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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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+ brasil 503 d.C.

O eros das diferenças

por Sergio Paulo Rouanet

A bela iniciativa de Anita Novinski de criar um Laboratório de Estudos da Intolerância (LEI) inspira algumas reflexões sobre esse tema, cada vez mais atual no Brasil e no mundo, que vem sendo tratado com interesse crescente por organizações internacionais como a Unesco e por pensadores como John Rawls, morto recentemente, e Michael Walzer. Muito sumariamente, a intolerância pode ser definida como uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções. Essa atitude genérica se atualiza em manifestações múltiplas, de caráter religioso, nacional, racial, étnico e outros. De modo geral, a intolerância religiosa era desconhecida na Antiguidade clássica, politeísta e portanto hospitaleira aos deuses de outras nações. A intolerância só se tornou possível com o advento do cristianismo, que afirmava a existência de um só Deus e de uma só revelação para a humanidade inteira. As medidas de intolerância ativa começaram no século 13, quando a Idade Média transformou-se numa sociedade fundada na rejeição e exclusão, principalmente dos judeus e dos heréticos. Foi naquele século que o papa Gregório 9º criou um tribunal especial, confiado aos dominicanos e destinado, no início, a reprimir a heresia albigense. Foi o começo da Inquisição, logo estendida ao resto da Cristandade. A guerra contra os albigenses, ou cátaros, seita maniqueísta implantada na França meridional, foi ordenada pela papa Inocêncio 3º e tornou-se uma das mais bárbaras da história, levando à extinção completa da religião. No período moderno, caracterizado pela formação e consolidação dos Estados nacionais, a intolerância religiosa assumiu formas especialmente virulentas, porque se julgava que a solidez do poder absoluto do rei dependia da aplicação do princípio de que a religião do povo deveria ser a religião do príncipe. Desencadeadas por um massacre de protestantes ocorrido em 1562, as guerras de religião da França se caracterizaram por atrocidades sem precedentes, como a matança de São Bartolomeu (25 de agosto de 1572), e só terminaram mais de 20 anos depois, quando Henrique 4º assinou o Edito de Nantes, concedendo liberdade de culto aos protestantes (1598). Mas a longa história da perseguição à religião reformada ainda não havia terminado, pois em 1685 Luís 14 revogou o Edito de Nantes, o que levou à demolição dos templos, à proibição das assembléias e à emigração forçada de cerca de 300 mil protestantes. Mas estes eram tão intolerantes quanto os católicos. O teólogo Michel Servet foi queimado vivo [em 1553] em Genebra, por instigação de Calvino. Os católicos foram perseguidos na Inglaterra e até o século 19 não gozavam de direitos políticos. A intolerância religiosa parecia superada até recentemente, apesar de fatos isolados como o conflito entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte, no fundo muito mais uma luta nacional do que uma verdadeira guerra religiosa. E eis que a intolerância religiosa volta à atualidade, sob a forma do fundamentalismo. O fundamentalismo está ocorrendo nas três grandes religiões monoteístas, como assinalei em artigo anterior neste suplemento [19/05/2002]. Em todos os casos, ele transforma a religião, vítima tradicional da intolerância, em principal agente da intolerância. Curiosamente, essa intolerância visa mais às correntes moderadas e seculares dentro do seu próprio campo que às religiões rivais. Na medida em que a intolerância se caracteriza pela incapacidade de descentramento, de empatia com o ponto de vista do outro, o fundamentalismo tem sido um enorme obstáculo à paz mundial, pois inviabiliza qualquer processo racional de negociação.

Fundamentalistas
Os impasses políticos no Oriente Médio são em grande parte subprodutos da influência dos grupos fundamentalistas em cada um dos dois campos. É a intolerância que até hoje leva certos grupos a pregarem a extinção do Estado de Israel. Os atentados suicidas praticados por organizações como o Hamas e o Hizbollah, sacrificando tanto a vida dos "mártires" fanatizados quanto a de mulheres e crianças inocentes, ultrapassam a compreensão humana, pois não podem ser julgados segundo as categorias lógicas e éticas de seres humanos normais. Por outro lado, o fundamentalismo judaico tampouco ajuda o processo de paz. Várias facções fundamentalistas pretendem restaurar o Estado de Israel tal como descrito na Bíblia -e tudo fizeram para sabotar os acordos de Oslo. Mesmo os fundamentalistas não-violentos constituem uma força negativa. Suas opiniões sobre os limites territoriais do Estado de Israel e a questão correlativa da legitimidade das colônias nos territórios ocupados têm mais a ver com as promessas feitas por Deus aos patriarcas que com as realidades contemporâneas do conflito com os árabes. Em grande parte, é o peso eleitoral dos partidos religiosos ultra-ortodoxos que dificulta a formação de um governo estável de centro-esquerda, sem o qual uma verdadeira negociação com os palestinos não poderá ter êxito.

