corretivas nessas
mesmas duas áreas.
Começando com as de caráter social,
deve-se dar ênfase especial tanto à educação quanto ao desenvolvimento econômico e social.
Boa parte dos currículos teria que ser
remanejada para incentivar uma capacidade de relacionar-se com o outro. Os
alunos aprenderiam a aceitar e compreender as diferenças -de cor, de gênero, de orientação sexual, de condição
social. Num plano mais acadêmico, é
fundamental o trabalho que o LEI se propõe realizar. Com seu programa de reunir documentação sobre o tema da intolerância no Brasil, de organizar pesquisas nessa área, de realizar seminários sobre temas como a Inquisição e o racismo,
o laboratório recém-inaugurado dará
uma contribuição decisiva para a consolidação de uma cultura da tolerância no
Brasil.
Além da educação, seria decisivo, na
área social, implantar um vasto programa de crescimento econômico e desenvolvimento humano. É a prioridade máxima do atual governo. Assim como a
educação proporciona as condições subjetivas para a erradicação da intolerância, um programa generoso de inclusão
social proporciona as condições objetivas. Um crescimento equilibrado, que
gerasse empregos, aliviando o sofrimento material do povo, e tranquilizasse as
classes médias quanto a seu status socioeconômico: tal é a via mais segura para evitar o advento de ideologias e movimentos intolerantes. Um programa desse tipo deveria ter amplo caráter participativo, permitindo às camadas diretamente interessadas autodeterminar as
medidas de seu interesse imediato, para
com isso anular os efeitos de anomia inerentes ao desenraizamento das populações rurais. O acesso de todos à cultura, e
com isso não falo apenas da cultura popular, poderia refrear em parte os efeitos
negativos da cultura globalizada.
Entre as medidas políticas, a mais importante é encontrar uma fórmula para
organizar a coexistência das diferenças.
Desde Gramsci, o pensamento político
tem lidado com um modelo em dois níveis, o Estado e a sociedade civil. O Estado é a esfera pública, em que todos os cidadãos são iguais, na medida em que estão integrados numa cultura política comum. A sociedade civil, por outro lado, é
o espaço privado, em que convivem todas as diferenças. A democracia moderna não exige a supressão das especificidades de língua, de religião, de cultura.
Ela exige apenas que essas especificidades sejam mantidas na esfera privada e
que, como cidadãos, todos os indivíduos
obedeçam aos princípios gerais estabelecidos na Constituição.
Foi assim que os Estados modernos resolveram a questão da tolerância religiosa. As religiões foram deslocadas para a
esfera privada, onde receberam garantias de livre funcionamento. A tolerância
contemporânea não diz mais respeito
apenas à religião, como no tempo em
que Locke (1632-1704) escreveu sua
"Epístola sobre a Tolerância". Hoje ela
tem que abranger também a cultura, a etnia, a língua. Mas não há motivo para
que a solução encontrada para a religião
não possa se aplicar às demais diferenças. O modelo em dois níveis viabiliza essa política. Todas as religiões, culturas e
etnias podem coexistir, em sua singularidade, na esfera privada, desde que obedeçam a um certo número de limites estabelecidos na esfera pública.
Não estou advogando, aqui, uma política multicultural semelhante à adotada
no Canadá. Num Estado democrático, a
tolerância com as diferenças não passa
necessariamente por uma política de reconhecimento de direitos culturais coletivos. A proteção das diferenças pode ser
assegurada por princípios constitucionais derivados da doutrina universalista
dos direitos humanos, não precisando
recorrer a princípios particularistas visando à defesa de identidades específicas. Esse mesmo modelo em dois níveis
poderia servir de base para organizar a
tolerância no âmbito internacional, através de uma democracia mundial, que
também teria uma esfera pública, com
princípios e normas de aplicação universal, e uma esfera privada, onde se desdobrariam as particularidades nacionais,
culturais, étnicas, linguísticas, religiosas.