Paz mundial
O fundamentalismo americano é tão ou mais grave que os outros, porque pode afetar a paz do mundo inteiro, e não apenas a de uma região. A direita religiosa mais obscurantista parece ter chegado à Casa Branca. Depois do odioso atentado de 11 de setembro, os valores seculares que sempre caracterizaram a democracia americana foram substituídos por um discurso bíblico digno dos puritanos que chegaram à América no Mayflower. Em vez de responder à loucura sagrada dos terroristas com a linguagem secular do Iluminismo americano, à luz do qual o atentado devia ter sido repudiado como um crime contra o gênero humano, George W. Bush preferiu recorrer a uma linguagem igualmente sagrada, caracterizando-o, de certo modo, como um crime contra Deus. Daí expressões como "eixo do mal" ou "justiça infinita", inventadas pelos "aiatolás" do Pentágono.
O nacionalismo tem sido historicamente uma das principais matrizes da intolerância. Com o seu patriotismo helvético, Rousseau não hesitou em dizer que odiar o estrangeiro era quase uma obrigação cívica. Por sua própria natureza, o discurso do nacionalismo é dualista -nós e eles, brasileiro e estrangeiro. O primeiro pólo da dicotomia é sempre exaltado, e o segundo é investido negativamente. Esse dualismo simplificador alimenta todos os estereótipos. Erasmo já havia lamentado a tendência a ver os povos segundo clichês nacionais, atribuindo determinadas características de personalidade a certos povos, o que dificultava o reconhecimento de todas as nações como partes da grande nação do gênero humano. Um dos maiores problemas do nacionalismo é que ele cria totalidades homogêneas, sem clivagens internas, esquecendo-se de que cada Estado-nação é composto de indivíduos, de classes sociais, de estratos profissionais, pessoas que poderiam aproximar-se, além das fronteiras nacionais, mas estão proibidas de fazê-lo em virtude do dualismo "nós-vocês". O nacionalismo esteve em surdina durante o período da Guerra Fria, quando o mundo estava, por assim dizer, dividido em dois internacionalismos rivais. Hoje em dia, duas tendências se confrontam. Por um lado, o processo de globalização está enfraquecendo o Estado nacional, privando assim o nacionalismo de parte do seu suporte material. Mas, por outro lado, o nacionalismo ressurge, tanto na potência hegemônica, que mais do que nunca acredita no seu "manifest destiny" de nação eleita, quanto na Europa, que se revolta contra o unilateralismo americano, e em países como o Brasil, que se sente vulnerável a pressões econômicas externas. O futuro dirá qual das duas tendências vai prevalecer, mas é certo que durante muito tempo o nacionalismo continuará vivo como fonte de intolerância. A intolerância racial foi uma das catástrofes do século 20. Uma de suas manifestações mais abomináveis foi o anti-semitismo, que gerou o caso Dreyfus, no início do século, e levaria ao maior crime da história, o extermínio de 6 milhões de judeus pela Alemanha nazista. Houve também um racismo antinegro, ostensivo nos EUA, disfarçado no Brasil. Nos dois casos, a intolerância operou através da estigmatização, da atribuição ao outro de estereótipos de opróbrio. Na "Questão Judaica" (1946, ed. Ática), Sartre mostra como o anti-semita constrói o judeu, dotando um homem sem nenhum atributo especial com inúmeras especificidades negativas, que vão desde a forma do nariz até a paixão imoderada pelo entesouramento. Do mesmo modo o racista de Alabama constrói o negro, atribuindo-lhe características diferenciadoras mais ou menos imaginárias. Qual a situação atual do racismo? Em grande parte, seu lugar foi ocupado pela intolerância étnica. O ódio de etnias substituiu o ódio racial. Sérvios, bósnios, croatas sofreram e praticaram a intolerância numa guerra imunda, em que os únicos inocentes foram os homens, mulheres e crianças massacrados pelos guerreiros da purificação étnica. Mas ainda há focos de racismo clássico. É possível que, por trás de muitas críticas, em si legítimas, ao governo Sharon, se escondam motivações anti-semitas latentes. O racismo antinegro certamente se tornou menos evidente nos Estados Unidos, embora o "politicamente correto" esteja criando formas inversas de intolerância. No Brasil, as melhoras foram marginais. O problema, entre nós, é o estado de pobreza em que vive a maioria da população negra. Enquanto persistir essa situação, os negros serão vítimas de uma intolerância dupla, sobredeterminada, a que os atinge enquanto negros e enquanto pobres. A xenofobia existe desde a Antiguidade, mas ela assumiu formas mais graves desde que aumentaram os fluxos migratórios de países do Terceiro Mundo para a Europa e os Estados Unidos. Todos os países europeus têm seus turcos, seus vietnamitas, seus paquistaneses, seus senegaleses, seus jamaicanos. Todos esses países, bem ou mal, transformaram-se em países de imigração. A intolerância contra esses "estrangeiros" é enorme e se traduz muitas vezes em perigosos incidentes interculturais. O sexismo, enfim, é também uma fonte fértil de intolerância, como o é também a discriminação contra os homossexuais.

Lista incompleta
Esta lista ainda está evidentemente incompleta, mas a falta de espaço me obriga a passar ao tema seguinte. O que fazer para combater a intolerância, esse monstro de mil rostos e de mil tentáculos? A resposta parece óbvia e até ligeiramente acaciana: pelo menos num primeiro momento é preciso recorrer ao antídoto desse veneno, a tolerância. Esse termo não é isento de ambiguidade. É preciso conhecer os limites da tolerância. Podemos ser tolerantes com os intolerantes? É um dos riscos da democracia. Podemos ser tolerantes com o intolerável? Seria a aceitação passiva do inaceitável, como se a guerra no Oriente Médio, a miséria dos países do Terceiro Mundo e a violência urbana nas grandes cidades brasileiras fossem fatalidades que não nos dizem respeito. É óbvio que um programa racional de difusão da tolerância tem que responder negativamente a essas duas perguntas, no entendimento, entretanto, de que os limites empíricos da tolerância só podem ser definidos, em cada caso concreto, pelas instâncias democráticas apropriadas.


A tolerância é um cessar-fogo na guerra das diferenças, mas ainda não é a paz



Causas
Formular um programa para a tolerância pressupõe conhecer as causas da intolerância. Quais são elas?
Uma delas se enraíza na própria natureza humana. Essa natureza existe, por mais que um longo condicionamento marxista tenha nos habituado a reduzi-la ao "conjunto das relações sociais". Somos descendentes remotos de um australopiteco que há alguns milhões de anos fazia parte de uma horda, em algum lugar da África, e marcava com urina os limites do seu território, para que ele não fosse invadido pela horda rival. Essa herança ainda sobrevive em todos nós e aparece sem nenhuma censura nas sociedades ditas primitivas, que reservam para sua própria comunidade o atributo de "homens", enquanto as demais são constituídas por "não-homens". A essa causa filogenética, hereditária, acrescenta-se uma causa ontogenética. Tendemos a nos identificar com o grupo a que pertencemos, porque o investimos com uma forte libido narcísica. Amamos o grupo como amávamos a nós mesmos na fase do narcisismo primário, na fase em que éramos nosso único objeto de amor. O grupo é a soma de todas as perfeições que o ego narcísico encontrava em si mesmo. Em compensação, odiamos com uma violenta cólera narcisista tudo o que está do lado de fora. Idealizamos nossos valores, nossos ideais, nossas realizações -e depreciamos os do grupo rival. Sobrevalorizamos nosso grupo -e somos intolerantes com a alteridade.
Essas tendências são meras propensões, e não condicionamentos. Elas podem traduzir-se, contudo, em comportamentos objetivamente intolerantes se forem reforçadas por fatores externos.
Entre estes, há fatores sociais, que incluem, do ponto de vista das classes baixas, a miséria, o desemprego, a ignorância, a perda de identidade resultante da migração das áreas rurais para a cidade; do ponto de vista das classes médias, a insegurança econômica, o medo de pauperização, do "déclassement"; e, do ponto de vista da sociedade como um todo, o bombardeio ideológico da indústria cultural e a erosão dos valores tradicionais em consequência do processo de globalização. Assim, além das causas gerais de intolerância há causas diferenciadas por classes sociais. O fascismo soube mobilizar tanto os fantasmas proletários quanto os da pequena burguesia. Vêm em seguida fatores políticos. O Estado pode ser ele próprio intolerante, como foi o caso do Estado francês na época das guerras de religião, do Estado alemão durante o nazismo, ou do Estado soviético no período stalinista. E, mesmo democrático, pode não estar preparado para lidar com a questão das diferenças. Esse inventário pode ser-nos útil, porque indica as áreas em que um programa para a criação de uma cultura da tolerância deveria concentrar-se. Assim como as tendências congênitas à intolerância podem ser reforçadas por fatores sociais e políticos, elas podem também ser neutralizadas por medidas corretivas nessas mesmas