A idéia seria lançar as bases de uma cidadania cosmopolita
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Cessar-fogo
Mas a tolerância não
pode ser a última palavra. A implantação
de uma cultura da tolerância é um cessar-fogo na guerra das diferenças, mas
ainda não é a paz. As diferenças não devem ser apenas toleradas, porque do
contrário elas se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que se comunicariam apenas no espaço público. A tolerância foi uma das mais úteis conquistas
da espécie, mas deve ser vista como passagem para um estágio mais civilizado e
menos mecânico de convívio das diferenças. Penso que as diferenças deveriam conversar entre si, rompendo sempre que possível a camisa-de-força da
cultura e da religião. Deveriam buscar o
diálogo, a hibridação, o sincretismo, de
que o Brasil deu tão belos exemplos
quando transformou em Iansã uma santa da Ásia Menor e, conforme nos ensina
Marlyse Meyer, deu o nome de Pomba
Gira a uma espanhola da Idade Média,
Maria Padilha, amante de d. Pedro, o
Cruel, de Castilha.
Mas, se a concretização de uma cultura
da tolerância já é um empreendimento
quase utópico, ir mais além não seria um
sonho irrealizável? Sim, mas é preciso sonhar. É preciso sonhar com um mundo
em que as diferenças se unam, proliferem, gerem novas diferenças. É preciso
inventar o Eros das diferenças. É preciso
passar de uma ética da tolerância, em
que as diferenças coexistem, para uma
ética do reconhecimento mútuo e da interpenetração.
De novo, a educação teria nisso um papel fundamental. Nesse admirável mundo novo, as escolas dariam atenção especial ao aprendizado de línguas estrangeiras e ao estudo de outras culturas e outras religiões. Os exemplos de heroísmo
militar, que levam às guerras, seriam discretamente postos em segundo plano.
Em vez de exaltar feitos marciais, próprios e alheios, seriam acentuadas contribuições de outros países na área da
ciência, da literatura, da música. A idéia
seria não somente formar uma cidadania nacional sensível a todas as diferenças internas, mas também lançar as bases de uma cidadania cosmopolita.
Façam uma experiência mental e imaginem o que teria acontecido se os jovens
sérvios que assassinaram milhares de
pessoas na recente guerra interétnica
houvessem estudado a história das etnias vizinhas, além das próprias, dando
ênfase sobretudo aos episódios pacíficos.
Talvez não tivessem desenvolvido uma
identidade nacional especialmente forte,
mas como, segundo nossa hipótese, os
outros povos também não a teriam, a paz
teria reinado na antiga Iugoslávia. O
ideal, talvez, não seja construir identidades, mas desconstruí-las, porque hoje as
identidades se tornaram assassinas.
É preciso -quem sabe?- sonhar
também com um tema sobre o qual Anita Novinski escreveu muito, o marranismo. Edgar Morin fala num novo marranismo, depurado da característica de
cripto-judaísmo que a palavra tinha na
origem, um neomarranismo definido
por uma identidade múltipla, como o
próprio Morin, francês por sua cultura,
ibérico por sua condição de sefaradita,
grego por ter nascido em Salônica, turco
porque, quando sua família se instalou
ali, ela ainda estava sob o domínio do
Sultão, e italiano porque sua família tinha vindo de Livorno e estava sob a proteção consular da Itália. Não deveríamos
todos refazer a experiência da identidade
múltipla, como os cristãos-novos brasileiros, se quiséssemos transcender a concepção tradicional de tolerância?
Procurei num livro respeitado pelas
três religiões monoteístas, a Bíblia, uma
frase que nos levasse a um conceito da
relação entre as diferenças baseado na
identificação com o outro e na reciprocidade. Creio que a encontrei. Está no
Deuteronômio: "Tu não perverterás o
direito do estrangeiro... porque já foste
escravo na terra do Egito".
Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".
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