duas áreas. Começando com as de caráter social, deve-se dar ênfase especial tanto à educação quanto ao desenvolvimento econômico e social. Boa parte dos currículos teria que ser remanejada para incentivar uma capacidade de relacionar-se com o outro. Os alunos aprenderiam a aceitar e compreender as diferenças -de cor, de gênero, de orientação sexual, de condição social. Num plano mais acadêmico, é fundamental o trabalho que o LEI se propõe realizar. Com seu programa de reunir documentação sobre o tema da intolerância no Brasil, de organizar pesquisas nessa área, de realizar seminários sobre temas como a Inquisição e o racismo, o laboratório recém-inaugurado dará uma contribuição decisiva para a consolidação de uma cultura da tolerância no Brasil. Além da educação, seria decisivo, na área social, implantar um vasto programa de crescimento econômico e desenvolvimento humano. É a prioridade máxima do atual governo. Assim como a educação proporciona as condições subjetivas para a erradicação da intolerância, um programa generoso de inclusão social proporciona as condições objetivas. Um crescimento equilibrado, que gerasse empregos, aliviando o sofrimento material do povo, e tranquilizasse as classes médias quanto a seu status socioeconômico: tal é a via mais segura para evitar o advento de ideologias e movimentos intolerantes. Um programa desse tipo deveria ter amplo caráter participativo, permitindo às camadas diretamente interessadas autodeterminar as medidas de seu interesse imediato, para com isso anular os efeitos de anomia inerentes ao desenraizamento das populações rurais. O acesso de todos à cultura, e com isso não falo apenas da cultura popular, poderia refrear em parte os efeitos negativos da cultura globalizada. Entre as medidas políticas, a mais importante é encontrar uma fórmula para organizar a coexistência das diferenças. Desde Gramsci, o pensamento político tem lidado com um modelo em dois níveis, o Estado e a sociedade civil. O Estado é a esfera pública, em que todos os cidadãos são iguais, na medida em que estão integrados numa cultura política comum. A sociedade civil, por outro lado, é o espaço privado, em que convivem todas as diferenças. A democracia moderna não exige a supressão das especificidades de língua, de religião, de cultura. Ela exige apenas que essas especificidades sejam mantidas na esfera privada e que, como cidadãos, todos os indivíduos obedeçam aos princípios gerais estabelecidos na Constituição. Foi assim que os Estados modernos resolveram a questão da tolerância religiosa. As religiões foram deslocadas para a esfera privada, onde receberam garantias de livre funcionamento. A tolerância contemporânea não diz mais respeito apenas à religião, como no tempo em que Locke (1632-1704) escreveu sua "Epístola sobre a Tolerância". Hoje ela tem que abranger também a cultura, a etnia, a língua. Mas não há motivo para que a solução encontrada para a religião não possa se aplicar às demais diferenças. O modelo em dois níveis viabiliza essa política. Todas as religiões, culturas e etnias podem coexistir, em sua singularidade, na esfera privada, desde que obedeçam a um certo número de limites estabelecidos na esfera pública. Não estou advogando, aqui, uma política multicultural semelhante à adotada no Canadá. Num Estado democrático, a tolerância com as diferenças não passa necessariamente por uma política de reconhecimento de direitos culturais coletivos. A proteção das diferenças pode ser assegurada por princípios constitucionais derivados da doutrina universalista dos direitos humanos, não precisando recorrer a princípios particularistas visando à defesa de identidades específicas. Esse mesmo modelo em dois níveis poderia servir de base para organizar a tolerância no âmbito internacional, através de uma democracia mundial, que também teria uma esfera pública, com princípios e normas de aplicação universal, e uma esfera privada, onde se desdobrariam as particularidades nacionais, culturais, étnicas, linguísticas, religiosas.


A idéia seria lançar as bases de uma cidadania cosmopolita



Cessar-fogo
Mas a tolerância não pode ser a última palavra. A implantação de uma cultura da tolerância é um cessar-fogo na guerra das diferenças, mas ainda não é a paz. As diferenças não devem ser apenas toleradas, porque do contrário elas se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que se comunicariam apenas no espaço público. A tolerância foi uma das mais úteis conquistas da espécie, mas deve ser vista como passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio das diferenças. Penso que as diferenças deveriam conversar entre si, rompendo sempre que possível a camisa-de-força da cultura e da religião. Deveriam buscar o diálogo, a hibridação, o sincretismo, de que o Brasil deu tão belos exemplos quando transformou em Iansã uma santa da Ásia Menor e, conforme nos ensina Marlyse Meyer, deu o nome de Pomba Gira a uma espanhola da Idade Média, Maria Padilha, amante de d. Pedro, o Cruel, de Castilha.
Mas, se a concretização de uma cultura da tolerância já é um empreendimento quase utópico, ir mais além não seria um sonho irrealizável? Sim, mas é preciso sonhar. É preciso sonhar com um mundo em que as diferenças se unam, proliferem, gerem novas diferenças. É preciso inventar o Eros das diferenças. É preciso passar de uma ética da tolerância, em que as diferenças coexistem, para uma ética do reconhecimento mútuo e da interpenetração.
De novo, a educação teria nisso um papel fundamental. Nesse admirável mundo novo, as escolas dariam atenção especial ao aprendizado de línguas estrangeiras e ao estudo de outras culturas e outras religiões. Os exemplos de heroísmo militar, que levam às guerras, seriam discretamente postos em segundo plano. Em vez de exaltar feitos marciais, próprios e alheios, seriam acentuadas contribuições de outros países na área da ciência, da literatura, da música. A idéia seria não somente formar uma cidadania nacional sensível a todas as diferenças internas, mas também lançar as bases de uma cidadania cosmopolita.
Façam uma experiência mental e imaginem o que teria acontecido se os jovens sérvios que assassinaram milhares de pessoas na recente guerra interétnica houvessem estudado a história das etnias vizinhas, além das próprias, dando ênfase sobretudo aos episódios pacíficos. Talvez não tivessem desenvolvido uma identidade nacional especialmente forte, mas como, segundo nossa hipótese, os outros povos também não a teriam, a paz teria reinado na antiga Iugoslávia. O ideal, talvez, não seja construir identidades, mas desconstruí-las, porque hoje as identidades se tornaram assassinas.
É preciso -quem sabe?- sonhar também com um tema sobre o qual Anita Novinski escreveu muito, o marranismo. Edgar Morin fala num novo marranismo, depurado da característica de cripto-judaísmo que a palavra tinha na origem, um neomarranismo definido por uma identidade múltipla, como o próprio Morin, francês por sua cultura, ibérico por sua condição de sefaradita, grego por ter nascido em Salônica, turco porque, quando sua família se instalou ali, ela ainda estava sob o domínio do Sultão, e italiano porque sua família tinha vindo de Livorno e estava sob a proteção consular da Itália. Não deveríamos todos refazer a experiência da identidade múltipla, como os cristãos-novos brasileiros, se quiséssemos transcender a concepção tradicional de tolerância?
Procurei num livro respeitado pelas três religiões monoteístas, a Bíblia, uma frase que nos levasse a um conceito da relação entre as diferenças baseado na identificação com o outro e na reciprocidade. Creio que a encontrei. Está no Deuteronômio: "Tu não perverterás o direito do estrangeiro... porque já foste escravo na terra do Egito".

Sergio Paulo Rouanet é ensaísta e professor visitante na pós-graduação em sociologia da Universidade de Brasília. É autor de, entre outros, "As Razões do Iluminismo" e "Mal-Estar na Modernidade" (Cia. das Letras). Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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